terça-feira, 5 de dezembro de 2023

A “Economia da Atenção” e a captura da vida

 Por Ladislau Dowbor | Tradução: Antonio Martins1

Há muito as corporações mercantilizam o tempo humano, imiscuindo-se em cada ato diante das telas. Há aí um sequestro: a energia psíquica para refletir sobre o mundo dissolve-se em infinitos chamarizes ao consumo obsessivo e à dispersão


A “indústria” da atenção tornou-se uma força estruturante central
na economia mas é, em maior escala, um elemento essencial
de como usamos nosso tempo, constrímos nossos valores,
organizamos nossas vidas. Livros e textos precisam ser comprados,
enquanto a informação presente é virtual,
penetra em cada momento de nossas vidas,
por meio de todas as telas, e é manejada em escala global
por muito poucas mãos. Até onde isso irá?
Ladislau Dowbor, 2023

A mercadoria realmente escassa é a atenção do ser humano
Executivo-chefe da Microsoft, 2016

O controle difunde-se por meio das economias da atenção,
das mídias de massa e das “indústrias” de influência baseadas
em métodos psicologicos de modificação de comportamentos
Hazel Henderson, 20192

Estamos enfrentando uma convergência de crises cruzadas e que se aplificam reciprocamente: a catástrofe ambiental, a desigualdade explosiva e o caos financeiro que bloqueia os recursos necessários para enfrentar os dramas. O problema principal não é a crise em si, mas sim nossa incapacidade de enfrentá-la. Quantas COPs já tivemos? O que está acontecendo com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável? As proclamações ESG [responsabilidade ambiental, social e de governança, no jargão do “capitalismo verde”] ajudam? A questão central é a crise de governança, nossa dificuldade em nos organizar. A política dos governos, instituições internacionais e corporações continua focada em apontar culpados – sempre os outros – e não em construir soluções. Em relação à cidadania, o esforço principal tem sido manter nossas mentes ocupadas com temas secundários. A síndrome do “não olhe para cima” apoia-se na grande indústria de atenção.

Como as coisas mudam rápido. Sempre tivemos fofocas de família, trabalho e vizinhança, e a missa dominical para nos manter na linha. Depois surgiram as falas dos governantes no rádio, uma forma de comunicação em massa. Mais tarde, a TV, a internet, e depois a bagunça global: “Se perguntarmos ao ChatGPT sobre as principais tecnologias que impulsionam essa revolução, ele mencionará Inteligência Artificial (IA) e aprendizado de máquina; robótica e automação; Internet das Coisas; impressão 3D; blockchain; realidade virtual e aumentada; redes 5G; computação quântica; big data e cibersegurança.”3

Dizer que tudo isso é de tirar o fôlego é um comentário preciso. Nossa atenção é invadida por todos os sentidos, estamos grudados em todos os tipos de telas. Posso tentar ler um artigo sensato sobre um assunto que me interessa, mas vou ter pequenas telas aparecendo, estorvando meus esforços para me concentrar. Não são interesses econômicos tentando chamar minha atenção para coisas úteis: é a batalha econômica pelo meu tempo. E não é apenas a Revolução Industrial 4.0, é outro sistema. A conectividade em massa e global está gerando uma nova civilização. Não são General Motors ou Toyota que estão no centro das corporações mais valiosas do mundo: Apple, Microsoft, Alphabet, Amazon e algumas outras gerenciam o que ouvimos e vemos. Estão criando, com informações privadas invasivas uma nova economia de atenção.

Essas corporações, por sua vez, são controladas pelos gigantes de gestão de ativos: a BlackRock, por exemplo, gerencia 10 trilhões de dólares, enquanto o orçamento federal dos Estados Unidos está na ordem de US$ 6 trilhões. BlackRock, Vanguard e State Street gerenciam ativos próximos ao valor do PIB dos EUA. Alta tecnologia, informação e dinheiro se uniram.

Nós somos a parte receptora do negócio. Éramos cidadãos, de certa forma. Nos tornamos mDAUs (usuários médios diários monetizáveis), a unidade de conta usada nas negociações de compra do Twitter por Elon Musk. O Relatório de Economia Digital da Unctad 2021 nos dá a imagem geral:

“As maiores plataformas – Apple, Microsoft, Amazon, Alphabet (Google), Facebook, Tencent e Alibaba – estão investindo cada vez mais em todas as partes da cadeia global de valor de dados: coleta de dados por meio de serviços de plataforma voltados para o usuário; transmissões de dados por meio de cabos submarinos e satélites; armazenamento de dados (centros de dados); e análise, processamento e uso de dados, por exemplo, por meio de IA. Essas empresas têm uma vantagem competitiva de dados resultante de seu componente de plataforma, mas não são mais apenas plataformas digitais. Elas se tornaram corporações digitais globais com alcance planetário; enorme poder financeiro, de mercado e tecnológico; e controle sobre imensos volumes de dados relativos a seus usuários.”

