Felipe Ziotti Narita* Jeremiah Morelock*
1989 e as profundas rupturas socioeconômicas dos anos 1980 não são
apenas momentos da queda – seja a implosão da sociedade industrial, o
fim da modernidade, o fim da história e das ideologias ou o colapso dos
conflitos sociais empoeirados da Guerra Fria com a derrubada do Muro de
Berlim. Os eventos também trouxeram promessas associadas ao que o
sociólogo Ralf Dahrendorf chamou de “sociedades abertas”, contando com
formatos de democracias liberais (sistema de freios e contrapesos,
falibilismo, representação, garantias constitucionais, direitos civis e
políticos, pluralidade das formas de vida, etc.) e, devemos acrescentar,
a correlata expansão das estruturas do mercado neoliberal com novas
culturas de consumo.
Um momento globalista, então, parecia materializar os sonhos de uma
comunidade cultural renovada. A historiadora Or Rosenboim demonstrou a
complexa genealogia do globalismo, enfatizando seu desenho a partir da
tênue fronteira entre aspectos pluralistas e universalistas, ou seja,
entre a vigência de critérios normativos de reconhecimento da
diversidade cultural e o risco de imposição de formas unilaterais de
padrões políticos e socioeconômicos. Não obstante essa contradição
imanente, houve esforços para que as decisões nacionais não pudessem ser
separadas de suas implicações globais à luz da crescente
interdependência entre os países. Essa conexão tensa marca o conteúdo
básico do globalismo e, por isso, uma rede transnacional de associações,
ONGs, fóruns mundiais e acordos foi desenvolvida, sob o pano de fundo
das transformações nos meios de comunicação e de transporte,
substituindo a lógica binária da Guerra Fria pelos novos horizontes
inclusivos das “sociedades abertas”.
Os anos 1990 vincularam essas promissões ao credo de estabilidade a
longo prazo das democracias liberais. Com reparos pontuais e incursões
militares assépticas das potências ocidentais pelo planeta (sob a nova
racionalidade das “intervenções humanitárias”), a democracia tendia a
amansar os ímpetos políticos. Contudo, domar as paixões políticas não
foi um processo linear. Conforme argumentamos em nosso capítulo
intitulado “Esfera pública e sistema-mundo”, publicado no livro Critical Theory and Authoritarian Populism,
a garantia da estabilidade democrática exigia o equacionamento das
promessas de participação e representação política, bem como a
capacidade de gerir a aceleração da modernização neoliberal (tecnologia,
comunicação, consumo, costumes, etc.) e as oscilações do mercado
financeiro. Esses dois movimentos (democracia liberal e neoliberalismo),
ainda que carreguem conteúdos distintos, estão profundamente
entrelaçados na experiência histórica aberta nas três décadas seguintes,
construindo o mundo da vida de uma geração que nasceu e amadureceu em
meio àquelas promessas ungidas sobre a carcaça das autocracias na
periferia do capitalismo.
Se o governo chinês foi confrontado pelos protestos de massa de 1989,
o desmantelamento dos coletivismos burocráticos no Leste europeu (o
chamado “socialismo real”) em Praga, Budapeste, Berlim e Leipzig (onde
uma onda de violência esteve perto de ocorrer) foi protagonizado pelas
multidões e bandeiras nacionais que sagraram o ritual coletivo da queda.
Esses eventos conferem à data boa parte do significado histórico
presente no imaginário político, como uma espécie de emanação autêntica e
em boa medida pacífica da sociedade civil (ainda que em Timișoara,
Bucareste e Sibiu as mobilizações tenham implicado uma espiral de
violência nas ruas). Além disso, junto à tradicional narrativa do
protagonismo civil, certamente devemos observar a completa ineficiência
do antigo establishment político, que Stephen Kotkin chama de
“sociedade incivil”, realçando que a incapacidade econômica e política
dos governos também desempenhou um papel importante no colapso daqueles
regimes.
Em uma perspectiva mais ampla, a construção democrática também
articulou na Coreia do Sul as campanhas de junho de 1987, que forçaram
lideranças militares a concessões referentes a eleições presidenciais
diretas, pavimentando o caminho da transição democrática. Na América
Latina, com a dissolução das ditaduras militares, o período marcou os
impasses da transição democrática em países como Bolívia, Argentina,
Brasil, Chile e Paraguai. O quadro normativo pluralista e as
expectativas ligadas ao horizonte da cidadania e à tolerância civil,
então, formaram referências importantes na gramática moral das novas
democracias políticas e seus horizontes inclusivos.
