terça-feira, 26 de março de 2024

Consumindo Cuba

 Por EUGÊNIO BUCCI*

 O fracasso de Cuba não é culpa do embargo americano

A tragédia cubana, um tanto melancólica, não se explica pela derrocada das relações de produção, mas pelo esvaziamento das relações de consumo

Frequentadores habituais de Havana reconhecem que a ilha de Fidel Castro enfrenta a sua pior crise. Quase tudo se esvai. Da revolução que tomou o poder em 1959, quando os guerrilheiros de Sierra Maestra marcharam sobre as ruas da capital sob os aplausos de um povo sorridente e esperançoso, resta pouco além de repartições burocráticas, escassez generalizada e gabinetes de vigilância política.

Os maiores entusiastas dessa longa história de arrebatamentos sabem disso. “É desesperador. Ninguém em Havana aponta saídas”, declarou Frei Betto ao jornalista Mario Sergio Conti (Folha de S. Paulo, 1º. de março). O frade dominicano, autor do bestseller Fidel e a religião (Editora Brasiliense, 1985), traduzido em mais de 30 países, inclusive em Cuba, é uma celebridade local.

Basta ele sair por las calles para que venha alguém puxar assunto. O afeto ainda é o mesmo, o calor do olhar e dos abraços ainda aquece, mas os sorrisos perderam o brilho, a esperança minguou e os aplausos escassearam. Nas palavras de Mario Sergio Conti, Cuba está “sem futuro à vista”.

Não é apenas uma estrela que fenece em céu incerto, não é somente um ocaso triste; a perda de vitalidade da saga insurrecional que balançou o mundo há seis décadas tem a envergadura de um evento histórico mais denso, que não podemos desistir de compreendr. A agonia lenta e progressiva tem pelo menos duas dimensões: no plano mais imediato, o das coisas práticas, fracassa um regime e um modo de governar; no plano menos tangível, o que vem abaixo é uma utopia do tamanho do mundo, uma utopia desproporcionalmente maior do que a modesta tripa de terra caribenha onde um dia se instalou em meio a gritos de vitória, jipes claudicantes, charutos rebeldes e mochilas puídas. A derrota que se expressa agora como falta de futuro é a calcinação de um sonho.

Explicações virão. Uns dirão que o bloqueio e as sanções impostas pelos Estados Unidos engendraram o estrago, e estarão certos. Outros sustentarão que o autoritarismo, os vezos ditatoriais e a insensibilidade de um poder que se ilhou de sua própria gente são os responsáveis pelo fiasco – estarão certos também.

O que poucos observadores notarão é que Cuba foi devorada e depois desprezada pela indústria do entretenimento ou, de modo mais preciso, pela indústria do turismo. Se vai morrendo aos poucos, não morre apenas de inanição (vítima do bloqueio) ou de asfixia (vítima de uma ordem autocrática), mas principalmente de déficit de carisma. Seu charme, que encantou visitantes tão distintos quanto o filósofo francês Jean-Paul Sartre e o jornalista brasileiro Ruy Mesquita, diretor do jornal O Estado de S. Paulo, não existe mais. El Malecón perdeu vigor porque perdeu a graça.

Quando se abriu para o turismo sem inibições, a ilha tomou a decisão de entrar para o mercado de viagens recreativas como se fosse um parque temático, uma espécie de Disneylândia socialista. Em parte, a guinada deu certo. Os consumidores afluíram sedentos de aventuras ideológicas. Muitos se deliciavam discutindo conjuntura internacional com o garçom e interpelando o motorista de taxi sobre a luta de classes.

Passar férias naquelas plagas e naquelas praias era como praticar um esporte radical, como experimentar uma clandestinidade sem correr risco de ir para a cadeia. Eram férias inebriantes, como brincar de guerrilha tendo um mojito numa mão e um Cohiba na outra.

No fundo, porém, o frenesi supostamente militante não passava de uma caprichosa modalidade de consumo: os turistas autodenominados “de esquerda” deglutiam com voracidade os dramas humanos do “período especial”, os infortúnios de homossexuais que sofriam perseguição do regime, o heroísmo de famílias que criavam porcos dentro de apartamentos para ter o que comer. Adoravam tudo isso, pois tudo isso fazia parte da luta que venceria a exploração do homem pelo homem.

Os turistas combativos iam para Varadero ou Cayo Largo e saíam de lá com a alma renovada, abastecida de novas fantasias, mais ou menos como quem vai até o NASA Kennedy Space Center para encostar os dedos em naves espaciais ou viaja para a Índia para se submeter a overdoses de meditação transcendental.

Foi então que o país que destronou Fulgencio Batista e seus cassinos alcoolizantes seguiu no mesmo negócio, apenas redecorou as vitrines. Funcionou, ao menos um pouco. Depois, o fetiche da mercadoria se desfez e a concorrência levou a melhor. A Cuba turística se deixou ultrapassar por outras atrações que ofereciam mais adrenalina, como paisagens exóticas da China, ondas perfeitas na Oceania ou a culinária vietnamita.

Pode ser cruel dizer isso, mas é o que é: se Cuba hoje desliza para o malogro, desliza menos porque perdeu um embate político, e mais por ter deixado de ser o objeto do desejo das massas – não das massas proletárias, mas das massas consumidoras internacionais. A sua tragédia um tanto melancólica não se explica pela derrocada das relações de produção, mas pelo esvaziamento das relações de consumo. Os outdoors de Che Guevara, Fidel e Camilo Cinfuegos desbotaram.

*Eugênio Bucci é professor titular na Escola de Comunicações e Artes da USP. Autor, entre outros livros, de Incerteza, um ensaio: como pensamos a ideia que nos desorienta (e oriente o mundo digital) (Autêntica). https://amzn.to/3SytDKl

Publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo.

Fonte:  https://aterraeredonda.com.br/consumindo-cuba/?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=novas_publicacoes&utm_term=2024-03-26

Mark Z. Danielewski, de “Casa de Folhas”: “O livro é meu pequeno monstro que cresceu”

Leonardo Neiva 19 de Março de 2024


Autor analisa sucesso do livro cult “Casa de Folhas”, elogiado por Stephen King, impossível de filmar e que levou 24 anos para chegar ao Brasil


Num início muito semelhante ao de um filme de terror tradicional, os Navidson se instalam em uma nova casa aparentemente comum. Até que o patriarca faz uma descoberta inusitada, senão impossível: a casa é maior por dentro do que por fora. Munido dessa informação, Will Navidson, um fotógrafo de guerra vencedor do Pulitzer, começa a explorar o misterioso labirinto oculto no interior do edifício, que ele registra num documentário.

“Sinto inveja dessa primeira excursão pela casa, de estar exposto pela primeira vez aos seus mistérios”, conta Danielewski em entrevista a Gama. Hoje, 24 anos após a publicação original, a obra, assim como seu autor, segue envolta numa atmosfera de suspense que contribuiu de maneira significativa para o status cult que ganhou ao longo dos anos.

A história dos Navidson o leitor acompanha através de uma análise acadêmica escrita por Zampanò, idoso cego e solitário. Além disso, o relato é entrecortado pelas notas de rodapé de Johnny, funcionário de um estúdio de tatuagem que surrupiou os documentos após a morte de Zampanò. Enquanto acompanhamos essas três linhas narrativas simultâneas, Johnny se debate com uma inconsistência: não há nenhum registro real de que o documentário, os Navidson ou sua casa misteriosa tenham existido.

Além das experimentações narrativas, o livro é repleto de detalhes como notas de rodapé que levam a outras notas de rodapé, anagramas e charadas que, assim como o labirinto no centro da “Casa de Folhas”, inspiram infinitas possibilidades de leitura. Há capítulos em que é preciso rodar o volume constantemente ou colocá-lo frente a um espelho para avançar na leitura. Até a capa esconde uma brincadeira. Ela é menor que o interior do livro, da mesma forma que a casa do título.

Todos esses aspectos ajudam a entender os desafios com que o tradutor Adriano Scandolara e a diagramadora Lilian Mitsunaga tiveram de lidar ao longo de um projeto que levou anos para ser concluído. O trabalho e as particularidades de impressão, como palavras coloridas, também se refletem no preço: a edição limitada sai por salgados R$ 295.

Chamada de “Moby Dick do horror” por ninguém menos que Stephen King, a obra também resiste ao ebook ou a adaptações audiovisuais, embora seu autor esteja contemplando uma complexa versão em audiobook. “Ao mesmo tempo, não sei o que significa. É uma forma de arte diferente? Devo admitir de cara que será uma versão resumida?”, questiona.

Uma das inspirações para a estrutura labiríntica da obra veio com a morte do pai, que lhe inspirou a escrever um poema numa nota de rodapé, direcionando toda a estrutura da obra. Escrito ao longo de dez anos, “Casa de Folhas” na época também dividiu espaço com o trabalho de Danielewski como encanador.

O sucesso do romance — hoje considerado um dos principais exemplos da literatura ergódica, que demanda esforço considerável do leitor —, no entanto, permitiu que se dedicasse integralmente à literatura. Tanto que suas obras seguintes foram os ambiciosos “Only Revolutions” e a série “The Familiar”, que deveria se estender por 27 volumes, mas acabou sendo cancelada no quinto livro.