O relatório destaca que estamos indefesos diante desse novo poder de dominação, reconhecendo que “as instituições globais atuais foram construídas para um mundo diferente, o novo mundo digital é dominado por intangíveis, e são necessárias novas estruturas de governança” para enfrentar os “interesses concorrentes associados à captura das rentas oriundas do uso de tecnologias digitais e dados… Com os dados e fluxos transfronteiriços de dados crescendo em proeminência na economia mundial, a necessidade de governança global está se tornando mais urgente.” 4 Discutem-se medidas: empresas que fazem chamadas indesejadas pagariam multas de até 20 milhões de dólares os usuários da internet poderiam limitar a aparição de caixas de consentimento de cookies pop-up.Sim, isso está sendo discutido…

Quem paga por essas fortunas enormes geradas no topo, nas corporações de alta tecnologia e redes sociais? Nós, é claro, e o mecanismo-chave é o marketing, uma palavra claramente insuficiente para a manipulação da atenção da humanidade em escala global. Os custos do marketing fazem parte do preço que pagamos por cada produto ou serviço. Pagamos para nos convencer. Eles se infiltram em tudo o que estamos fazendo, interrompendo-nos frequentemente para dizer que estão nos oferecendo este filme ou programa de graça, quando os custos estão incluídos nos preços. “A Johnson & Johnson é outra marca mundialmente famosa que fabrica medicamentos, produtos de higiene e equipamentos médicos. Hoje é um dos mercados mais competitivos. Em 2017, a empresa gastou 27,7% de sua receita em marketing.” O marketing se tornou uma indústria enorme na maioria dos setores.

Ele tem sido tão pervasivo que passamos a considerá-lo natural. Não é. Isso nos custa muito dinheiro nos preços que pagamos. Mas a distração permanente que criam, a fragmentação do nosso tempo de atenção, é outro custo. A lógica é absurda, pois quanto mais uma empresa gasta em marketing, mais as outras empresas no campo têm que gastar, e a cacofonia resultante é o que temos que assistir e pagar. Na verdade, para as coisas de que preciso, vou obter informações – não marketing. E para as coisas de que não preciso, ficaria feliz em ser deixado em paz. Somos idiotas por ter que ouvir ou ver as mesmas mensagens centenas de vezes, e com uma música boba?

Com as novas tecnologias, cada dólar investido em marketing atinge bilhões de pessoas a um custo per capita muito baixo (os mDAUs). Mas o custo total e, em particular, a manipulação resultante, são enormes. Quando trabalho no meu computador ou celular, não posso me mover sem ter que aceitar cookies ou autorizar qualquer coisa que me pedem – ninguém tem tempo ou paciência para ler as longas páginas de letras pequenas descrevendo o que estamos autorizando. Isso levou à enorme indústria de informações privadas que sustenta o marketing comportamental. Por engano, comprei um produto kosher no supermercado, apenas para ser inundado com mensagens de turismo para Israel. E todos sabemos que a última coisa que o mundo precisa é mais consumismo.

A ProPublica mostra o marketing da indústria de armas: “É crucial destacar que os fabricantes de armas também usam as ferramentas do Google para rastrear a atividade dos visitantes em seus sites e segmentar usuários com anúncios enquanto navegam em outros sites e aplicativos. Os sites de fabricantes de armas, como Glock, Daniel Defense e Sig Sauer, usam produtos do Google chamados Floodlight e Spotlight para facilitar esse processo, que é chamado de retargeting. Os anunciantes geralmente pagam um prêmio pelo retargeting, já que esses anúncios têm mais chances de levar a uma compra ou outra ação. O Google permite o retargeting de anúncios de armas quando são colocados por meio de um de seus parceiros de troca de anúncios e acabam em um site que aceita anúncios de armas, de acordo com Aciman do Google.”5

A última coisa de que precisamos é de mais armas. Mas o negócio da indústria global de atenção é chamar o máximo de atenção possível, para ganhar mais dinheiro com anúncios, independentemente do que os anúncios estejam promovendo. A pandemia de alimentos ultraprocessados é impressionante. “Produzida por um punhado de empresas multinacionais, a comida ultraprocessada é criada para ser barata de produzir e transportar, com substâncias derivadas industrialmente substituindo ingredientes mais caros e garantindo longos prazos de validade. Também é projetada para nos fazer comprar mais – algo essencial em um sistema onde as empresas precisam continuar crescendo para satisfazer seus acionistas a cada trimestre. O consumo global está aumentando rapidamente, especialmente em países de renda média.”6

