Eduardo Hoornaert*
Certa vez, ao discutir questões filosóficas com um colega num gabinete da
Universidade de Cambridge, na Inglaterra, Ludwig Wittgenstein, com sua
conhecida impetuosidade, gritou: ‘Há um elefante na sala’. Com isso, ele quis indicar
que seu interlocutor, ao que lhe parecia, não enxergava o óbvio.
A imagem desse elefante me parece apropriada para passar um olhar crítico
pelos vastos campos da cognição na civilização ocidental. Desde os primeiros
esboços na Mesopotâmia, a impressão que se tem é que o próprio processo
civilizador impede de enxergar elefantes de Wittgenstein, principalmente o
elefante da escravidão. Na Grécia clássica, que nos lega a filosofia, a
escravidão é onipresente, mas invisível. Dizem os historiadores que, na cidade
de Atenas em tempo de Péricles (séc. V aC), cinco mil cidadãos vivem sustentados
por cem mil escravos, um número aproximativo, pois acerca de escravos não existe
registro escrito. No Liceu de Atenas (fundado por Aristóteles no século IV aC) não
é difícil se imaginar um vai-e-vem incessante de ‘pedagogos’, escravos que trazem
e levam crianças e jovens de famílias boas para participar de exercícios
educativos. Pelo pátio do referido Liceu, homens e mulheres se cruzam, a preparar
as mesas, servir comidas e bebidas, limpar o chão e as latrinas. Os estudantes
não lhes dão atenção. Nem o próprio Mestre Aristóteles, que lhes dedica apenas umas
linhas de sua ‘Política’ (não cito textualmente): ‘esses nossos servidores
fazem o que lhes compete fazer para o bom andamento do Liceu e isso lhes dá
satisfação. A natureza cria uns para mandar e outros para obedecer. Os ‘servi
ex natura’ (servos por natureza) nos são úteis, e mais não digo, já que temos
que nos conformar com as leis da natureza, que dispensam reflexões filosóficas’.
Em outras palavras: Aristóteles deixa o colossal elefante de Wittgenstein perambular
tranquilamente por seu território.
Séculos depois, o teólogo cristão Agostinho (séc. V dC) não pensa diferente.
Ele se mostra triste com os destinos da humanidade pecadora, essa ‘massa
damnada’ herdeira do ‘pecado original’ de Adão e Eva. Mas não parece afetado
pelo fato que, na guarnição militar costeira romana, sediada em Hipona, onde
ele é bispo, se despacham rotineiramente grupos de africanos algemados, com
destino aos mercados de escravos existentes na Itália. O teólogo lamenta o
‘inferno’ dos pecadores, mas não parece ouvir os lamentos e sussurros de
africanos a serem embarcados para o inferno da escravidão romana. O mestre
cristão repete basicamente a argumentação de Aristóteles, só que atribui a
escravidão ao pecado, o pecado de Cam. Comentando os versículos 21 a 25 do
livro 9 de Gênesis, Agostinho explica que Cam, o filho ‘etíope’ (leia: negro) de
Noé, não trata seu pai, desnudo e embriagado em baixo da lona, com o devido respeito.
Este, ao acordar e ouvir o relato, condena peremptoriamente Cam e todos os seus
descendentes:
Maldito seja Canaã (filho de
Cam)
Seja ele escravo de seus irmãos.
Assim a carruagem dos tempos vai invariavelmente acompanhada pelo lento e
pesado passo do elefante invisível de Wittgenstein, como nos lembra o escritor
português José Saramago em seu ‘Ensaio de Cegueira’ (1995): as pessoas veem,
mas não enxergam. De modo ainda mais premente, no conto ‘A roupa nova do Rei’,
o escritor dinamarquês Hans Christian Andersen (1837) narra que o alfaiate do
rei, ao confeccionar uma nova roupa, ‘nunca vista’, para o rei, adverte: ‘só os
inteligentes conseguirão enxergar a nova roupa do Rei’. Assim, este pode passear
pelado pelas ruas sem que ninguém diga nada. Só uma criança grita: ‘o rei está
nu’.
A permanência do elefante de Wittgenstein na cultura ocidental levanta
uma questão filosófica. Como se chega a não enxergar uma evidência? Uma
pergunta que toca num dos pontos fundamentais da filosofia, a epistemologia. Enfim,
de que modo chegamos a conhecer algo? Como se estrutura nosso conhecimento
(nossa cognição)? A resposta secular, dada pela filosofia: conhecemos por meio
da informação, seja direta, por meio dos cinco sentidos, seja indireta, por
falas, escritas ou imagens. As informações diretas, físicas, geram diretamente a
evidência. Ou seja, o melhor meio de adquirir conhecimento consiste na observação
atenta das coisas, por meio dos cinco sentidos.
E as informações indiretas, por meio de falas, escritas ou imagens? Em
que condições elas geram evidências? Aristóteles, em sua ‘Ética’, ao afirmar
que a verdade consiste em considerar ‘aquilo que é’ (id quod est), não deixa de
observar que essa consideração implica num imperativo ético: nem sempre ‘aquilo
que é’ me agrada, está em conformidade com meus interesses. Daí a complicação.