Considerada uma das obras contemporâneas mais influentes no gênero terror, ela inspirou de livros a músicas, filmes e até videogames. Em 2023, um usuário chegou a criar uma versão alternativa do jogo “Doom” numa casa infestada de monstros, com paredes e cômodos que mudam constantemente de lugar, como no labirinto do livro. “Foi uma forma diferente de se engajar com a obra. Para mim, foi um enorme prazer. Um sentimento de diversão, integridade e sofisticação”, admite Danielewski.

Discutido à exaustão em fóruns ainda no início da internet, hoje o livro parece ganhar nova vida nas redes sociais. No início do ano, uma usuária do TikTok enganou muita gente ao falar sobre um suposto novo documentário de terror da A24, que não passava de uma descrição do falso documentário no coração de “Casa de Folhas”. Na conversa com Gama, Danielewski aborda o legado da obra, sua relação surpreendente com fenômenos recentes como a Inteligência Artificial e como o livro permite que cada leitor mergulhe numa narrativa única de si mesmo.

DarkSide Books
  • G |O que te inspirou a escrever “Casa de Folhas”? Mais de 20 anos depois, sua visão sobre a obra mudou?

    Mark Z. Danielewski |

    As inspirações de “Casa de Folhas” estão dentro do livro, e a singularidade de sua inspiração é tão fantástica quanto tentar encontrar uma resposta final para a questão da casa. A resposta mais complexa é que todo projeto criativo, se seu autor investir em criar algo vital e imediato, não só uma regurgitação de outros formatos, acaba sendo uma fonte interminável de inspirações. Comecei a escrever “Casa de Folhas” faz mais de 30 anos. O livro em si é um catálogo de suas próprias inspirações. Se os leitores reconhecem ou não de onde elas vêm ou como evoluíram ao longo do tempo, não importa muito. Eles respondem à presença delas, percebem que algo vital acontece ali. O livro é meu pequeno monstro que cresceu. E, quando você sai com um amigo próximo, não quer ficar conversando com o pai dele. Pode até achar interessante, mas logo vai querer voltar a falar com seu amigo. Significa que fui saindo cada vez mais de cena. Hoje, as relações que as pessoas constroem com “Casa de Folhas” vão muito além de mim, e é como deveria ser.

  • G |No Brasil, o livro era uma espécie de lenda urbana. Sem uma tradução, as pessoas tinham que comprar de fora e ler em inglês. Você já recebeu mensagens de brasileiros sobre isso? O que espera da reação ao livro?

    MZD |

    Recebi muitas mensagens de leitores brasileiros ansiosos para um dia terem uma tradução para o português. É surpreendente que não tenha acontecido antes, mas acaba sendo um processo orgânico. Escrever “Casa de Folhas” demandou muita energia e também é necessário um esforço enorme para traduzir e publicar. E, pelos amigos brasileiros que tenho, sei que a mente literária está viva e respirando no Brasil. Em termos do que o livro faz formalmente, já existe uma tradição de narrativas ficcionais complexas. Acredito que vai haver uma participação e recepção ativa dos leitores brasileiros. Há pouco tempo, uma leitora veio falar comigo. Ela estava aliviada. Tinha pensado que ia ser algo acadêmico e complexo, mas logo se viu imersa e curtindo. Às vezes, a reputação de “Casa de Folhas” chega na frente da experiência. É um livro que as pessoas costumam gostar de ler. De certa maneira, sinto inveja dessa primeira excursão pela casa, de estar exposto pela primeira vez aos seus mistérios. Então estou animado para saber as reações dos leitores brasileiros. Talvez a gente possa voltar a conversar em alguns anos, e aí você me conta.

  • G |Você se envolveu de alguma forma na tradução para o português? Quais os maiores desafios?

    MZD |

    Na verdade, fui uma espécie de corrimão de apoio. Sempre considerei a tradução uma forma de arte em si mesma, um gesto criativo. Então até quero ajudar o tradutor, mas não ficar no caminho da jornada artística que ele precisa percorrer. Nesse sentido, é uma jornada muito pessoal. Quão longe ele está disposto a mergulhar na escuridão se trata de uma escolha individual.

  • G |Você mencionou que as pessoas chegam com a ideia de que a leitura vai ser complexa. Muitos se surpreendem com a forma como o livro lida com temas como luto, abandono, amor etc?

    MZD |

    O livro te dá permissão constante para não lê-lo. Você pode ler uma nota de rodapé se quiser, mas não é obrigado. Pode voltar para uma determinada página, mas também não precisa. Tudo depende do seu nível de curiosidade. Quando falamos de sentimentos, tendemos a colocar todos num mesmo pote, mas eles são muito diferentes. A sensação que temos ao nos apaixonarmos comparada à de quando o amor se acaba… há uma enorme distância aí. Assim como o labirinto impossível que existe no coração da casa, você pode mapear sua própria jornada, que é particular como os seus sentimentos. Quando uma pessoa tenta me explicar o que acha de “Casa de Folhas”, fico curioso, porque ela está falando de si. Da primeira vez que lê, você geralmente descobre sensações novas. Se ler de novo, talvez comece a ter um diálogo não só com a casa, mas com você mesmo. Por que esses sentimentos surgiram? É por conta da maneira como a casa se move? É um reflexo da história de Johnny ou do legado da minha própria família, que costumo questionar ou evitar? Todas essas coisas podem se tornar parte da experiência.

  • G |Como seus outros livros seguem lógica semelhante, ia perguntar se você acha que a literatura precisa demandar esforço. Mas, com o que você acaba de dizer, te pergunto se é uma maneira de tornar ainda mais individual a jornada do leitor.

    MZD |

    Com certeza. E parte disso é a forma como o livro é rotulado. Uma livraria pode botá-lo na sessão de ficção, outra na de terror, uma terceira na parte acadêmica… isso muda constantemente. Talvez não de um dia ou de um ano para o outro, mas a cada cinco ou dez anos, o livro se transforma em outra coisa. Então o selo da literatura ergódica ainda serve para definir “Casa de Folhas”? Não sei e não é algo com que me preocupo. Mas não acho que seja correto limitá-lo a uma leitura difícil. Encontrei um jovem de 13 anos que leu o livro muito rápido. Ele foi passando as páginas porque amou a história, sem perder tempo com aquilo que não o interessava. Talvez tenha aprendido isso rodando intermináveis streams de vídeo ou os stories do Instagram e TikTok, onde é fácil ignorar coisas. Os jovens são especialistas nisso. Então não dá para definir como leitura difícil. Se a pessoa quiser passar mais tempo lendo ou relendo, talvez se interesse por algumas de suas complexidades.

  • G |Nesses 25 anos, o livro influenciou vários artistas. Desde elogios de Stephen King e referências em livros de autores como Paul Tremblay até videogames. Como você avalia o legado de “Casa de Folhas”?

    MZD |

    Conforme envelheço, me sinto com sorte. Parece que alguns elementos em torno do livro foram altamente providenciais. Trabalho com o mesmo editor desde os anos 90, tive muita sorte de estar ao lado dele. O timing e a forma como o livro saiu, tudo isso importa. Claro, você coloca muito trabalho duro naquilo, mas, considerando a turbulência do mercado literário, sempre há um pouco de sorte e acaso envolvidos. A forma como o livro chegou à academia, se tornou parte da cultura gamer ou até dos tatuadores é impressionante. Me tornei o pai que observa sua criatura emergir e criar vida própria. Há um certo estranhamento nisso, uma distância. É como ser um atleta que chega aos 60 e olha para o que foi capaz de fazer aos 25. Foi no final do século 20, um reflexo da minha criação, da educação que recebi dos meus pais, da universidade, dos professores. Tudo se juntou para levar a “Casa de Folhas”. Por mais que eu fosse o vetor, o livro também representa uma linguagem e uma narrativa que vão além de mim.

  • G |O livro é considerado impossível de adaptar. Mas você compartilhou o roteiro de uma série baseada na história. Existem planos para uma adaptação?

    MZD |

    Era a proposta para uma série de TV, uma forma de revitalizar narrativas alternativas. Ela teria seguido com uma história diferente, mas traria a “Casa de Folhas” e todos os seus personagens de volta. O roteiro questionava o fato de o baú que Johnny encontra estar repleto de páginas escritas. Em vez disso, continha rolos de filmes. Brinquei com a ideia de produzir um programa, com uma sala de roteiristas cheia de vozes diferentes. E queria libertá-los do texto, para fazer explorações ousadas. Houve tentativas com diferentes produtoras. Apesar de termos chegado próximo, o negócio nunca pareceu certo. É mais complexo do que encontrar um agente e um editor, porque há muitas pessoas envolvidas: atores, produtores, diretores etc. Não quer dizer que não vai acontecer. Mas se, por exemplo, a HBO se interessar pelos direitos, é pouco provável que eu diga sim. Quero saber primeiro se vai haver uma aliança criativa. A produtora não vai ter um senso meticuloso. Eles sabem que fez sucesso e vão tentar transformar em algo fácil de produzir. Não é uma crítica, é realidade. Meu trabalho é encontrar uma equipe criativa e parcerias que façam sentido. Até o momento, não aconteceu. Mas venho avaliando um audiobook. Ao mesmo tempo, não sei o que significa. É uma forma de arte diferente? Devo admitir de cara que será uma versão resumida? Quero uma interpretação mais dramática ou com vozes singulares? Não sei. O que acha?