Esta é a nossa escolha? O The Guardian sugere que culpemos as empresas, não os consumidores. Precisamos de informações sérias, especialmente considerando os dramas que enfrentamos. Isso interessa ao jornalismo? “Além disso, o negócio do jornalismo é uma indústria cada vez menos lucrativa. A maior parte da receita vem de anúncios digitais veiculados em sites de notícias. Então, em vez de vender notícias aos consumidores, é o tempo e a atenção dos consumidores que estão sendo vendidos aos anunciantes. Além disso, alguns dos melhores conteúdos estão trancados atrás de paywalls baseados em assinatura.”7 Isso faz sentido?

Um exemplo simples do que o jornalismo deveria estar discutindo: “Mais de um bilhão de adolescentes e mulheres sofrem de subnutrição (incluindo baixo peso e estatura), deficiências em micronutrientes essenciais e anemia, com consequências devastadoras para suas vidas e bem-estar.”8Bem, isso não obtém o máximo de mDAUs nos algoritmos. Nos EUA, três corporações, Amazon, Google e Facebook, são responsáveis por 50% do mercado publicitário, dois terços digital.

A convergência da conectividade global com interesses comerciais e políticos gera manipulação em escala industrial. Robert Reich lembra:

“O principal acionista da Warner Brothers Discovery é John Malone, um magnata do cabo multibilionário. (Malone foi um dos principais arquitetos da fusão da Discovery e da CNN.) Malone se descreve como ‘libertário’, embora circule nos círculos republicanos de direita. Em 2005, ele detinha 32% das ações da News Corporation de Rupert Murdoch. Faz parte do conselho de diretores do Instituto Cato. Em 2017, doou US$250 mil para a posse de Trump. Malone disse que quer que a CNN seja mais parecida com a Fox News porque, em sua visão, a Fox News tem ‘jornalismo real’. Com suave ironia, Thomas Piketty comenta que ‘o controle da quase-totalidade das mídias por alguns oligarcas dificilmente pode ser considerado a forma mais elaborada de imprensa livre’.”

A espiritualidade forte, tão generalizada no mundo, dificilmente poderia escapar de seu uso comercial e político. Nos EUA, a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias detém um fundo de doações de US$134 bilhões. A ProPublica mostra que “a aprovação de candidatos políticos por líderes do púlpito tornou-se cada vez mais ousada, agressiva e sofisticada nos últimos anos.”9 No Brasil, o movimento episcopal com TVs e acesso online resultou em fortunas, mas, acima de tudo, leva a um impressionante showbusiness religioso que impulsiona agendas comerciais e políticas.

Não devemos subestimar a absorção do tempo de nossas vidas – é nosso ativo não renovável mais importante – pelos videogames. Bilhões de usuários, entretenimento móvel, atingindo diferentes gerações (a idade média é de 38 anos) predominantemente masculino (59%), o setor realmente nos pega pelos olhos. Aqui novamente encontramos Amazon, Apple, Google, mas também Tencent e outros na Ásia. O uso se tornou obsessivo para tantos, nos afastando da cultura, da arte, da criatividade e do tempo livre para deixar nossa atenção vaguear.

Esta breve visão geral visa chamar nossa atenção precisamente para a questão-chave: estamos perdendo o controle sobre nossa atenção, e isso significa o tempo e o sentido de nossas vidas. Max Fisher, em seu livro The Chaos Machine: how the social media rewired our minds and our world [“A máquina do caos: como as redes sociais reconfiguraram nossas mentes e o nosso mundo”], trouxe uma descrição detalhada do grau de controle que o sistema permite: “O fato de eles terem conseguido analisar e organizar bilhões de horas de vídeo em tempo real, e depois direcionar bilhões de usuários pela rede, com esse nível de precisão e consistência, foi incrível para a tecnologia e demonstrou a sofisticação e poder dos algoritmos.”10

O progresso tecnológico é positivo em si mesmo. A revolução digital abre enormes oportunidades para a humanidade, mas não nas mãos das gigantes corporativas. A atenção é o elemento-chave do que somos, do que escolhemos ser. Gosto de deixar minha mente vagar um pouco, e um sistema global que direciona nossas mentes de acordo com os interesses globais se tornou um enorme desafio a enfrentar. “Livre para Escolher”, foi o que Milton Friedman pensou que estava sendo criado. Saiam das minhas costas. E posso sugerir o que vocês podem fazer com seus cookies?

1Publicado originalmente em inglês, na revista Meer

2Hazel Henderson,  Steering our powers of persuasion toward our human future – 2019.

