P. Gonçalo Portocarrero
de Almada*
«Isto é um escândalo! É melhor não ir à
igreja: vive assim, como ateu. Mas, se vai à igreja, […] dê um verdadeiro
testemunho,
não um contratestemunho».
Nem sempre é fácil a relação da Igreja com os
meios de comunicação social. Às vezes, reconheça-se, por culpa da própria
entidade eclesial, quando não se expressa da melhor forma; mas, geralmente, é
porque a mensagem cristã é deturpada no modo como é veiculada por alguma
comunicação social.
Veja-se, por exemplo, o que aconteceu com as
palavras proferidas pelo Papa, na primeira audiência geral deste ano. Como
muito bem apurou André Abrantes Amaral, Francisco, no passado dia 2, disse:
«Quantas vezes vemos o escândalo criado por aquelas pessoas que vão à igreja e
ficam lá todo o dia, ou vão lá todos os dias, e depois vivem odiando os outros,
ou falando mal das pessoas. Isto é um escândalo! É melhor não ir à igreja: vive
assim, como ateu. Mas, se vai à igreja, viva como filho, como irmão, e dê um
verdadeiro testemunho, não um contratestemunho».
O sentido óbvio das palavras do Papa
Francisco é o de que a vida cristã não se resume a umas quantas práticas
piedosas, mas exige um comportamento coerente com os princípios e valores
cristãos e, portanto, quem não queira assumir essas exigências, melhor é que
não se engane a si próprio, indo à igreja e repetindo umas quantas orações,
porque não é por isso que é cristão.
Mas a notícia, tal como foi divulgada pela
imprensa, não só não transmitia esta ideia como até fazia crer o contrário: “O
Papa Francisco afirmou que é preferível viver como ateu do que ir todos os dias
à igreja e passar a vida a odiar e criticar os outros, acrescentando que o
melhor é nem ir à igreja”! Ou seja, a ideia que uma certa imprensa passou é a
de que o Papa disse que é preferível ser ateu e que o melhor é nem ir à igreja!
Claro que, ante uma tal conclusão, os ateus embandeiraram em arco, supondo que
até o Papa Francisco reconhece que a vida de um ateu pode ser mais virtuosa do
que a de um católico que frequenta assiduamente a igreja!
A enviesada exegese das palavras pontifícias,
talvez ambíguas na sua forma, mas obviamente correctas na sua essência, impediu
que os ateus se apercebessem da conclusão lógica desta mensagem de Francisco.
Com efeito, se o Papa diz que uma pessoa que odeia as outras não é católica,
mas sim ateia, na realidade está a afirmar que a caridade é uma característica
essencial, senão mesmo exclusiva, da fé cristã, enquanto o ódio e a
maledicência são atitudes próprias dos não-crentes, nomeadamente dos ateus.
Esta conclusão, que é óbvia, não é de facto abonatória dos que não acreditam em
Deus. Felizmente, como os ateus estavam tão entusiasmados com o que julgavam
ser as palavras do Papa Francisco, nem sequer repararam no verdadeiro sentido dessa
sua mensagem que, longe de os canonizar, ou preferir em relação aos crentes
menos coerentes, os considera como aqueles que habitualmente passam a vida a
odiar e a criticar os outros.
Outro caso recente foi o provocado por uma
reportagem natalícia do Observador, em que constavam umas alegadas declarações
de D. Manuel Linda, Bispo do Porto, e do Padre Anselmo Borges, sobre a
virgindade de Maria. Da leitura desse artigo depreendia-se que ambos negavam o
dogma que afirma que a Mãe de Jesus, não obstante a sua maternidade, é sempre
virgem. Ante uma tal incoerência choveram, como não podia deixar de ser, os
protestos mais ou menos veementes dos crentes, indignados pelo que parecia ser
uma escandalosa heresia, publicamente proferida por dois clérigos, tendo um dos
quais, como bispo diocesano, graves responsabilidades eclesiais.
A primeira reação, no Observador, a essa
reportagem, foi a ‘entrevista’ realizada a Bento XVI
(https://observador.pt/opiniao/bento-xvi-jesus-cristo-e-filho-de-uma-virgem),
esclarecendo o que sobre a matéria afirma a Igreja, pela suprema voz do papa
emérito, que é também o mais importante teólogo católico da actualidade.
Teve-se, contudo, o cuidado de não fazer nenhum juízo sobre os alegados autores
das polémicas declarações, porque a tanto obrigava o princípio jurídico e moral
da presunção de inocência, bem como a condição clerical de ambos, que exige, em
nome da comunhão eclesial, redobrada prudência, pelo menos enquanto as supostas
declarações não fossem pelos próprios desmentidas ou confirmadas.
Felizmente, os esclarecimentos depois
prestados, pelo referido Senhor Bispo e corroborados pelo próprio Observador,
foram elucidativos de que tudo não tinha passado, afinal, de um mal-entendido (https://observador.pt/2018/12/27/a-virgindade-de-maria-e-o-bispo-do-porto/).