  • G |Também não sei. Acho possível adaptar, seja para um audiobook ou uma série, mas não tem como ser uma adaptação totalmente fiel…

    MZD |

    Uma coisa que sempre pareceu clara é que, para ter a experiência completa de “Casa de Folhas”, você precisa do livro em mãos. Ele não está disponível nem como ebook. E a experiência é pessoal para cada leitor, o que considero especial.

  • G |Essas características fizeram com que o livro fosse discutido à exaustão em fóruns online assim que saiu. Hoje, inspira vídeos no YouTube com milhões de visualizações, conteúdo no TikTok e outras mídias. Ele segue instigante para o público atual?

    MZD |

    Isso acaba fugindo do meu escopo. Quando você entra em um desses grupos, encontra pessoas que leram o livro várias vezes. Pode ser de grande ajuda para novos leitores, mas também intimidador. Tem gente que o lê em grupos de leitura e discute ao longo de meses. A ideia me fez pensar que nem todos esses debates acontecem online. Ele tem vida própria além da internet.

  • G |Você levou mais de uma década para escrever “Casa de Folhas”. Como é seu processo de escrita? Já dedicou tanto tempo a uma mesma obra?

    MZD |

    Meu livro seguinte, “Only Revolutions”, levou seis anos e foi a experiência de escrita mais intensa que já tive. “The Familiar” também foi intenso. Em termos de horas, talvez tenha sido igual porque, quando escrevi “Casa de Folhas”, tentava ganhar a vida como encanador. “Only Revolutions” saiu um livro bonito, mas muito complicado. “The Familiar” foi o mais ambicioso, a história de uma menina que encontra um gato que não é só um gato. A ideia era escrever 27 volumes. Tivemos um começo promissor, publicando dois livros com mais de 800 páginas por ano, com experimentações gráficas mais intensas que “Casa de Folhas”. Mas a quantidade de leitores não era suficiente para justificar outros 22 volumes. Assim como uma série de TV, fomos cancelados. Foi angustiante, porque o livro ficou dez anos em produção e chegou a ser best-seller do New York Times. Sofri essa derrota sozinho, mas sinto também por aqueles que queriam continuar a experiência. Muita gente acha que sei como tudo ia acontecer. Até tinha um rascunho geral, mas, quando você escreve algo dessa magnitude, a história pode mudar. Estou animado com o livro que estou escrevendo, um faroeste ao qual dediquei cinco ou seis anos. Tem a mesma energia de “The Familiar”, só que com começo, meio e fim. Assim ninguém se frustra.

  • G |Em “Casa de Folhas”, as incertezas sobre o que é real, o fato de alguns livros e citações serem verdadeiros e outros inventados, tudo contribui para uma atmosfera de dúvida. No gênero, é importante o leitor não saber onde está pisando?

    MZD |

    Não escrevi para gerar um efeito. Podemos olhar o livro como uma história de terror, como parte das mídias digitais ou até uma fresta entre o mundo antes e depois da popularização da internet. Mas também tem a ver com a pergunta: o que é válido e o que não é? No que podemos acreditar? Até as imagens perderam seu status de autenticidade. Então é uma história de terror que reflete nossos terrores em relação à mídia, às pessoas e aos governos. Ao mesmo tempo, tem um nível pessoal. No feed de um amigo, as imagens são mesmo dele ou foram criadas para gerar uma certa ideia sobre sua vida? Pode ser pela idade, mas a comunicação digital tem se tornado cada vez menos frequente para mim. Sento para jantar com amigos que não levam seus celulares. Em vez de apontar coisas nas telas, usamos palavras para descrevê-las. Quando olhamos um para o outro ou repartimos o pão, compartilhamos algo significativo e autêntico. O centro de “Casa de Folhas” é a forma como Johnny cria uma narrativa sobre si com a qual consegue viver. O livro não é sobre a história dele ou dos Navidsons, mas sobre como cada um enxerga sua própria narrativa na escuridão. É quando percebe que precisa forjar uma história que seja verdadeira, mas também o ajude a seguir adiante. A jornada dos leitores não é dentro da casa, mas em suas casas particulares.

  • G |Depois dessa jornada, é estranho retornar para uma leitura mais tradicional, sem notas de rodapé e mensagens escondidas. Você já leu algum livro que tornou difícil começar outra leitura depois?

    MZD |

    Li a “Ilíada” muitas vezes, com diferentes tradutores, e é uma experiência angustiante, porque pouca coisa mudou. Temos pessoas se esfaqueando e se matando no campo de batalha. O ethos sangrento daquilo, o antagonismo que existe ali e a busca pela glória e riqueza que move os personagens são muito poderosos. Mais recentemente, li “Quando Deixamos de Entender o Mundo”, de Benjamín Labatut, que é de uma energia viciante. Você começa com um artigo científico e logo percebe que a ficção tomou conta. Tem a ver com a vontade de inventar, mas também olhar para o custo das ideias, coisas complicadas e perigosas. Ainda assim, o espírito humano consegue se lançar sobre territórios desconhecidos e retornar com algo como a teoria quântica. É fantástico. E gostei muito de “An Immense World”, de Ed Yong, que é narrado pelo ponto de vista dos animais. Foi encantador entender que a aranha não te observa só com olhos, mas através das vibrações, da música de sua teia. Agora, quando vejo uma teia de aranha, enxergo uma criatura que escuta intensamente o mundo, o que é comovente.

    Fonte:  https://gamarevista.uol.com.br/formato/conversas/mark-z-danielewski-de-casa-de-folhas-o-livro-e-meu-pequeno-monstro-que-cresceu/?utm_medium=Email&utm_source=NLGama&utm_campaign=MelhorGama

domingo, 24 de março de 2024

Rentismo, o novo modo de produção

A partir do capital financeirizado, surgiu outra forma de capturar a riqueza coletiva. Quais seus meios de acumulação. Por que produz desigualdade e devastação brutais. Como a reapropriação social do conhecimento pode minar suas bases.

Há tempos estamos rodando em torno do pote, sem meter efetivamente a colher. O que aconteceu com o capitalismo de antanho? Como os novos mecanismos não cabem nos conceitos tradicionais de análise do capitalismo industrial, acrescentamos qualificativos: Robert Reich fala sobre capitalismo corporativo, Mariana Mazzucato sobre capitalismo extrativo, Grzegorz Konat sobre capitalismo real, Joel Kotkin sobre neo-feudalismo, Zygmunt Bauman sobre capitalismo parasitário, Brett Christophers sobre capitalismo rentista, Shoshana Zuboff sobre capitalismo de vigilância, Eric Sadin sobre capitalismo cognitivo, Jonathan Haskel e Stian Westlake sobre capitalismo sem capital, este último no mínimo um qualificativo estranho: o capitalismo sem capital ainda é capitalismo?

O capitalismo é chamado assim em época relativamente recente, e adquire raízes teóricas e científicas de análise a partir de Adam Smith em 1776, e Karl Marx um século mais tarde. No centro do conceito, está o mecanismo de acumulação de capital. Ou seja, não é ter riqueza, bens ou dinheiro, isso sempre teve, e sim estar inserido no processo de reprodução de capital, que vai se valorizando através de investimentos: não é ter iates e aviões, que constituem patrimônio, é ter uma empresa, que por exemplo produz aço, que vai ser vendido para outras empresas que irão produzir casas e automóveis, fornecendo mais bens e serviços, e gerando lucros que serão reinvestidos em mais capacidades produtivas, mais capital. É precisamente a acumulação de capital, um processo expansivo. Essa capacidade de investimento que vai se expandindo é alimentada por lucros, gerados a partir do pagamento aos trabalhadores de um salário que é inferior ao valor produzido: a mais valia. Trata-se, portanto, de exploração, mas de uma exploração que se transforma em mais investimentos, mais empregos, mais lucros, mais capital e mais impostos para assegurar políticas públicas. Era um sistema. Injusto, mas produtivo.

O conjunto do processo foi e continua sendo cada vez mais alimentado pela revolução científica tecnológica que nos deu a máquina a vapor, a locomotiva e o transporte ferroviário, a eletricidade, o motor a combustão, a criação de novos materiais através da química, e tantas inovações que explodiram no século XX com eletrificação generalizada, o carro, o avião, a televisão, o computador, a q2uímica fina, a biologia e os primeiros passos na manipulação do genoma e assim por diante. Essa pequena enumeração das transformações científico-tecnológicas é necessária porque se trata do principal motor das transformações: as pessoas tendem a glorificar o capitalista, que aplicou os avanços científicos, mas muito menos os cientistas que os criaram. James Watt, Benjamin Franklin, Michael Faraday, Albert Einstein, pesquisadores que revolucionaram a base energética do planeta, colocando nas máquinas industriais e nas nossas mãos um volume de energia que multiplicou por um fator de centenas ou milhares o que era a força dos nossos músculos, deslocaram de forma estrutural a relação entre o homem e a natureza. A transformação científica foi o motor principal das transformações econômicas.