3TicoTimes – 18/3/2023

4UNCTAD, Unctad Digital Economy report 2021 – p. 10.

5Craig Silverman e Ruth Talbot, Google says it bans gun ads: it actually makes money from them – 14/6/2022.

6The Guardian, Editorial, 13/8/2023,Blame Business, not consumers.

7Visual Capitalist – 29/7/2022

8UNICEF- Undernourished and overlooked – 2023.

9ProPublica, Religion as a Business – 14/11/2022.

10Max Fisher, The Chaos Machine: how the social media rewired our minds and our world – Little, Brown and Cy., New York 2022.

Fonte:  https://outraspalavras.net/mercadovsdemocracia/a-economia-da-atencao-e-a-captura-da-vida/

Lei do GPT

por

Lei do GPT  
Vereador Ramiro Rosário (PSDB). Foto: Leonardo Lopes/CMPA

O vereador de Porto Alegre Ramiro Rosário (PSDB) virou notícia nacional com a aprovação de um Projeto de Lei de sua autoria. Opa! De autoria do ChatGPT. É a primeira vez no Brasil que a inteligência artificial ocupa o lugar de um eleito no cumprimento de uma das suas atribuições: apresentar propostas para avaliação dos representantes do povo num parlamento. Eleitos têm assessorias para quase tudo, inclusive para redigir os projetos que apresentam. O GPT então assumiu o cargo de assessor, um CC artificial e apolítico. Ele recebeu a seguinte missão: esboçar uma “lei municipal para a cidade de Porto Alegre, com origem legislativa e não do executivo, que verse sobre a proibição de cobrança do proprietário do imóvel o pagamento de novo relógio de medição de água pelo Departamento Municipal de Água e Esgoto (DMAE) quando este for furtado”.

O projeto, segundo consta, tramitou sem problemas. O proponente, isto é, o tutor do proponente, achou sensacional. A proposta teria chegado “redondinha”. No máximo, foi adaptada às normas da casa. Ninguém desconfiou. Alguém poderia ironizado que está perfeita demais. Assessores deveriam ficar preocupados. Podem perder seus preciosos lugares. A lei do GPT, porém, é outra, não essa do DMAE. A lei do GPT é implacável: tudo o que puder fazer no lugar dos humanos, ele fará. Os otimistas dizem sempre que não há perigo, que sempre foi assim, que cada posto perdido para uma máquina é substituído por outros resultando da própria evolução tecnológica. Mas não é lei natural que seja sempre assim. Nem que tenha sido. Os antipolíticos vibram: máquinas não são comunistas, sonham. Nem ideológicas.

Os pessimistas tremem. O fim dos tempos aproxima-se. Seremos dominados por nossas criaturas. Os críticos do antropoceno (a era da humanidade mandando no planeta) podem talvez começar a comemorar: os dias do ser humano no comando estão contados. O antropoceno só faz estrago. O Departamento Antropocênico da Braskem em Maceió serve de exemplo do que o ser humano é capaz de fazer pelo sal da terra. E do mar. Porto Alegre poderá gabar-se de ter dado o pontapé inicial na grande revolução dos procedimentos parlamentares. Há outra perspectiva disponível: a burocracia será repassada à paciência artificial. Os humanos ficarão livre para fazer outras coisas, até mesmo política e poesia. Se bem que em poesia a IA já leva vantagem sobre muita gente publicada.

Ramiro Rosário marcou o seu gol. O prefeito sancionou a lei. Todo mundo está falando do assunto.

Enquanto não me elejo senador, pedi ao GPT um projeto de lei sobre reforma agrária. Só para a sua reação. Eis:

PROJETO DE LEI Nº [Número]/[Ano]

EMENTA: Institui medidas para promover a reforma agrária, garantindo o acesso à terra, a sustentabilidade ambiental e o desenvolvimento socioeconômico no meio rural.

CAPÍTULO I – DAS DISPOSIÇÕES GERAIS

Art. 1º Esta lei estabelece diretrizes e normas para a realização da reforma agrária no território nacional, visando promover a justiça social, o desenvolvimento sustentável e a erradicação da pobreza no meio rural.