Com efeito, as posteriores declarações do prelado foram suficientes para
dissipar quaisquer dúvidas, na medida em que estão em absoluta conformidade com
o entendimento que da fé católica faz o magistério da Igreja.
Os esclarecimentos dados pelo dito Senhor
Padre também foram muito esclarecedores, mas em sentido contrário,
infelizmente. Ou seja, tendo confirmado ao Observador o que nessa reportagem
lhe tinha sido atribuído e que constitui, objectivamente, uma afirmação
contrária à fé, tudo leva a crer que incorreu, salvo melhor opinião, numa
contradição insanável com a doutrina católica. Com efeito, se se verificar, por
quem de direito, que houve, de facto, uma consciente, voluntária e reiterada
negação de um dogma da fé, as competentes autoridades eclesiais não poderão,
obviamente, ignorar as correspondentes consequências canónicas.
Segundo o cânone 751 do Código de Direito
Canónico, “diz-se heresia a negação pertinaz, depois de recebido o baptismo, de
alguma verdade que se deve crer com fé divina e católica”, como é a perpétua
virgindade, também física, de Maria, Mãe de Jesus. Como se exige a pertinácia
no erro, só pode ser formalmente declarado herege o fiel que, tendo feito uma
afirmação contrária a uma verdade de fé, tenha sido devidamente advertido da
incompatibilidade dessa sua declaração com a fé cristã e, consciente e
voluntariamente, a mantenha. Neste caso, incorre na sanção canónica prevista no
cânone 1364: a excomunhão latae sententiae, ou automática, a que
acresce, para os clérigos, a perda de “poder, ofício, cargo, direito,
privilégio, faculdade, graça, título, insígnias, mesmo meramente honoríficas”
(cânone 1336).
É importante que se diga que a Igreja, em
caso algum, nega a nenhum fiel, seja clérigo ou leigo, a total e absoluta
liberdade de pensamento e de expressão. Portanto, qualquer católico tem toda a
liberdade, que a Constituição portuguesa reconhece a todos os cidadãos, de
pensar e de se exprimir como entender. Mas, naturalmente, à Igreja corresponde
idêntica liberdade: não se lhe pode negar o direito de reconhecer, ou não, como
seu ministro, ou fiel, uma determinada pessoa. Neste sentido, assiste-lhe a
faculdade de conceder, ou retirar, as credenciais que habilitam alguém para o
exercício de funções eclesiais.
Também outras instituições, públicas ou
privadas, respeitando a liberdade de pensamento e de expressão dos seus
membros, podem legitimamente considerar que alguém, que expressa publicamente
opiniões contrárias aos seus princípios, ou incorre em atitudes indignas do
cargo que ocupa, não está em condições de ser seu representante, ou porta-voz
dessa entidade. Os fiéis têm direito a que os ministros católicos, padres ou
bispos, sejam legítimos intérpretes da doutrina da Igreja e fiéis porta-vozes
do seu magistério.
Não se trata, portanto, de julgar ninguém –
quem sou eu para o julgar?! – nem muito menos de impor razões filosóficas ou
teológicas opináveis. Trata-se, apenas, de recordar uma exigência ética, que
obriga ao repúdio da duplicidade farisaica, em nome da coerência. Se um clérigo
decide divergir de uma verdade de fé essencial, o menos que se lhe pode pedir é
que rectifique, ou então tenha a honestidade – para não dizer a decência – de
se demitir das funções eclesiais que exerce.
Não em vão o Papa Francisco considera o
clericalismo um dos principais males da Igreja actual. Há clericalismo quando,
ante um caso de pedofilia, a hierarquia preocupa-se mais em proteger o
sacerdote prevaricador do que as suas vítimas, que deveriam ser o alvo
prioritário da solicitude pastoral. Um clérigo, porque o é, não pode beneficiar
de uma escandalosa impunidade em questões morais ou doutrinais. Na Igreja, o
estatuto sacerdotal não pode ser sinónimo de privilégios, mas de acrescidas
responsabilidades. Se, como se costuma dizer, noblesse oblige, muito
mais obriga a condição presbiteral e episcopal.
Em boa hora Francisco, ao mesmo tempo que
convidou os maldizentes à conversão, condenou severamente a hipocrisia de quem
se diz cristão e nega, com as suas palavras, a fé da Igreja. Ou, pior ainda,
como sacerdote prega opiniões que são contrárias à fé eclesial. Também “Isto é
um escândalo! É melhor não ir à igreja: vive assim, como ateu. Mas, se vai à
igreja, […] dê um verdadeiro testemunho, não um contratestemunho”!
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*Presbítero.Nasceu em Haia, Holanda, a 1 de Maio de
1958. Licenciou-se em Direito na Universidade de Madrid (Complutense) e,
posteriormente, doutorou-se em Filosofia pela Universidade Pontifícia da Santa
Cruz, em Roma. Escritor. Cronista em Portugal.
Fonte: https://observador.pt/opiniao/o-papa-o-bispo-e-o-padre/
12/01/2019
Imagem da Internet
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