José de Souza Martins*
"É o abismo entre o cálculo e o
vivencial que possibilita o desvendamento das invisibilidades da pobreza, as
ocultações
da distância entre os que, de um lado, pensam, analisam
e explicam o
que a pobreza é tecnicamente e, de outro,
os que padecem suas consequências."
A
recém-divulgada Síntese dos Indicadores Sociais, do IBGE, sobre a pobreza no
Brasil nos mostra que 54,8 milhões de pessoas viviam com menos de R$ 406 por
mês em 2017. Situam-se aquém dos US$ 5,5 por dia, que o Banco Mundial define
como marco da pobreza.
O mesmo banco indica que vivem em estado de extrema pobreza os que recebem o equivalente a US$ 1,90 por dia, R$ 140 por mês. São 15,2 milhões de pessoas nessa situação, em 2017, um aumento de 1,7 milhão em relação ao ano anterior, mais do que a população de cada uma de 14 capitais brasileiras ou do que várias outras grandes cidades. Na melhor das hipóteses, essa importância dá apenas para prolongar o advento da morte por carências inadmissíveis, a maior das quais é a de alimentação. Trata-se de um nível genocida de pobreza.
O mesmo banco indica que vivem em estado de extrema pobreza os que recebem o equivalente a US$ 1,90 por dia, R$ 140 por mês. São 15,2 milhões de pessoas nessa situação, em 2017, um aumento de 1,7 milhão em relação ao ano anterior, mais do que a população de cada uma de 14 capitais brasileiras ou do que várias outras grandes cidades. Na melhor das hipóteses, essa importância dá apenas para prolongar o advento da morte por carências inadmissíveis, a maior das quais é a de alimentação. Trata-se de um nível genocida de pobreza.
Não
obstante, no interior dessa enorme miséria, há também hierarquias e
desigualdades sociais, do mesmo tipo que separa ricos e pobres. Abaixo da linha
da pobreza, mulheres sem cônjuge e com filho são 56,9% do total, sendo as
pretas ou pardas 64,4% e as brancas 41,5%. Se a cor da pele vitima mais aquelas
do que estas, nem por isso é a cor o fator decisivo de vitimação dessas
mulheres. Apesar das diferenças, é alta a proporção tanto de pretas e pardas
quanto de brancas.
Outros fatores
são mais decisivos na causa da pobreza. A proporção de casais com filhos nessa
situação é de 30,4%, o que apenas sugere que a solidão da mãe sem marido ou
companheiro não é o único nem decisivo fator da pobreza extrema. Mesmo que não
existissem diferenças nas proporções por cor da pele, ainda assim existiriam
graves fatores de empobrecimento. Não é o fato de que haja preconceito de cor
no Brasil que explica a extrema pobreza. Ele apenas a agrava.
Dados
estatísticos sobre a pobreza, como esses, indicam tendências gerais. Dizem
pouco sobre o que a pobreza é. Referem-se ao quanto, e não ao como. Referem-se
à pobreza calculada, mas não à pobreza vivida. É o abismo entre o cálculo e o
vivencial que possibilita o desvendamento das invisibilidades da pobreza, as
ocultações da distância entre os que, de um lado, pensam, analisam e explicam o
que a pobreza é tecnicamente e, de outro, os que padecem suas consequências.
Nesse
meio estão as estratégias de sobrevivência de quem tem menos do que o
necessário para viver, de quem está aquém do que faz de um homem, de uma
mulher, de uma criança, um ser humano. Nele estão também as insuficiências e
limitações dos métodos de avaliação e cálculo das quantidades que revelam
demográfica e economicamente, mas também ocultam o que a pobreza sociologicamente
é.
Se fosse
possível inserir o "como" nos cálculos do quanto, teríamos um retrato
mais realista da pobreza. Provavelmente, os casos mais dramáticos, mais graves,
do que o IBGE classifica como de pobreza extrema, não entram nas contas pelas
quais se mede o nível de pobreza de parte da população brasileira. São os dos
que não têm domicílio, referência das amostras de pesquisas desse tipo.
Caso dos
que moram nas ruas, embaixo de pontes e viadutos. Em cidades como São Paulo,
multidões dormem sob o Minhocão, o quilométrico viaduto que atravessa a cidade,
ou sob marquises como a da Faculdade de Direito ou à porta de lojas da praça
Antonio Prado, onde foi a igreja e o cemitério da Irmandade de Nossa Senhora do
Rosário dos Homens Pretos.
Há os que
moram em gavetas vazias de túmulos de cemitérios como o do Araçá, mulheres e
homens, tendo como vizinhos de leito os cadáveres dos que ali repousam. Caso de
uma senhora preta já de idade, com quem conversei a respeito enquanto fazia sua
maquiagem matutina para sair à rua, pois é proibido lá permanecer. Ou um jovem
branco, de cerca de 20 anos de idade, a quem perguntei se não tinha medo de
passar a noite entre dois mortos, o da gaveta de cima e o da gaveta de baixo.
"Não", explicou-me ele, "nunca me fizeram mal. Estou aqui por
causa dos vivos, os que estão lá fora. Deles eu tenho medo".
Há os que
moram nos barracos mais miseráveis das favelas, onde há uma hierarquia social
que reproduz e agrava as desigualdades da sociedade brasileira. Pobre
explorando pobre. Ou gente não tão pobre fazendo a mesma coisa. A maioria dos
animais domésticos das grandes cidades brasileiras tem melhor nível de vida e
melhor assistência médica do que moradores de favelas de São Paulo, cujas
condições de vida conheço.
Numa
delas, os "cômodos" de restos de madeira ou de papelão estão
distribuídos ao longo de um canal de esgotos, que os atravessa por dentro.
Geralmente, gente jovem, gente que trabalha. Gente cuja miséria barateia o
custo do trabalho nos setores que a emprega, como o de catadores de papel ou de
metais para reciclagem.
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José de Souza Martins é sociólogo, membro da Academia Paulista de Letras e autor de Uma Sociologia da Vida Cotidiana (Contexto), dentre outros. Escreve neste espaço semanalmente
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José de Souza Martins é sociólogo, membro da Academia Paulista de Letras e autor de Uma Sociologia da Vida Cotidiana (Contexto), dentre outros. Escreve neste espaço semanalmente
Fonte: https://www.valor.com.br/cultura/6047867/invisibilidades-da-pobreza
04/01/2019
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