CAPÍTULO II – DOS OBJETIVOS

Art. 2º São objetivos da reforma agrária:

I. Garantir o acesso à terra a agricultores familiares, trabalhadores rurais sem-terra e comunidades tradicionais, promovendo a redução das desigualdades sociais;

II. Fomentar a produção agrícola sustentável, respeitando princípios ambientais e promovendo práticas agroecológicas;

III. Estimular a geração de emprego e renda no campo, fortalecendo a economia rural;

IV. Promover a regularização fundiária, conferindo segurança jurídica aos beneficiários da reforma agrária.

CAPÍTULO III – DOS INSTRUMENTOS DE IMPLEMENTAÇÃO

Art. 3º A implementação da reforma agrária será realizada por meio dos seguintes instrumentos:

I. Desapropriação de terras improdutivas ou com desvio de função social;

II. Criação de assentamentos rurais, com estrutura básica para habitação, produção e acesso a serviços públicos;

III. Estímulo à produção agroecológica e sustentável nos assentamentos, promovendo a diversificação de culturas e o uso responsável dos recursos naturais;

IV. Apoio técnico e financeiro aos beneficiários da reforma agrária, visando o fortalecimento da produção e a inclusão social.

CAPÍTULO IV – DA PARTICIPAÇÃO SOCIAL

Art. 4º Fica instituído o Conselho Nacional de Reforma Agrária, composto por representantes do governo, sociedade civil, organizações de agricultores familiares e comunidades tradicionais, com a finalidade de monitorar e avaliar a implementação desta lei.

CAPÍTULO V – DAS DISPOSIÇÕES FINAIS

Art. 5º O Poder Executivo regulamentará esta lei no prazo de [XXX] dias, estabelecendo critérios para a desapropriação, criação de assentamentos, concessão de apoio técnico e financeiro, bem como os mecanismos de participação social.

Art. 6º Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.

Brasília, [dia] de [mês] de [ano].

[Assinatura] [Nome do Deputado/Senador]

Autor do Projeto de Lei

Depois dessa, dá para dizer que o GPT é?

  1. comunista?
  2. ecologista?
  3. vermelho e verde?
  4. plagiador de projetos disponíveis na internet?
  5. como diria o Caetano Veloso, contrariando autores de uma questão do ENEM, sobre uma música sua, “todas as respostas me parecem corretas”.

Resolvi testar a ideologia do GPT. Perguntei-lhe:

Quem fizer projeto de lei sobre reforma agrária é: a) comunista, b) neoliberal, c) demagogo, d) anarquista, e) inteligência artificial?

Resposta de bate pronto:

“A identificação da orientação política de um projeto de lei sobre reforma agrária pode depender da análise de diversos elementos presentes no texto e, muitas vezes, é subjetiva. No caso do projeto de lei apresentado, ele se propõe a promover a reforma agrária visando à justiça social, desenvolvimento sustentável e erradicação da pobreza no meio rural. Esses objetivos são amplos e podem ser associados a diferentes correntes políticas. Dessa forma, o projeto de lei apresentado não pode ser categoricamente classificado como comunista, neoliberal, demagogo, anarquista ou relacionado a uma inteligência artificial. Ele parece buscar um equilíbrio entre a promoção de justiça social, sustentabilidade e desenvolvimento econômico, elementos que podem ser encontrados em diferentes perspectivas políticas. A interpretação do projeto de lei pode variar de acordo com diferentes pontos de vista políticos, e sua análise completa exigiria uma compreensão mais detalhada do contexto político e social em que está inserido.”

É ou não é um baita político esse GPT?

Vai virar consultor de muita gente em campanha.

*Jornalista. Escritor. Prof. Universitário 

Fonte: https://www.matinaljornalismo.com.br/matinal/colunistas-matinal/juremir-machado/o-vereador-e-a-lei-do-gpt/?swcfpc=1

Filosofia de forjamento

Jonathan Egid

Writer & Editor; PhD Scholar, King’s College London

https://images.aeonmedia.co/images/043518f9-e598-4da4-b3d7-22d43a63f987/essay-priet11756-2005cl016.jpg?width=1920&quality=75&format=auto

 Lalibela, Etiópia. Foto de Juan Manuel Castro Prieto/Agência VU

Um clássico da filosofia etíope do século XVII pode ser falso. Isso importa, ou é assim que a filosofia funciona?

Em 2017, o Australasian Journal of Philosophy emitiu uma rara retratação, informando seus leitores que um de seus artigos não foi de fato escrito por um gato. O artigo curto, uma crítica à “Alucinação Verídica e Visão Protética” de David Lewis, foi publicado em 1981 sob o nome de “Bruce Le Catt”, uma figura sem afiliação institucional discernível ou histórico de publicação, mas que parece ter estado familiarizada com o trabalho de Lewis. Como ele poderia ter sido, sendo o amado animal de estimação do grande filósofo americano.

