*EUGÊNIO BUCCI
Em vez de se defender pela negativa, deve partir para a autocrítica pública, aberta e radical
“Ma non vivere di lamento
come un cardellino accecato”
Giuseppe Ungaretti
Está
certo que o contexto lá fora não ajuda. Polônia, Hungria, Áustria,
Rússia, Turquia, Estados Unidos e outros países mostram a ferocidade de
um novo conservadorismo raivoso: nacionalista, xenófobo e autocrático.
Quanto às plataformas autointituladas “progressistas” (esse adjetivo
meio curinga), descambam em farsas bonapartistas e métodos sangrentos,
como na Nicarágua ou na Venezuela. Nesses casos, o bonapartismo é tão
farsesco e a sanguinolência tão metódica que os resquícios de
“progressismo” já vão longe, como a poeira deixada pelas patas do cavalo
de Simón Bolívar. O tal “progressismo” se degrada em ditaduras que não
cultivam nenhum valor humanista.
Também no Brasil, o cenário não
ajuda. Nas eleições do ano passado, as agremiações de esquerda não foram
meramente derrotadas: foram sentenciadas a uma desmoralização
prolongada, condenadas ao papel incômodo de motivo de chacota, de ódio
ou de desprezo intelectual. Os militantes que ainda não perceberam a
tragédia que os engoliu se refugiam num gregarismo messiânico. Põem a
consciência para hibernar, em pleno verão, enquanto uma nova direita
brucutu, herdeira da ala mais fascista da ditadura militar, vai tomando
posse das fantasias tanáticas de milhões de brasileiros. Essa direita
hostiliza a imprensa, escarnece da cultura dos direitos humanos e agora
dá as cartas.
Definitivamente, o contexto não ajuda. O entorno é
adverso. A intuição do militante socialista o impele na direção de um
único verbo: resistir. Acontece que, nesta hora, a intuição reativa
induz a erro, é má conselheira. A saída é contraintuitiva: a esquerda – e
o PT especialmente – precisa demolir os muros dentro dos quais se
encolheu. Em lugar de se defender pela negativa, deve partir para a
autocrítica – pública, aberta e radical.
Aí está a única agenda
que conta, a única que pode abrir novas pontes de diálogo com a
sociedade e reafirmar os valores da solidariedade e da liberdade além do
mercado. Debater os erros programáticos, os estelionatos eleitorais e
os crimes de corrupção cometidos durante os governos liderados pelo PT
fará bem ao PT e à esquerda. Sem isso não haverá superação. Recusar essa
agenda significará validar as infâmias dos que querem varrer os
socialistas da terra brasileira, como numa confissão de culpa de amplo
espectro. Ou a esquerda parte para a sua autocrítica, ou será
fossilizada.
Mas como partir para a autocrítica? Quem mais se
opõe à ideia é a direção do PT, sob a alegação de que isso favoreceria a
direita e exporia o partido a uma expiação em praça pública. Sofisma.
Em lugar do debate franco, a cúpula petista propõe o mutismo, que só faz
agravar o isolamento. Em vez de esclarecer o que interessa ao campo
democrático, insiste na repetição dos bordões vazios que servem apenas
para tergiversar (como matraquear que o PSDB cometeu os mesmos “erros”,
etc.). Nada poderia ser pior para a esquerda do que o silêncio
devocional.
A cúpula prefere, como nos versos de Ungaretti,
“viver se queixando, viver de lamentações, de lamúrias, de resmungos,
como um pintassilgo cego”. As “aristocracias” do trabalhismo e seu
instinto (equivocado) de preservação talvez sejam o maior entrave para o
futuro da esquerda. Há cem anos, na Europa, a “aristocracia operária”,
apegada a seus privilégios mesquinhos, escreveu páginas de traição na
história da social-democracia. Agora, por um capricho dessa mesma
história, algo de parecido aprisiona o PT. Um processo de autocrítica
radical ameaçaria o lugar cativo da elite partidária e esta,
classicamente, prefere o naufrágio a perder suas acomodações nas cabines
de primeira classe.
Está cada vez mais explícita a dificuldade
que certas camadas dirigentes têm em promover a democracia interna. Há
décadas, agrupamentos de esquerda (não todos) padecem desse déficit
democrático muito particular, que decorre diretamente dos obstáculos
criados por “aristocracias” sindicais ou partidárias contra a democracia
interna. Agora, quando seus aparelhos estrebucham, a “aristocracia”
teima. O que farão, então, os partidos de esquerda? O que fará a
esquerda? Saberá compreender a responsabilidade que lhe cabe?
Organizações
de esquerda que não se renovam, não fomentam a alternância dos seus
quadros dirigentes e não dinamizam a democracia interna são incapazes de
liderar a modernização da sociedade e o aprimoramento do Estado de
Direito. Não por acaso, quando instalados no governo, no Parlamento ou
em cargos públicos, alguns dos agentes dessas organizações terminam por
aboletar-se em feudos dentro do Estado e aí reproduzem, com poucas
adaptações, os vícios ancestrais do patrimonialismo. Nesse ponto, é bom
sublinhar, as práticas corruptas e o déficit democrático andam de mãos dadas (mesmo que às escondidas).
E
agora? O PT vai abrir a discussão? Vai reciclar seu corpo dirigente?
Vai punir internamente (mas publicamente) os filiados que, em funções
partidárias ou públicas, cometeram crimes de corrupção? O partido
enfrentará a sua quota de déficit democrático? Ainda nesse
tópico, fará a crítica pública das ditaduras da Venezuela e da
Nicarágua? E as outras agremiações de esquerda? Entrarão abertamente
nesse debate?
Se a resposta a essas perguntas for “não”, a
esquerda brasileira perderá a chance de se credenciar como oposição
consequente ao governo direitista de Jair Bolsonaro. Ficará
choramingando em suas catacumbas imaginárias e pondo a culpa nos outros,
sempre nos outros, como os pintassilgos cegos e os adolescentes
mimados.
No fim, a democracia também sairá perdendo, porque sem
uma esquerda respeitada a democracia se enfraquece. Se a esquerda não se
libertar do seu silêncio obsequioso, será corresponsável por mais esta:
o encolhimento da cultura democrática.
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*JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP
Fonte: https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,a-responsabilidade-da-esquerda,70002665066
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