A
educação das crianças e jovens é fundamental. Há duas maneiras de
pensar a frase anterior. A primeira é um pouco mais abstrata e
altruísta: nosso dever de formar valores, transmitir conceitos adequados
e preparar nossos filhos e alunos para a vida. Essa é a parte que
ninguém duvida ou questiona. Nenhum governo, nenhum político, nenhum pai
ou escola suspeita da afirmativa. Todavia, existe um segundo sentido.
Educar é colaborar para formar uma atitude original, fornecer filtros
que interpretarão dados, construir posturas e marcar, quase sempre de
forma indelével, uma visão de mundo (Weltanschauung). O segundo sentido
não contradiz o primeiro, apenas reforça o conteúdo estratégico e
político de toda educação. Controlar escolas, currículos e jovens é, em
última análise, controlar o futuro. Toda educação é um projeto de
poder.
As
religiões entenderam muito cedo o papel fundamental das escolas para a
sua sobrevivência. A partir do mundo moderno, ordens católicas fizeram
da sala de aula seu foco principal. Antes restrita a mosteiros e
universidades medievais, a educação teve de ser ampliada como parte de
uma estratégia para vencer a Reforma Protestante. Os jesuítas, surgidos
no século 16, fizeram dos colégios uma ponta de lança fundamental para
formar um novo homem católico da Contrarreforma. Só para pegar um
exemplo, o colégio jesuíta Luís, o Grande (Paris) formou o poeta
Baudelaire, o enciclopedista Diderot, o literato Marquês de Sade, os
filósofos Sartre e Derrida, pintores como Degas e Delacroix, políticos
como Robespierre e Turgot e matemáticos como Évariste Galois. A lista
poderia até depor contra a eficácia da adequação dos alunos ao modelo da
Ratio Studiorum, diretriz fundamental dos modelos pedagógicos da
Companhia de Jesus. Fenômeno francês? Do colégio São Luís, em São Paulo,
emergiram figuras distintas como Ayrton Senna, Paulo Maluf e meus
amigos Maria Fernanda Cândido e Clóvis de Barros Filho. Em resumo, nem
todos os egressos dos modelos de Santo Inácio de Loyola viraram
católicos militantes, mas são biografias de relevo. Eu próprio me
orgulho muito da minha formação jesuítica.
A Contrarreforma
também é feminina. Hoje, 27 de janeiro, é dia de Ângela de Mérici
(1474-1540), fundadora das ursulinas. O carisma italiano da santa acabou
florescendo muito em terras francesas e no Brasil. Igualmente, fizeram
sucesso diversas ordens femininas na Terra de Santa Cruz, como os
colégios das Cônegas de Santo Agostinho, inclusive o afamado colégio
paulistano Des Oiseaux, que teve entre tantas alunas a falecida
antropóloga Ruth Cardoso.
O
mundo reformado também deu imensa importância à educação. Escolas
confessionais luteranas (e de outras vertentes) enfatizavam a
alfabetização para ler as Escrituras. Onde abundaram calvinistas e
luteranos, diminui o analfabetismo médio.
Em grande parte, a
disputa por almas do mundo moderno foi um incentivador das escolas para o
público em geral. Não bastava aprimorar a formação de padres e
pastores, urgia moldar meninos e meninas para garantir a continuidade
das instituições.
As ditaduras de esquerda e de direita
entenderam, igualmente, a necessidade de tornar a escola uma arma de
moldagem do futuro. O Estado Totalitário começava nas cartilhas. Os
conteúdos da área de humanas foram, desde sempre, os mais afetados.
Ditadores sempre pareceram muito mais interessados em História,
Antropologia, Sociologia e Filosofia do que em Geometria ou Química.
Comento com os futuros professores que, caso eles tenham dúvidas sobre o
valor e utilidade da História, observem a ação de ditadores, pois eles
parecem acreditar mais no potencial da nossa área do que as
democracias.
Em resumo, jovens nas salas de aula são a
matéria-prima desejada para moldar as novas estátuas coerentes com os
projetos religiosos e políticos. O problema? Pessoas não são argila
moldável ao gosto do escultor. A educação influencia, porém não
determina. A cada geração, os projetos variados surgem e morrem com seus
anelos de mudar as cabeças dos alunos. O cérebro humano continua mais
complexo do que religiosos, políticos e professores imaginam.
Sim,
há a tal da contradição do mundo: foi em uma aula de Educação Moral e
Cívica que eu, pela primeira vez, ouvi uma crítica ao governo militar
brasileiro, justamente na disciplina que deveria formar o jovem cidadão
da ordem pós-1964. Foi estudando teologia bíblica que comecei a
abandonar minha fé. Foi em bancos de doutos e esforçados jesuítas que o
jovem Voltaire decidiu dedicar a vida ao combate à Igreja Católica. A
tal da “natureza humana”, que Machado de Assis diz ser contrária a
regras (veja o conto A Igreja do Diabo), parece brotar dos mais
sólidos projetos educacionais. Uma lição de humildade para nós
professores e para o Ministério da Educação: o projeto educativo pode
ser nosso, o anseio de poder e controle pode nos tomar; porém, o
resultado tem de dialogar com o imponderável dos alunos. As almas e os
corpos continuarão rebeldes. Felizmente. Bom domingo para todos.
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* Historiador, escritor, professor da Universidade Estadual de Campinas, especializado em História da América.
Fonte: https://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,a-luta-pelas-almas,70002694866 28/01/2019
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