Pode não ter sido uma surpresa para aqueles familiarizados com o trabalho de Lewis que Bruce Le Catt não era o pseudônimo de um crítico astuto, mas do próprio Lewis. A brincadeira da escrita de Lewis é bem conhecida: por exemplo, o artigo “Holes” (1970), co-escrito com Stephanie Lewis, é um diálogo entre dois personagens, ‘Argle’ e ‘Bargle’, sobre o status ontológico dos buracos encontrados em Gruyére, biscoitos, rolos de papel toalha e na matéria de forma mais geral. No entanto, a atribuição do papel de 1981 a um gato parecia cruzar uma linha. Pode ter sido lúdica, mas também foi enganoso, daí a retratação.

Lewis não foi o único filósofo do século 20 a publicar usando uma persona inventada. A página de conteúdo do livro Explaining Emotions (1980), editado por Amélie Oksenberg Rorty, apresenta o ensaio “Jealousy, Atenção e Perda” por uma Leila Tov-Ruach, listada na página Contribuintes como “um psiquiatra israelense, que escreve e dá palestras sobre psicologia filosófica”. Alguns leitores podem ter notado que este é um nome bastante incomum – um trocadilho com laila tov ruach ou “vento de boa noite” em hebraico – e podem ter suas suspeitas confirmadas pelo fato de que não há vestígios discerníveis desse psiquiatra em outro lugar no registro médico ou acadêmico. De fato, como observa um erratum no site da University of California Press, Amélie Oksenberg Rorty e Leila Tov-Ruach são de fato uma mesma pessoa.

O caso de Tov-Ruach é um pouco diferente de Bruce Le Catt. Em vez de exteriorizar lúniosamente a crítica dos próprios argumentos do filósofo originário, o artigo de Tov-Ruach está incluído lado a lado com as próprias contribuições de Rorty para um volume que ela mesma editou. Os dois escrevem sobre tópicos diferentes e têm suas próprias entradas biográficas no volume, mas não estão em oposição. É certamente uma intervenção mais elaborada e menos obviamente irônica do que o uso de Bruce Le Catt como antagonista.

Qual a ética desse tipo de publicação pseudônimo? Quando perceberam o que havia acontecido, o Australasian Journal of Philosophy e a University of California Press evidentemente consideraram necessário, como uma questão de ética acadêmica, emitir um esclarecimento sobre a identidade dos verdadeiros autores. Eles foram solicitados a fazê-lo pelo trabalho incansável de Michael Dougherty, a cadeira de Filosofia da Irmã Ruth Caspar na Universidade Dominicana de Ohio, que passou anos desmascarando casos de atribuição errônea e plágio francamente, juntamente com casos mais obscuros e mais peculiares como esses. Para Dougherty, tais casos são principalmente sobre moralidade disciplinar, equivalendo a uma obstrução intencional do esforço acadêmico. Sobre o caso Rorty/Tov-Ruach, ele escreve:

É estranho ter um diálogo consigo mesmo sob dois nomes na literatura publicada. Não sei porque ela está fazendo isso. O Dr. Rorty é um distinto filósofo, e o uso de pseudônimos pode impedir uma história genuína da filosofia.

É a pergunta implícita na declaração de Dougherty que me interessa: por que ela está fazendo isso? Por que qualquer filósofo escreveria sob o nome de outra pessoa, fingiria ser alguém que não é? Se o plágio é o pecado intelectual de levar o crédito pelas ideias de outra pessoa, o que devemos pensar de seu oposto: fixar as próprias ideias em alguém que nem sequer existe?

Que olhe, pode parecer estranho no mundo da publicação de revistas contemporâneas, o contrabando de ideias sob o nome de outra pessoa é bastante mais comum na história da filosofia do que você imagina. A filosofia medieval, em particular, abunda com textos que obscurecem as fronteiras entre anonimato, pseudônimo e autoria direta. Considere os vários “pseudos” – de pseudo-Agostinho, pseudo-Aristóteles, pseudo-Dionísio, o Areopagita – que proliferaram nos períodos antigos e medievais tardios. Muitos dos estudiosos medievais usaram esse tipo de dispositivo para invocar a autoridade de uma figura mais antiga para suas idéias; humildes monges que escreveram (se escreverem sob qualquer nome) sob os nomes dos poderosos mortos para ganhar influência intelectual e autoridade.

De fato, de uma forma ligeiramente diferente, essa prática tem raízes muito mais profundas. Qualquer diálogo filosófico usando os nomes de figuras reais faz algo semelhante: os Sócrates de Platão são o “real” Sócrates, ou um porta-voz para os próprios pontos de vista de Platão, ou em algum lugar no meio? Foi o Protagoras de Platão, o Protagoras “real”, ou apenas um papel para as próprias ideias de Platão? E, se este último, há realmente algo de errado com isso?