Aqui estamos diante de uma questão em cima da qual os filósofos se
debruçam desde séculos: nas informações costumam entrar imperativos não éticos,
embora comumente revestidos de moralidade, como são, por exemplo: interesses
pessoais, vantagens financeiras, luta pelo poder e exercício do poder,
obediência a ordens dadas, compromissos de vida já assumidos, opção por modelos
autoritários, ou simplesmente acomodação com situações injustas existentes. A
dificuldade consiste no fato que, na maioria dos casos, esses discursos se
apresentam como sendo designativos, ou seja, pretendem expressar as coisas como
elas são efetivamente. Eis o engodo que poucos parecem perceber. Discursos
aparentemente designativos podem ocultar o que se pretende efetivamente: emitir
uma ordem, expressar um desejo, uma exortação, um sentimento, uma intuição, uma
imaginação, um sonho, um projeto, um cálculo, etc. São discursos que não
revelam, mas escondem, contêm intencionalidades não confessas, procuram exercer
um domínio sobre as mentes humanas, com a finalidade de fazer passar
determinados posicionamentos, formar consensos, enfim, enganar as pessoas.
Não é difícil constatar que a maioria dos discursos, hoje emitidos por poderes
políticos e econômicos, serve para justificar imperativos não éticos. Isso cria
uma situação dramática, que todos e todas podemos observar diariamente em
contatos com nossos vizinhos. As pessoas acabam se metendo num labirinto de
palavras tão intricado, que elas não encontram mais a saída. Elas se parecem
com aquelas moscas que voam para cá e para lá dentro de uma garrafa aberta. A
boca da garrafa está aberta, ou seja, há saída. Mas as pessoas não a encontram,
de tão confusas e desorientadas, tão desacostumadas a refletir. Elas costumam,
desde muito, entregar sua inteligência ao ‘Jornal Nacional’ da TV Globo ou às
manchetes da revista Veja. Desse modo mal escapam ao bombardeio diário de Fake
News, que hoje toma conta dos noticiários. Eis uma situação que o sociólogo
polonês Zygmunt Bauman qualifica de ‘líquida’. Não há mais verdade, só há
notícias.
Fico pensando: como é que esse tema da complexidade cognitiva ficou por tanto
tempo fora das cogitações de eminentes filósofos clássicos da tradição
ocidental, como Aristóteles e Agostinho, que – como escrevi acima – nem
conseguem enxergar o elefante de Wittgenstein a passear por seus territórios?
Como é e que eles não alertam com o devido vigor diante dos perigos de uma
cognição pervertida? Mesmo muitos filósofos modernos parecem omissos nesse
ponto, ao dar a impressão de confiar demais em ‘informações’. Quem contempla o
atual cenário do universo cognitivo, verifica com espanto quão facilmente as
pessoas se deixam prender nas redes de discursos enganosos. Como já dizia Maquiavelli,
as pessoas costumam ficar indefesas (ele fala até em ‘disponíveis’) diante de
enunciados emanados de fontes que lhes parecem confiáveis. Voltaire ainda
acrescentou: ‘mentez, mentez toujours: il en restera toujours quelque chose’
(mintam, mintam sempre: algo há de ficar). E Goebbels, ministro da informação
do governo nazista, completou: ‘uma mentira repetida mil vezes se torna
verdade’.
Afinal, tivemos de esperar a revolução linguística do século XX para ver
aparecer uma geração de filósofos disposta a encarar de frente a questão
cognitiva e se propor a premunir as pessoas contra palavras enganosas,
esclarecer a perversidade de determinados usos da linguagem e precaver diante
de palavras pretensamente designativas. Não é por acaso que um dos analistas
políticos mais argutos de nossos dias seja Noam Chomsky, um linguista. Nem falo
em Slavoj Zizek, Bakhtin, Ricoeur, Bourdieu e outros.
Esses filósofos linguistas nos propõem um exercício diário, o de limpar
nossa cabeça. Ninguém se engane, a ‘Fake News’ veio para ficar e se desenvolver
sempre mais, pois repousa sobre uma tecnologia em pleno desenvolvimento, que
ainda não revelou todas as suas potencialidades. Vivemos em sociedades cada vez
mais ‘informáticas’, onde não só enormes conglomerados informativos derramam
sobre nós diariamente um fluxo ininterrupto de informações, mas onde o twitter
permite que cada um(a) de nós emita, por sua vez, informações e afirmações, a
seu bel prazer. Nossa única defesa reside em nosso cérebro, como nos lembra Mao
Tse Tung:
Que os pássaros façam ninhos nas
árvores
Você não pode impedir.
Mas que eles façam ninhos em seu
cabelo
Isso você pode impedir.
-------------------
* Historiador. Escritor.
Fonte: http://eduardohoornaert.blogspot.com/ 13/01/2019
Imagem da Internet
Nenhum comentário:
Postar um comentário