A Rússia sai da idade média em 1917, e se torna em poucas décadas uma potência industrial, a China se expandiu de maneira absolutamente impressionante, utilizando diferentes formas de organização política e social. A Europa se cobriu de ferrovias e de empresas de transporte, organizadas e geridas pelo Estado, que funcionam de maneira eficiente. E as empresas industriais capitalistas contribuíram também sem dúvida para multiplicar as nossas capacidades produtivas exponencialmente. Esse olhar mais amplo é importante para lembrarmos que a sociedade está em plena mutação, que as tecnologias atualmente avançam ainda mais rapidamente, e que manter a ideia de que a nossa relativa prosperidade se deve aos “capitalistas” e aos “mercados” simplesmente

significa um congelamento da forma como olhamos as transformações do planeta. O vetor principal das transformações foi a base científica da humanidade, com aporte transitório do capitalista industrial.

Aliás a fase mais próspera do capitalismo é a dos trinta anos de ouro do pós-guerra, em que houve um equilíbrio inovador entre o setor público e o mundo empresarial, no quadro do Estado de Bem-Estar, e funcionou apenas no grupo de países mais ricos, cerca de 15% da população mundial. Hoje gerou uma aristocracia financeira, gigantes da comunicação e corporações mundiais de intermediação de commodities (os traders), com a sua entusiasmada rapaziada manejadora dos algoritmos, que pouco têm a ver com o empreendedor industrial tradicional. Essa profunda mudança do sistema é que alimenta tantos qualificativos que se acrescenta ao “capitalismo”, simplesmente porque a nova realidade não cabe nos antigos conceitos. Mas não basta acrescentar qualificativos: é preciso pensar se isso ainda é capitalismo.

A fratura social: nova escala de exploração

Não ser capitalismo não significa não haver apropriação do excedente social por minorias, como houve nos diferentes modos de produção. O sistema escravagista se apropriava do produto de outros por meio da propriedade das pessoas, o modo de produção feudal através da posse da terra e do controle dos servos, não foi preciso esperar o capitalismo industrial para termos exploração, com minorias se apropriando do produto social. Mas enquanto o capitalismo industrial gerava ao mesmo tempo apropriação do excedente e geração de mais capacidades produtivas, o rentismo se apropria do excedente sem a contribuição produtiva correspondente. Como escrevem Gar Alperovitz e Lew Daly, é uma “apropriação indébita”.[1]

No centro do novo processo está a financeirização. É essencial entender o impacto do dinheiro não ser mais material, sob forma de notas impressas por governos, que levávamos na carteira e os bancos guardavam no cofre. Segundo o How Money Works, 92% da liquidez global é digital: ou seja, na carteira fica apenas um cartão, nos bancos o computador, o conjunto é gerido por algoritmos. E por constituir apenas sinais magnéticos, o espaço financeiro se tornou global, girando no quadro do High Frequency Trading, em volumes radicalmente desconectados da economia real. A BlackRock, gestora de ativos (asset management) administra 10 trilhões de dólares, enquanto o orçamento federal dos Estados Unidos é da ordem de 6 trilhões. O mercado de derivativos atinge em 2022 630 trilhões de dólares, para um PIB mundial de 100 trilhões, no qual aliás se incluem os lucros financeiros como se fossem ‘produto’.

Enquanto a apropriação do excedente por baixos salários é hoje bastante clara na mente das pessoas, levando inclusive à legalização de sindicatos, e lutas pelos reajustes periódicos, os mecanismos de exploração financeira já são bem descritos em tantos trabalhos, inclusive os mencionados acima, mas continuam uma realidade nebulosa para a quase totalidade da população, que não sabe quanto o banco leva quando realiza uma pagamento com cartão, que fica abismada ao se encontrar atolada em dívidas – precisam de educação financeira, comentam os banqueiros – e para quem o conceito de paraíso fiscal, onde hoje as grandes corporações colocam mais de 60% dos seus lucros – lembra ilhas com coqueiros, não o Estado de Delaware, Wall Street ou a City de Londres.

Um ponto chave é que a escala de apropriação do excedente por minorias mudou radicalmente. Os dados abaixo são do Crédit Suisse, incluídos no relatório da ONU: [2]

Fonte: UNRISD – Crises of Inequality – October 2022 – p. 5

Na coluna à esquerda, vemos que 62,5 milhões de pessoas, 1,2% da população adulta, detêm 47,8% da riqueza acumulada, 221,7 trilhões de dólares. Na coluna seguinte, vemos que 627 milhões de adultos, 11,8% do total, detêm 38.1% da riqueza, 176,5 trilhões. O que podemos classificar de classe média baixa, na terceira coluna, com riqueza acumulada entre 10 e 100 mil dólares, tem 13,0% da riqueza, 60,4 trilhões. E 2,818 bilhões de adultos, 53,2% do total, detêm apenas 5,0 trilhões, 1,1% do total. Basicamente, podemos dizer que inseridos de forma precária no sistema estão cerca de dois terços da humanidade, os 53,2% da última coluna mais uma parte da segunda coluna. Interessante é constatar que se tirarmos 2,2% da fortuna do grupo mais rico, que eles mal notariam, daria para dobrar a riqueza dos 53,2% mais pobres. E para quem é pobre isso significaria uma enorme melhoria da qualidade de vida.

Os dados constam da análise que o Crédit Suisse (hoje UBS) realiza da distribuição da riqueza familiar mundial, estimada em 463,6 trilhões de dólares nas mãos de 5,3 bilhões de adultos do planeta. O que o mundo tem de riqueza pessoal acumulada é de cerca de 87 mil dólares por adulto. Numa família com dois adultos, isso representaria 175 mil, equivalentes a 900 mil reais. Pela primeira vez na história da humanidade, temos o suficiente para todos, isso sem contar o valor das infraestruturas.

Mas o que nos interessa mesmo aqui é o fato da fratura estrutural profunda da apropriação da riqueza da sociedade, com uma escala de exploração sem precedentes no próprio capitalismo. Não visível neste gráfico, é o fato do profundo desnível dentro do 1,2% mais rico, pois o grosso das fortunas desta coluna está nas mãos dos 0,1 e em particular do 0,01%. [3] O relatório da ONU que apresenta a tabela acima comenta que “as atuais extremas desigualdades, destruição ambiental e vulnerabilidade a crises não constituem um defeito do sistema, mas a sua característica”. Hoje os dados mais detalhados encontram-se no WID (World Inequality Database), nos relatórios da Oxfam, em particular em Oxfam, Survival of the Richest, e comentados em tantos textos indignados.

Além da desigualdade em termos de riqueza familiar, que contabiliza por exemplo o valor da nossa casa, outras propriedades, o dinheiro no banco (deduzindo as dívidas), gerando o que se qualifica de patrimônio domiciliar líquido (net household wealth), também contabilizamos a desigualdade de renda. Aqui também a situação é catastrófica, com bilhões de pessoas atoladas em situação de pobreza. A relação com a riqueza acumulada é direta, pois enquanto um bilionário, aplicando por exemplo seu dinheiro para render moderados 5% ao ano, aumenta a sua riqueza no ritmo de 137 mil ao dia, a imensa maioria da população, os dois terços que mencionamos, como aproximação, mal consegue fechar o mês, que dirá se tornarem “investidores” para acumular riqueza. [4] É o que o Banco Mundial e outras instituições chamam de “poverty trap”, armadilha da dívida.

Fonte: BIG THINK – Strange maps – October 12, 2019

Uma outra escala desta fratura estrutural da sociedade, no mapa acima, pode ser compreendida ao passarmos da análise por estratos da população para médias entre países. [5] Como ordem de grandeza, temos que o capitalismo desenvolvido, que temos chamado de “Norte Global”, ou de “Ocidente”, é constituído por apenas 14% da população mundial, mas controla 73% da renda. O resto do mundo, 86% da população, apenas 27%. Sem a China, esses números seriam ainda mais críticos. Interessante esse gráfico apresentar o capitalismo desenvolvido como uma “gated community”, um tipo de condomínio planetário, com seis portarias cada vez mais guardadas. A fratura social e a fratura territorial se cruzam e reforçam. Os ricos dos países pobres podem adquirir

os “passaportes dourados” em Malta, e viajarem o mundo como “europeus’. O capitalismo, aliás, nunca funcionou para todos. Como Ha-Joon Chang escreve tão bem, os de cima tiraram a escada. [6] A fratura social planetária, tanto entre como dentro dos países, contrasta com o fato de justamente termos atingido, graças à revolução científico-tecnológica, um nível de prosperidade que poderia assegurar a todos uma vida digna, sem a guerra permanente que vivemos. Hoje se torna essencial entender como se transformaram os mecanismos que geram a fratura.