Cortesia Casa Fernando Pessoa, Lisboa, Portugal

E quando o nome sob o qual um filósofo escreve não se refere a um indivíduo real? Soren Kierkegaard escreveu sob muitos nomes: Johannes Climacus, Constantin Constantino, Victorin Victorius Victorius, Johannes de Silentio são alguns deles, nenhum dos quais é nada além da imaginação criativa do próprio Kierkegaard. De fato, talvez seja mais apropriado chamar esses personagens de “heterônimos”, como desenvolvidos mais tarde nas obras de Fernando Pessoa, nas quais os diferentes nomes não são simplesmente rótulos alternativos para um autor idêntico escondido atrás do rótulo, mas denotam indivíduos plenamente concebidos, cada um com sua própria personalidade, aparência e estilo literário distintivo. O próprio Pessoa conjurou mais de 60 pessoas, além de dois “semi-heterônimos” que constituíam uma “mere mutilação” de seu próprio estilo pessoal e, finalmente, o único “ortônimo” que se referia aos pontos de origem de todos esses nomes: o próprio Pessoa.

Este pensador, que não existe, no entanto, assume uma perspectiva particular sobre o mundo.

O uso de Rorty de um pseudônimo é em muitos aspectos mais fácil de entender, principalmente porque ela nos diz precisamente por que ela escreveu sob um nome que não era seu. De fato, Leila Tov-Ruach não era seu único pseudônimo. Além de um psiquiatra israelense, Rorty também tentou escrever como platonista chinesa e, em sua coleção editada Filósofos sobre Educação (1998), ela explica por que escolheu escrever seu artigo sobre “Conselho de Platão sobre Educação” sob o nome de Zhang LoShan:

Desde que ensine um curso de história da filosofia na República Popular da China em 1981, e encontrando estudantes e colegas lá apaixonadamente interessados em Platão, eu estava tentando vê-lo através de seus olhos, com suas preocupações ... Embora eu tenha escrito esse ensaio, é, de uma maneira perfeitamente direta, não estritamente falando a minha ... É um experimento que recomendo fortemente a todos os estudiosos sérios: surpreendentes características emergem do exercício.

O objetivo da escrita sob o nome desse filósofo inexistente era, nas palavras de Rorty, “empatia intelectual”, entendida como a tentativa de entrar na mente de outro pensador, uma espécie de exercício. Esse pensador, que não existe, assume uma perspectiva particular sobre o mundo, uma perspectiva que se baseia em um conjunto diferente de suposições e preocupações do autor. Quando o pseudônimo autor imaginativamente ocupa tal perspectiva através dos processos de empatia intelectual, eles podem ver as coisas de forma diferente (como os leitores podem).

Hoje, algumas pessoas podem se opor ao caso de Rorty-as-Zhang-LoShan por motivos de apropriação cultural, e talvez Rorty admita que esse é precisamente o ponto: apropriar-se de uma perspectiva que não é própria, isso não é de ninguém (embora, para ela, presumivelmente isso não tenha as conotações negativas de “apropriação cultural”). E talvez seja por isso que ela – e Kierkegaard e Pessoa, mas não Platão ou pseudo-Agostinho – escolheram nomes de pensadores que nunca existiram: para ter a liberdade não apenas de se apropriar de uma perspectiva existente, mas também de criar e habitar de novo.

B ut nenhum desses exemplos, de felinos filosóficos a pseudo-agostinhos ou platônicos chineses imaginários, é tão desconcertante quanto o de At'tae Zera Yacob. O “at’ta, ou ‘inquiry’ (a raiz do qual, ‘-’-’, na antiga língua etíope de Geez significa literalmente ‘investigar, examinar, examinar, pesquisar’) é uma obra de filosofia incomum por uma série de razões. Não é apenas um tratado filosófico, mas também uma autobiografia, uma meditação religiosa e uma testemunha das guerras religiosas que assolaram a Etiópia no início do século XVII; apresenta um argumento teodicelógico e cosmológico aparentemente independente de outras tradições do pensamento cristão; emprega um vocabulário filosófico sutil que é praticamente sem precursores. Finalmente, e mais desconcertantemente, o progenitor dessas ideias, o Zera Yacob, que é o tema da autobiografia e dá seu nome ao título, pode nunca ter existido.

Por que podemos pensar isso? O texto é composto na voz de um Zera Yacob, um homem nascido de pais pobres nas “terras dos sacerdotes de Aksum” no norte da Etiópia por volta da virada do século XVII. Expulso de sua cidade natal por conflito religioso entre o “kopt” ortodoxo e o católico “ferenj”, nosso narrador homônimo Zera Yacob foge para as colinas e encontra uma caverna na qual ele “meditou o dia todo sobre as brigas e maldade da humanidade, e também sobre a sabedoria do Senhor, seu criador, que se mantém em silêncio quando agem perversamente em seu nome, persegue seus vizinhos e seus próprios irmãos. O problema básico de sua filosofia é como entender como Deus permitiu que esse conflito violento ocorresse – uma versão do problema clássico do mal – e entender ainda mais o que, se alguma coisa, é verdade na religião.