Esse cenário reforçou uma narrativa pedestre e estereotipada na
ideologia do capitalismo contemporâneo. As iluminações da razão burguesa
e do juste milieu liberal encarnado na nova cidadania passaram
a contrastar com uma mistura de estagnação, atraso, ineficiência, pouca
competitividade e despotismo do passado. No horizonte, ganhava forma
uma espécie de limbo socioeconômico que deveria ser cruzado pelos países
periféricos rumo à completa integração e redenção das “sociedades
abertas” dos países centrais. Contudo, para além desse imaginário,
contradições históricas matizaram e colocaram em movimento um drama
dialético encenado sobre as ruínas. No poema Totul (“Tudo”) de
1984, a escritora romena Ana Blandiana expõe o leitor a um inventário de
itens da sociedade de massas, em uma estranha simbiose entre o
espetáculo (como objetos da Adidas e imagens na televisão) e a
degradação (comidas estragadas, enlatados baratos, óleos de qualidade
duvidosa, corrupção, mercado negro, etc.). Não se trata apenas da
estilização, em registro irônico e crítico, do cotidiano no fim da Era
Ceauşescu. Trata-se, também, de um enfoque sobre as contradições
subjacentes às novas aspirações de consumo e de democratização durante a
transição.
O teórico cultural croata Ozren Pupovac chama a transição de uma caricatura temporal, ou seja, um estado de suspensão que represa o presente em uma espécie de “começo sem fim”, entre a fuga dos velhos coletivismos burocráticos e as promessas de uma nunca terminada inclusão junto aos centros capitalistas
Nesse sentido, o teórico cultural croata Ozren Pupovac chama a
transição de uma caricatura temporal, ou seja, um estado de suspensão
que represa o presente em uma espécie de “começo sem fim”, entre a fuga
dos velhos coletivismos burocráticos e as promessas de uma nunca
terminada inclusão junto aos centros capitalistas. É como se a “condição
pós-socialista” oscilasse entre um “não mais” (deixando o passado
socialista) e um “não ainda” (ou seja, países ainda não plenamente
integrados à democracia liberal e, no caso do antigo Leste, à imaginada
Europa), carregando uma marca evidente do passado. As narrativas de
Svetlana Aleksievitch vão ainda além, tematizando justamente as
inseguranças diante da precariedade instalada nas antigas repúblicas
soviéticas com o caos econômico de 1992 e a grave crise financeira e
social russa de 1998. Então, em vez do “socialismo real”, o
“neoliberalismo real”.
Na América Latina, privatizações e duros ajustes fiscais diante do
déficit fiscal e do combate à inflação crônica marcaram quadros sociais
especialmente graves no Brasil, Peru (“Fujishock”) e Argentina (na
esteira da recessão e da hiperinflação entre 1988 e 1989 e das reformas
neoliberais de Menem). Se o Plano Real brasileiro e as “reformas
gerenciais” chegaram a pavimentar algum caminho na arquitetura
socioeconômica depois dos desastres nas sucessivas crises do fim dos
anos 1970 e 1980, a região não ficou imune a uma espécie de “déficit
democrático” das transições. Em suas pesquisas dos anos 1990, o
cientista político Guillermo O’Donnell caracterizava as novas
democracias como regimes que atendiam a critérios normativos da
democracia, como competição política, liberdades civis, participação,
imprensa livre e contestação pública (basicamente, critérios da célebre
poliarquia de Robert Dahl), mas evidenciavam processos precários de
consolidação institucional na medida em que a verticalização produzida
pelo poder majoritário e sobretudo a pouca transparência dos
procedimentos de representação do sistema político podem se sobrepor à
horizontalidade da rede de instituições relativamente autônomas dos
poderes, minando a rotinização de procedimentos das “sociedades abertas”
e tornando-as suscetíveis a uma combinação explosiva de crises
institucionais e dificuldades socioeconômicas.
A sorte e os infortúnios da democratização política, mais do que um
quadro confinado às periferias do capitalismo, ficam como legado das
agendas dos anos 1980. Por isso, os espectros que rondam as “sociedades
abertas” são inseparáveis do atual esfumaçamento das miragens de
estabilidade democrática tão propagadas no período. A globalização
neoliberal tem sido chacoalhada desde 2008 pela crescente precarização
da vida contemporânea. Com ela, se a crise de representação e de
confiança em relação ao establishment dos sistemas democráticos
tem encontrado expressão difusa nas ruas de 2009-2013 e nos tumultos de
2018 (no Brasil e na França), surge um cenário alimentado por
cantilenas anti-establishment apoiadas em ímpetos autoritários
instalados no sistema pela sanção das urnas e/ou pela urdidura de
decretos. Olhar para os processos sociais e a ciranda de promessas
disparadas após 1989 à luz dos “deslizes autoritários”[1]
construídos pela atual tensão gestada no interior das próprias
democracias liberais é a oportunidade para discutir as realizações, os
fiascos e, sobretudo, a irrealidade dos discursos triunfalistas que
circunscreveram um período cujos significados parecem, agora, embaralhar
as aspirações liberais diante de pesadelos iliberais.
[1] https://www.uwestminsterpress.co.uk/site/chapters/10.16997/book30.h/
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* Felipe Ziotti Narita é pesquisador de pós-doutorado da USP
Jeremiah Morelock é sociólogo do Boston College (EUA)
Jeremiah Morelock é sociólogo do Boston College (EUA)
Fonte: https://jornal.usp.br/artigos/ruinas-e-ideologia/ 08/01/2019
Imagem da Internet: Foto: Gerard Malie
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