As novas formas de apropriação do excedente social

Uma coisa é a apropriação do excedente pelos grupos mais ricos da sociedade, com uma desigualdade que nos fratura em termos econômicos, políticas e sociais, e gera imenso sofrimento na base da sociedade. Outra coisa é constatar que se trata de rentismo improdutivo, de dreno das riquezas sociais, e não mais de ‘acumulação de capital produtivo’ tão analisado, e que os rentistas modernos tentam utilizar como prova de sua própria legitimidade. Quando se rompe um mínimo de proporcionalidade entre o quanto as pessoas contribuem produtivamente, e o quanto enriquecem, o sistema se desloca: não é mais acumulação de capital, é rentismo improdutivo.

Brett Christophers, no seu Rentier Capitalism que foca em particular as dinâmicas do Reino Unido, mas com visão global, agrupa as formas improdutivas de acumulação de riqueza (the main varieties of rentierism) em sete fontes principais: [7]

● Financeiro: gerando renta sobre juros, dividendos e ganhos de capital

● Reservas de recursos naturais: apropriação das reservas e sua venda

● Propriedade intelectual: gerando rentismo sobre patentes, royalties, marcas

● Plataformas digitais: comissões, marketing

● Contratos de serviços: gerando taxas de serviços terceirizados

● Infraestrutura: privatização de empresas estatais, licenças governamentais

● Solo: aquisição de terras, privatização de terras públicas, gerando renta de solo (ground rent)

Segundo o autor, isso “resume como os rentistas do setor privado passam a controlar os ativos (assets), e os tipos de renta que tal controle lhes permite ganhar em cada caso.” (xxx) O livro detalha como cada um dos mecanismos permite a apropriação de riqueza pelos rentistas. No conjunto, é essencial lembrar que essas diversas formas de rentismo são acessíveis apenas à própria minoria que com elas lucra: a massa da população, os dois terços, mal fecha o mês, e, portanto, não tem como entrar no sistema que ganha dinheiro com dinheiro, monopólios, controle de recursos naturais e cobranças sobre os mais diversos tipos de transações, lucros de intermediação, a chamada economia de pedágio. Os rentistas ganham não tanto pelos serviços que prestam, como pela obrigação de todos passarem pelas suas catracas. Muitos serviços são úteis, ou até necessários, mas gerando lucros desproporcionais relativamente ao aporte, como no caso dos oligopólios da comunicação.

Isso sempre existiu, como vimos no caso dos atravessadores comerciais que exploram os pequenos agricultores, dos usurários tão bem apresentados no Mercador de Veneza de Shakespeare, ou ainda dos Robber Barons das finanças e do petróleo nos Estados Unidos no início do século passado. Mas o deslocamento da base científico-tecnológica do planeta mudou o peso e as relações de força dos diversos setores de atividade. No centro, evidentemente, está a revolução digital, que gerou avanços de produtividade nas áreas industrial e agrícola, mas que sobretudo revolucionou os processos de intermediação: onde antes “serviam” às atividades produtividades, por exemplo com crédito, hoje passam a delas se servir.

Os gigantes corporativos que hoje controlam o planeta não são donos de empresas concretas, são donos de papéis – hoje sinais magnéticos – que lhes dão direitos sobre elas. Sweezy e Magdoff já analisavam a fratura: “A diferença entre ser proprietário de ativos reais e proprietário de um pacote de direitos legais pode à primeira vista parecer pouco importante, mas isso, enfaticamente, não é o caso. Na realidade, essa é a raiz da divisão da economia em setor produtivo e setor financeiro.” [8] Os papéis, títulos, ações, registros de dívidas, opções de derivativos, até o dinheiro – hoje apenas um sinal magnético – são imateriais, circulam no planeta na velocidade da internet, são administrados por algoritmos, gerando um universo econômico paralelo que levou a que tantos se refiram hoje separadamente à economia real e à economia financeira no sentido amplo. A lógica principal do sistema, é que justamente ser dono de “papéis”, ou seja, de direitos sobre produtos e sobre produtores reais, é que permite a geração de fortunas em escala radicalmente diferente das que efetivamente produzem bens e serviços, o que por sua vez está na origem do agravamento radical da desigualdade.

A agricultura e a indústria continuam a existir, mas a lógica do seu desenvolvimento, ou da sua paralisia ou deformação, obedece aos interesses dos donos dos sinais magnéticos. O dono da fábrica de sapatos podia explorar os seus trabalhadores, mas precisava comprar máquinas e matéria prima, gerar empregos, e produzir bons sapatos, o que gerava conforto para os compradores, e receitas públicas para o Estado assegurar infraestruturas e políticas sociais. O rentismo atual é dono de “direitos” que lhe permitem drenar os produtores, os assalariados, ou qualquer pessoa que tenha um cartão de crédito no bolso ou que precise comprar um botijão de gás ou encher o tanque do carro. Com a privatização parcial da Petrobrás, em 2022 foram transferidos 217 bilhões reais para acionistas nacionais e internacionais, dividendos sobre um produto que é do solo, produzido pela natureza em milhões de anos, e cujo valor poderia ter sido reinvestido na empresa ou utilizado pelo governo para financiar o desenvolvimento na economia real.

Outro fator essencial da fratura, além dos mecanismos financeiros de exploração, é que o sistema rentista não depende de oferecer empregos para gerar renta, ou apenas marginalmente, o que mantém grande parte da população em situação de pobreza e insegurança, multiplicando relações precárias de trabalho, com a chamada “flexibilização”. Um terceiro fator importante, é que produtores de bens e serviços de consumo precisam que haja consumo de massa, ou seja, capacidade de compra por parte da população: isso se torna secundário para os diversos tipos de rentistas. Ou seja, o rentismo precisa apenas marginalmente da força de trabalho e da demanda popular. Gera-se um processo de marginalização, já sentido com força nos Estados Unidos, na Grã-Bretanha e outros países do “Norte”, mas em particular na imensa massa dos países ditos “em desenvolvimento”. A fratura de certa forma se reforça, e cristaliza.

O conhecimento, conceito amplo que inclui as nossas transformações científicas e tecnológicas, faz parte desse deslocamento sistêmico. É impressionante a rapidez com a qual se enraizou o conceito de plataforma, onde antes falávamos de empresas, ou de corporações. Na base está a convergência de um conjunto de atividades que o André Gorz qualificou de “o imaterial”. Gorz adota claramente a visão de que os deslocamentos nos processos produtivos em geral levam a uma mudança da própria ciência econômica: “A ampla admissão do conhecimento como a principal força produtiva provocou uma mudança que compromete a validade das categorias econômicas chaves e indica a necessidade de estabelecimento de uma outra economia” (9). [9]

Delinear uma economia que leve em conta a generalização da dimensão conhecimento como elemento chave dos processos produtivos aponta para duas transformações básicas. Primeiro, é que uma inovação tecnológica representa um custo na sua criação, mas a sua reprodução e disseminação, nesta era informática, pode em geral se fazer a custo zero. Ou seja, enquanto na era fabril o produtor tinha de produzir grandes quantidades para ganhar mais dinheiro, no caso da inovação, uma vez identificada determinada tecnologia, o ganho é feito travando ao máximo o acesso, para gerar um efeito de monopólio. Se a tecnologia se generaliza, reduz-se o lucro. Ao patentear o “one-click” a Amazon tentou impedir milhares de empresas no mundo de desburocratizar as vendas. Com isso, tira-se das ideias a sua força maior, o fato de poderem fertilizar a criatividade dos mais variados atores sociais. A semente da Monsanto foi dotada de um gene “exterminador” para evitar que os agricultores possam reproduzi-la. Diferentemente de um produto material, um avanço imaterial é indefinidamente reproduzível. Ou seja, para a corporação, é preciso travar o acesso: Gorz ainda: “Sempre se trata de contornar temporariamente, quando possível, a lei do mercado. Sempre se trata de transformar a abundância “ameaçadora” em uma nova forma de escassez” (11).

Segundo, as formas tradicionais de remuneração do trabalho se veem ultrapassadas, notadamente na visão tradicional de oito horas de trabalho “alugadas” para o que a empresas necessite. A criatividade não se faz “por horas”. Há gente que pode ficar sentada semanas em um ambiente de trabalho e não trazer ideia alguma. Como se remunera a criatividade? O trabalhador, neste nível, se torna um tipo de empresário de si mesmo, negociando o seu produto. “A ideia do tempo como padrão do valor não funciona mais.” E se o tempo de trabalho não é mais o padrão de valor, como se determina o preço de venda do produto? Gorz passa naturalmente a analisar a função da marca, da publicidade, dos valores simbólicos como base da nova formação do valor, delineando assim gradualmente a mudança sistêmica que enfrentamos. Ao ser criticada pelo valor exorbitante cobrado por um medicamento de produção barata, a empresa responde que devemos pensar não no custo do produto, mas no valor da vida que salva. A teoria do valor, base da ciência econômica, se desloca.

“Se não for uma metáfora, a expressão ‘economia do conhecimento’ significa transtornos importantes para o sistema econômico. Ela indica que o conhecimento se tornou a principal força produtiva, e que, consequentemente, os produtos da atividade social não são mais, principalmente, produtos do trabalho cristalizado, mas sim do conhecimento cristalizado. Indica também que o valor de troca das mercadorias, sejam ou não materiais, não mais é determinado em última análise pela quantidade de trabalho social geral que elas contêm, mas, principalmente, pelo seu conteúdo de conhecimentos, informações, de inteligência gerais. É esta última, e não mais o trabalho social abstrato mensurável segundo um único padrão, que se torna a principal substância social comum a todas as mercadorias. É ela que se torna a principal fonte de valor e de lucro, e assim, segundo vários autores, a principal forma do trabalho e do capital”(29) [10]

O que o mundo do dinheiro e o mundo do conhecimento hoje têm em comum, é que ambos são, precisamente, imateriais, ou ‘intangíveis’, como encontramos em outros autores. Ou seja, ambos circulam na internet na velocidade da luz, sob forma de sinais magnéticos, e no espaço planetário, sem que haja a antiga ‘territorialidade’, local de produção, da fábrica ou da fazenda, de residência dos trabalhadores, dos espaços de socialização. O fenômeno se manifesta de forma mais ampla ainda nas áreas hoje imbricadas de comunicação e de informação, como vemos nos gráficos abaixo: [11]

Vemos aqui o peso da plataforma Meta (Facebook), que atinge praticamente 3 bilhões de usuários. Youtube, da Alphabet (Google) atinge 2,3 bilhões, WhatsApp (Meta também) 2 bilhões, ultrapassando populações como a da China ou da Índia. O gigantismo está ligado à característica técnica básica, de que sinais magnéticos circulam no planeta de forma quase instantânea, e a dominação do mais forte se torna rapidamente planetária. Resultam os chamados ‘monopólios de demanda’: temos de usar o que os outros usam, porque sem isso não comunicamos. Além do alcance planetário, são extremamente concentrados:

O grau de oligopolização das atividades fica evidente, e aqui também se trata do imaterial, de sinais magnéticos, navegação de comunicação e informação em que os volumes, na era dos computadores modernos, deixam de ser um problema. A indústria da comunicação e da informação torna-se dominante, gerando inclusive a tão estudada batalha pelo tempo de atenção das pessoas, com o crescente caos de informações reais, fake-news, marketing comportamental e sistemas de vigilância baseadas na invasão das comunicações pessoais.

Mais impressionante ainda é a gradual osmose dos subsistemas da economia imaterial, de sinais magnéticos, quer representem dinheiro, conhecimento, informação ou comunicações, tendo todos em comum, neste eixo principal para onde se orienta a economia e a apropriação de valor, o fato de banharem o planeta, de atingirem qualquer pessoa, e de serem controlados por um número restrito de megacorporações. Interessante neste sentido que a Amazon trabalhe com acesso de informações a terceiros, além da intermediação comercial, enquanto por sua vez a própria Amazon, mas também Google, Facebook, Apple, Microsoft são em parte controladas pelos três maiores gigantes financeiros, BlackRock, Vanguard e State Street. Forma-se assim um universo de controle multisetorial, de impacto planetário.

E não é secundário que também sejam dominantemente norte-americanos, e conectados com a NSA e outros sistemas de informação política, gerando a guerra contra a Huawei, a Tiktok e outras corporações chinesas: os ‘mercados’ se tornaram mais políticos, a política se torna ainda mais ferramenta das corporações. Em outros termos, ao rentismo que drena os recursos para os acionistas no topo da pirâmide financeira mundial, se acrescenta o controle algorítmico das pessoas, e a submissão do universo produtivo à lógica do shareholder, e cada vez menos do stakeholder. O rentismo se transforma em modo de produção. Não substitui as empresas tradicionais, sejam industriais, agrícolas ou de diversos tipos de serviços, ou ainda planos de saúde ou universidades, ou mesmo comportamentos individuais, mas as submete à sua lógica. Não constitui apenas um dreno de recursos e a formação de uma poderosa elite rentista global: altera em profundidade como nos organizamos como sociedade.

A manipulação capilarizada

Se a extrema concentração no topo, e a osmose dos diversos subsistemas que têm em comum o fato de manejarem apenas sinais magnéticos, massa virtual em que banha o planeta, também é preciso insistir no fato dos algoritmos e da inteligência artificial permitirem uma capilaridade que atinge cada pessoa do planeta. Para a capacidade moderna de computação, 8 bilhões de pessoas não representam uma massa incalculável, tornam-se indivíduos isoláveis, fontes de informação, e clientes, quer queiram quer não. O sistema Experian permite que o gerente da sua conta no banco tenha informações detalhadas sobre a sua situação financeira, e o seu custo de crédito será ajustado segundo os interesses do banco. E foi legalizado. [12]

A faxineira que me presta serviços uma vez por semana, contratou um plano privado de saúde, NotreDame, que tem entre os seus acionistas a BlackRock: uma parte do salário de uma pessoa modesta da periferia de São Paulo é transferida em frações de segundos, pelos algoritmos, para acionistas nos Estados Unidos e outros países. Ao tomar um Uber na minha cidade, pago ao motorista, mas automaticamente boa parte do que pago vai para acionistas internacionais, preço exorbitante pago para pertencer a uma rede que permite estar conectado. Ao pagar uma compra com cartão, na modalidade crédito, cerca de 5% do valor da minha compra vai para intermediários financeiros, Visa ou outro. Se procuro algo no computador, não consigo me mexer se não estiver o tempo todo autorizando alguma rede a instalar cookies, entrando no sistema global de dreno de informações pessoais. Gerou-se assim um sistema de micro-drenagem de recursos e de informações pessoais de bilhões de pessoas de qualquer parte do mundo, inclusive dos mais pobres. Somos uma unidade de comunicação e informação do sistema planetário.

Todos os custos da publicidade que me invade por todo lado e por todo meio estão incluídos nos preços que eu pago pelos produtos. Na TV me dizem que o programa é gentilmente oferecido por determinada empresa, mas esquecem de dizer que sou eu que pago para que interrompam o programa, em qualquer compra. Em 2021, 97,5% dos rendimentos da Meta (Facebook) vêm da publicidade. Como a mídia comercial se torna dependente das empresas que pagam a publicidade, o resultado é que o conjunto dos sistemas de informação, inclusive os noticiários, se tornam enviesados. Nós os pagamos para que nos convençam. Não se trata aqui de informação sobre produtos, e sim de influenciar comportamentos em geral. Com as horas que passamos vendo telas, tornamo-nos prisioneiros de um sistema que pesa nos nossos bolsos. [14]

A Amazon começou prestando serviços comerciais, mas entendeu que a sua dominância do mercado lhe permitia se tornar o intermediário obrigatório como plataforma de serviços virtuais, com o AWS (Amazon Web Service) e FBA (Fulfillment by Amazon): “AWS como FBA são o fruto da Amazon ter construído infraestruturas cruciais para a entrega dos seus próprios serviços, e então ter tornado essas infraestruturas de serviços, entregas disponíveis comercialmente – podemos dizer, alugando-as para fora – a terceiros para a entrega dos seus serviços. Ambos são, neste sentido, rentistas de infraestruturas… A Amazon controla infraestruturas críticas para a economia da internet – de formas que seria difícil novos interessados (entrants) replicar ou tentar enfrentar com competição” [15]

Quando se atinge uma situação de monopólio, pode ser cobrar preços muito além dos que seriam praticados num mercado competitivo, do capitalismo concorrencial. “No ano fiscal de 2021, as “big tech” tiveram um crescimento combinado de 27%, de um ano para outro.” Esses ganhos aparecem nos preços que pagamos. A tabela abaixo mostra os avanços dos cinco grandes (GAFAM): [16]

Isso é particularmente visível na apropriação privada de infraestruturas. Um produtor precisa escoar o seu produto, mas não vai poder escolher que ferrovia vai utilizar em função das tarifas, nem em que poste de energia vai se conectar. As redes de infraestruturas, transportes, energia, telecomunicações, e água e saneamento constituem redes de âmbito nacional e frequentemente internacional, e onde funcionam de maneira adequada são planejadas e geridas por instituições públicas: propriedade privada e ‘liberdade econômica’, quando não há concorrência, levam a abusos. É propriedade privada, mas não mercado. Perde o objetivo do interesse público, e não tem os benefícios da concorrência.

Christophers, no capítulo sobre rentismo de infraestruturas privatizadas no Reino Unido, apresenta esse ‘dinheiro de monopólio’: “Entre 2010 e 2015, as margens de lucro operacionais no setor estiveram entre um nível baixo de 41% e alto de 56%, com uma média ponderada de 51,5%.”(323) Isso gerou sem dúvida lucros impressionantes para as corporações que passaram a controlar as infraestruturas, mas depois de décadas de desmandos a Grã-Bretanha esta re-estatizando ferrovias e outros setores, tal como Paris, Berlim e tantos outros re-estatizaram a gestão de água. A privatização em setores não concorrenciais leva a um rentismo improdutivo. Todos pagamos por isso.

Não se trata apenas de preços, mas também de perda de produtividade sistêmica. Na França, por exemplo, segmentos privatizados desativaram ramais ferroviários menos produtivos, em regiões menos povoadas, gerando isolamento e protestos. Faz todo sentido o Estado levar infraestruturas para regiões menos desenvolvidas, ainda que com perdas durante um tempo, justamente para dinamizá-las e equilibrar o desenvolvimento territorial. A combinação de facilidade de elevar preços em situação de monopólio, com objetivo de maximização de lucros para os acionistas em vez de gerar economias externas para produtores em escala mais ampla, levam a rentas elevadas e baixa produtividade sistêmica.

A área de recursos naturais é particularmente sensível. Raymond Baker traz dados sobre diversas partes do mundo, inclusive da região amazonense: “Estima-se que 50% a 90% da madeira na Amazônia é cortada sem autorização. Na Indonésia, cerca de 50%, e na Rússia, com as maiores florestas de coníferas do mundo, 25%… Global Witness, que tem examinado extração ilegal de madeira há décadas, estima que o financiamento de projetos de agricultura na Amazônia vem do Deutsche Bank, Santander, BlackRock, American Capital Group e outros.”(46) [17] Grupos financeiros internacionais obtêm renta a partir da apropriação de florestas que não precisaram plantar, apenas financiam e cobram dividendos de quem extrai. Isso vale evidentemente para minérios, petróleo, água e outros recursos naturais que levam não só à apropriação de recursos naturais, ou seja, que são da natureza, não ‘produzidos’, mas também leva a um conjunto de deformações políticas, na medida em que corporações globais passam a pressionar ou derrubar governos na batalha pelo acesso.

A reprimarização do Brasil, o próprio golpe de Estado de 2016, mas também as tragédias do Congo ou da Indonésia, fazem parte deste conjunto de atividades que não são propriamente produtivas, e constituem essencialmente a apropriação privada de bens naturais, com empresas de extração sem dúvida, em geral terceirizadas, mas antes de tudo controladas por grupos financeiros mundiais e os seus acionistas, que por sua vez se associam com grupos empresariais e políticos locais, assegurando a legislação correspondente aos seus interesses, como no caso da Lei Kandir no Brasil (1996), que isenta de impostos exportações primárias. Neste setor como em outros, acima dos executores locais das políticas extrativas, encontramos os donos de ações que recebem dividendos em qualquer parte do mundo. Os desastres de Brumadinho e de Mariana, com a Vale e a Samarco privatizadas, mostram a priorização dos lucros financeiros sobre a capitalização e reinvestimento na empresa. Hoje é o rentismo que estrutura o setor produtivo, e sua matéria prima são apenas sinais magnéticos.

Há ainda o rentismo tradicional, como no caso dos imóveis, mas que adquiriu novas dimensões. Christophers cita um comentário do Churchill a este respeito: “Estradas são construídas, ruas são construídas, serviços são melhorados, a luz elétrica muda a noite para o dia, a água é trazida de reservatórios a cem milhas de distância nas montanhas – e o tempo todo o proprietário do imóvel (landlord) fica sentado. Cada uma dessas melhorias é realizada com trabalho e custo para outras pessoas e contribuintes. O proprietário monopolista, como monopolista do solo, não contribui com nenhuma dessas melhorias, e, no entanto, com cada uma delas o valor da sua propriedade aumenta.”(351) [18] Hoje são empresas financeiras que adquirem o solo, habitações, nas mais diversas partes do mundo, elevando os alugueis, adquirindo bairros inteiros. Não estão contribuindo para que pessoas tenham mais residências, ou agricultores mais acesso ao solo, geram um mercado financeiro baseado nas valorizações futuras, uma grande rede que gera fortunas especulativas e aumento generalizado dos custos para a população. O imóvel se torna “um puro ativo financeiro.”(358)

A privatização e controle corporativo das políticas sociais constitui outra área que se transformou num gigantesco sistema especulativo. Lembremos que essa área se agigantou nas últimas décadas. Só a saúde representa nos Estados Unidos em torno de 20% do PIB, muito superior à própria indústria. Apresentei acima a forma como a BlackRock drena uma parte do que eu pago à minha faxineira, através do plano de saúde Notre Dame. Mas me interessei no desvio do meu próprio salário de professor universitário. A minha universidade me inscreveu no plano de saúde Sulamérica, descontando do meu salário cerca de 4.500 reais mensais. A Sulamérica por sua vez foi comprada pela Rede D’Or, outro grupo financeiro, que adquiriu uma fortuna de 27 bilhões de reais, e tem entre os seus acionistas importante fundo financeiro de Cingapura, GIC. Assim parte do meu salário migra automaticamente para Cingapura, alimentando acionistas com lucros astronômicos. Esses lucros financeiros podiam ser investidos em saúde. Pela desproporção entre o que alocam, e o quanto retiram, trata-se de um dreno.

Um exemplo clássico nesta área é o dos Estados Unidos, onde a saúde se tornou um setor econômico gigantesco, e um exemplo mundial de ineficiência: representa o maior custo por pessoa por ano hoje entre os países da OCDE, mais do dobro do custo no Canadá, por exemplo. O Canadá está entre os primeiros em termos de nível de saúde da população, os Estados Unidos entre os últimos. A facilidade com a qual se atinge este nível de rentismo na saúde está ligada à insegurança das pessoas relativamente a eventual situação crítica que exija grandes investimentos. O rentismo navega aqui na insegurança das pessoas. Comparação igualmente interessante é entre a Dinamarca e a Suíça, esta última com o sistema de saúde em grande parte privatizado: com custos muito menores, a Dinamarca atinge resultados radicalmente superiores.

Particularmente importante é o exemplo da educação, onde a privatização avança com rapidez, em particular navegando na transformação mundial da economia: o principal fator de produção, na era tecnológica, é o conhecimento, por sua vez matéria prima da educação. O endividamento generalizado da nova geração, para conseguir os diplomas, gera uma nova crise mundial: com a educação privatizada, os jovens chegam na idade de trabalhar atolados na dívida estudantil, que os amarra durante décadas. E já estão se atolando no aluguel que explode ou na dívida imobiliária. Os ‘investidores’ são frequentemente os mesmos. [19]

Outro mecanismo importante da evolução do capitalismo para o rentismo, é o caso de patentes, copyrights, diversas formas de controle do conhecimento por grupos financeiros que cobram direitos de acesso. Na concepção inicial da proteção de direitos intelectuais, tratava-se de assegurar remuneração privilegiada para o inventor de novos processos ou para o escritor, de forma a estimular os avanços científicos e culturais. Hoje patentes imobilizam uma tecnologia por 20 anos, o que há um século atrás poderia ser razoável, mas no ritmo moderno de avanços técnicos representa um latifúndio, claramente visto durante o desastre do acesso a vacinas durante a Covid-19. Os direitos autorais se expandiram, teremos acesso aberto aos livros de Paulo Freire apenas em 2067. Com a centralidade do conhecimento no conjunto das transformações econômicas, sociais e culturais no planeta, a guerra por dificultar o acesso está no centro de mais um mecanismo rentista. Com o Open Access, Creative Commons e outros mecanismos abertos de divulgação do conhecimento, poderíamos ter uma generalização radicalmente nova de acesso mundial ao conhecimento. [20]

Uma nova articulação global

Elencamos aqui vários mecanismos de apropriação do excedente social no quadro da evolução do capitalismo industrial para o rentismo digital. Esses mecanismos envolvem o domínio das plataformas relativamente às empresas tradicionais, e em particular o fato de se tratar do controle do imaterial, ou intangível, o que permite mecanismos muito mais amplos de apropriação, em escala planetária, sem a correspondente criação de bens e serviços, empregos e bem-estar econômico. Os sistemas de intermediação financeira, o controle financeiro dos sistemas comerciais e de marketing, a apropriação privada das infraestruturas, a extração de recursos naturais, o rentismo baseado na apropriação de imóveis rurais e urbanos, o uso especulativo das políticas sociais, como saúde e educação, a guerra para dificultar o acesso ao conhecimento acumulado na sociedade, com patentes e copyrights, são exemplos de uma conjunto de atividades em que acima do nível do produtor efetivo de bens e serviços, do pesquisador, do país dono de recursos naturais, gerou-se uma classe de rentistas que se apropriam de cada movimento, colocando juros, tarifas, sobre-preços, levando por sua vez à formação de um clube dos ricos que detém imenso poder econômico, financeiro, político e midiático, essencialmente ao controlar direitos sobre atividades ou patrimônio de terceiros.

Há uma década o ETH, instituto federal suíço de pesquisa tecnológica, apresentou uma pesquisa de grande importância, primeiro estudo global da estrutura do poder corporativo mundial, que utilizei no meu livro A era do capital improdutivo. [21] No essencial, os autores mostraram que no mundo 737 grupos controlam 80% do mundo corporativo, e nestes um núcleo de 147 controla 40%. A qualificação de “clube dos ricos” é dos autores, e a justificam: no topo, são inclusive pessoas que se conhecem, e criaram instituições de articulação, como o IIF. Guerras sim, para ver quem compra quem, mas nada de concorrência para prestar melhores serviços: eles essencialmente gerem ‘ativos’ (assets), ou seja, constituem uma superestrutura de controle e extração, por meio do mundo digital. O estudo do ETH (Glattfelder e outros) representou um avanço sem dúvida, mas hoje precisamos de pesquisa em nível mais amplo, já que o denominador comum do controle encadeado (A controla B, que controla C, D, E etc.) com tomadas cruzadas de participação, hoje se amplia pelo fato dos sistemas digitais permitirem dinâmicas em escala muito mais ampla.

Michael Hudson tem razão em afirmar que está em jogo o destino da civilização. [22] Uma BlackRock tem mãos nos mais diversos setores, nos mundos da saúde, da mineração, da comunicação, trabalhando em nível planetário. A infraestrutura produtiva – a indústria com as suas máquinas, proprietários de meios de produção, trabalhadores assalariados – é controlada por plataformas, computadores, algoritmos e inteligência artificial, mas a superestrutura – o Estado regulador e marco jurídico correspondente – está em busca de novos rumos. Enquanto não surge um sistema regulador global, o mundo global da economia digital, nas suas diversas dimensões que vimos acima, simplesmente reina. E drena. A economia mundial está na era digital, as instituições públicas, a gestão política, as regras do jogo, continuam no século passado. Sem instrumentos de influência ou regulação, o mundo se aprofunda na catástrofe econômica, social e ambiental. A impotência institucional que enfrentamos nos leva a uma desarticulação sistêmica desastrosa, justamente quando a ciência e a riqueza que produzimos permitiriam uma vida digna para todos, sem destruir o planeta. Nosso problema não é econômico, é de governança. A gestão pública não é o problema, é a solução.

Um desafio metodológico e teórico

Como listamos os diferentes qualificadores que muitos pesquisadores sentiram necessidade de adicionar a “capitalismo”, no início deste trabalho, a questão básica aqui é se continuar a chamar esse sistema de capitalismo é adequado. A sugestão aqui é que é cientificamente mais produtivo e teoricamente mais adequado reunir as diferentes transformações do sistema capitalista e considerar que estamos diante de um novo modo de produção, um novo sistema. O fato básico é que a revolução digital trouxe mudanças profundas no sistema capitalista, assim como a revolução industrial trouxe para os diferentes modos de produção rural, em particular o sistema feudal.

A infraestrutura técnica mudou radicalmente, com as tecnologias que nos conectam instantaneamente em todo o mundo, dinheiro virtual, acesso virtual à informação e conhecimento. Tempo e espaço pertencem atualmente a outro paradigma de organização. Mais importante ainda, o principal fator de produção mudou para IA, informação virtual, conhecimento acumulado, tecnologia. As máquinas podem estar trancadas em uma fábrica, o conhecimento é radicalmente diferente, pois pode ser disseminado sem custo adicional, levando à compreensão do conhecimento como um bem comum [23]. O mecanismo dominante de extração de excedente econômico, por outro lado, mudou da exploração através de baixos salários para plataformas financeiras, de comunicação e informação, e os diferentes mecanismos de extração de renda que vimos. Consiste mais em extração de renda do que em acumulação de capital, em algo que também foi chamado de financeirização.

Nos níveis político e institucional, estamos vendo tentativas frenéticas de correr atrás das profundas transformações tecnológicas trazidas pela revolução digital: nossas leis e regulamentações são para a economia material do século passado. As finanças e outras plataformas funcionam em escala global, enquanto as regulamentações são basicamente gerenciadas em escala nacional, gerando vazios institucionais catastróficos, paraísos fiscais, entre outros, mas também a impotência das instituições internacionais que datam de Bretton Woods, de uma outra era.

Eu sugeriria que seria muito mais produtivo identificar os principais desafios – meio ambiente, desigualdade, as principais causas do sofrimento e desespero humano – e trabalhar nas instituições de que precisamos. Isso significa que temos que reconciliar as instituições com a modernidade, com os novos mecanismos e estrutura de poder da revolução digital. Não se trata de ser excessivamente ambicioso, mas de entender claramente quão dramáticos são nossos desafios, em escala global. A mudança institucional se tornou vital, no sentido original da palavra. Compreender que estamos enfrentando um novo conjunto de desafios, com a revolução digital como um sistema, nos ajudará a construir soluções sem carregar o ônus de tantas simplificações ideológicas e polarizações concernentes ao que conhecíamos como capitalismo.


Notas:

[1] Gar Alperovitz e Lew Daily – Apropriação Indébita – Senac, São Paulo, 2010 – <https://dowbor.org/2010/11/apropriacao-indebita-como-os-ricos-estao-tomando-a-nossa-heranca-comum.Html>

[2] Unrisd – Crises of Inequality – 2022 – p.1 – <https://cdn.unrisd.org/assets/library/reports/2022/full-report-crises-of-inequality-2022.pdf>

[3] Oxfam – Survival of the richest – Jan 2023 – Full text, English: <https://oxfamilibrary.openrepository.com/bitstream/handle/10546/621477/bp-survival-of-the-richest-160123-en.pdf> Português: <https://materiais.oxfam.org.br/a-sobrevivencia-do-mais-rico-davos-2023>

[4] O investimento produtivo, que gera capacidades ampliadas de produção, deve ser distinguido das aplicações financeiras, que podem ou não gerar investimento produtivo. Os que manejam papeis financeiros, diversos tipos de aplicações, mas não produzem, preferem se qualificar de ‘investidores’.

[5] Big Think– ‘The West” is in fact the world’s biggest gated community – Big Think, October 12, 2019 –

<https://bigthink.com/strange-maps/walled-world/?utm_medium=Social&utm_source=Facebook&fbclid=IwAR3WF9_e_YVIDAstRyyaTwHgBs_SqwwXV3y11DbT-nwDtwAgzlPq65cy9vM#Echobox=1648785756-1>

[6] Ha-Joon Chang – Chutando a escada – 2002 – <https://dowbor.org/2005/04/chutando-a-escada-estrategia-de-desenvolvimento-numa-perspectiva-historica-2.html>

[7] Brett Christophers – Rentier Capitalism – Vero, London, 2020 – p. xxxi

[8] Paul Sweezy e Harry Magdoff – Stagnation and the Financial Explosion – Monthly Review Press, New York, 1987, p. 101

[9] André Gorz – O Imaterial: conhecimento, valor e capital – Ed. Anna Blume, 2005 – <https://dowbor.org/2005/11/o-imaterial.html>

[10] Sistematizamos esta dimensão da economia no artigo Da propriedade intelectual à economia do conhecimento – 2009 – <https://dowbor.org/2009/11/da-propriedade-intelectual-a-economia-do-conhecimento-outubro.html>

[11] TNI – Transnational Institute – Big Tech: the rise of GAFAAMT – <https://www.tni.org/en/big-tech-the-rise-of-gafaamt> (Acesso 9 de abril de 2023) – Ver também <https://outraspalavras.net/tecnologiaemdisputa/estudo-especial-a-captura-da-tecnologia/>

[12] Ver Juliana Oms (Org.) – O consumidor na era da pontuação de crédito – IDEC, Belo Horizonte, 2022

[13] Ivanna Shepetyuk – What is the average marketing budget by industry – Merehead, March 14, 2023, <https://merehead.com/blog/average-marketing-budget-different-business-areas/>

[14] Sobre a transformação do marketing de informação comercial para manipulação comportamental, ver <https://dowbor.org/2022/10/o-marketing-da-alienacao-total.html>

[15] Brett Christophers – Rentier Capitalism – Verso, 2020, pp. 278 e 323

[16] Carmen Ang – Visual Capitalist – 25 de abril de 2022 – <https://www.visualcapitalist.com/how-big-tech-makes-their-billions-2022/> – Acesso 2 de abril de 2023

[17] Raymond W. Baker – Invisible Trillions: How financial secrecy is imperiling capitalism and democracy – and the way to renew our broken system – BK, Oakland, 2023

[18] Christophers, op. cit. p. 351

[19] Beatriz Blandy e Ladislau Dowbor – A financeirização da educação brasileira e seus impactos – <https://dowbor.org/2023/04/a-financeirizacao-da-educacao-brasileira-e-seus-impactos.html>

[20] Ver Lawrence Lessig – The Future of Ideas: the fate of the commons in a connected world – Random House, New York, 2001 – https://dowbor.org/2004/06/the-future-of-ideas.html – Livro disponível em pdf: https://ia800504.us.archive.org/35/items/TheFutureOfIdeas/TheFutureOfIdeas.pdf

[21] L. Dowbor – A era do capital improdutivo – Autonomia Literária, São Paulo, 2018 -<https://dowbor.org/2017/11/2017-06-l-dowbor-a-era-do-capital-improdutivo-outras-palavras-autonomia-literaria-sao-paulo-2017-316-p-html.html>

[22] Michael Hudson – The Destiny of Civilization – Islet, 2022 – <https://dowbor.org/2022/09/destiny-of-civilization-finance-capitalism-industrial-capitalism-or-socialism.html>

[23] Elinor Ostrom and Charlotte Hess  – Understanding Knowledge as a commons – MIT Press, 2007 – https://dowbor.org/2015/05/  Ver também Jeremy Rifkin – The Zero Marginal Cost Society – Palgrave MacMillan, 2017 – https://dowbor.org/2015/03/

* Economista e professor titular de pós-graduação da PUC-SP. Foi consultor de diversas agências das Nações Unidas, governos e municípios, além de várias organizações do sistema“S”. Autor e co-autor de cerca de 45 livros, toda sua produção intelectual está disponível online no website www.dowbor.org.

Fonte:  https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/rentismo-o-novo-modo-de-producao/