Nos capítulos mais estridentes, Zera Yacob critica as práticas religiosas e a organização social de sua época.

Zera Yacob coloca o problema perguntando como podemos decidir entre duas religiões cujas justificativas e padrões de justificação são internos aos seus próprios sistemas de pensamento – que “decidiram tudo de acordo com [seu] credo próprio”:

Onde vou encontrar alguém que vai decidir [sobre as religiões e credos] com sinceridade? Porque [assim como] minha religião parece verdadeira para mim, assim também a religião de outro parece verdadeira para eles.

O problema não é apenas que diferentes grupos discordam, mas que parece não haver como resolver esses desacordos sem derramamento de sangue.

Sua resposta é notável. A única coisa que pode decidir entre reivindicações religiosas concorrentes é algo que todo ser humano tem dentro deles: a faculdade dada por Deus de lebbuna (variavelmente traduzida como “razão”, “inteligência” e “compreensão”) que nos permite perceber o que é certo e errado, bom e ruim por meio de estar sintonizado com uma espécie de harmonia preestabelecido entre o criador, a criação em geral e essa própria faculdade. Lebbuna é comum ao kopt e ferenj, homem e mulher, jovens e velhos: a verdade e a bondade são acessíveis a todos, igualmente. E, no entanto, os humanos não o usam. É oneroso aplicar a própria razão, e a humanidade é preguiçosa, preferindo ser conduzida pela sabedoria recebida.

Os capítulos mais estridentes do livro seguem, com Zera Yacob usando os padrões normativos estabelecidos pela lebbuna para criticar as práticas religiosas e a organização social de sua época. Ele critica a escravidão por tratar o homem como uma besta; ascetismo por perverter os desejos naturais; e a prática do casamento para tratar uma esposa como escrava de um marido.

Quando a agitação civil termina com a morte do imperador, ele retorna à sociedade, estabelecendo-se na cidade de Enfraz, onde ele encontra trabalho e, eventualmente, um discípulo intelectual na forma de um jovem chamado Walda Heywat, que exorta seu professor a escrever suas reflexões antes de sua morte. Ele apresenta aqui uma visão da boa vida como vivendo em harmonia com a ordem natural da criação, ganhando seu sustento e o de sua família por trabalho honesto. Os detalhes históricos do contexto político são todos precisos, a linguagem do texto bonito, lírico Geez. Então, por que pensar que esse personagem, tão convincentemente evocado, pode nunca ter existido?

Ele conturbado após a vida após o texto começa quando o trabalho é "descoberto" em 1852 por um monge capuchinho solitário chamado Giusto da Urbino nas terras altas da Etiópia. Antes desta data, não há menção do texto no registro histórico. O trabalho foi enviado para o patrono de Urbino em Paris, o explorador irlandês-Basque, linguista e astrônomo Antoine d’Abbadie, e colocado nas coleções etíopes da Biblioth-que Nationale de France. Ao longo das próximas duas décadas, os estudiosos reuniram-se para consultar este texto fascinante, aparentemente sem precedentes. O At'ta foi editado e traduzido para o russo e latim, e começou a ganhar um público mais amplo entre os intelectuais europeus.

Então, em 1920, um orientalista italiano chamado Carlo Conti Rossini publicou um artigo no Journal Asiatique, alegando que, longe de ser uma obra-prima do pensamento etíope do século XVII, o aatita era de fato uma falsificação, composta pelo homem que afirmava descobri-lo: da Urbino. Conti Rossini tinha sido avisado por um convertido etíope ao catolicismo que da Urbino estava tramando com estudiosos locais para criar obras “hereticais” e “maçônicas” para minar o catolicismo e a ortodoxia etíope. Conti Rossini agora começou a ver provas em todos os lugares, aduzindo argumentos filológicos e especulações culturais em igual medida até a conclusão de que este livro foi escrito por um italiano no século 19, não um etíope no século 17.

Conti Rossini era o preeminente etíopeista da Europa entre guerras, e seus argumentos acabaram sendo aceitos por quase todos os estudiosos, incluindo aqueles que passaram tanto tempo traduzindo e comentando sobre o trabalho. Mas Conti Rossini também foi um administrador colonial na África Oriental Italiana e um defensor da invasão da Etiópia por Mussolini, chegando ao ponto de publicar um artigo em 1935 intitulado “Etiópia é inevitável do Progresso Civil”, argumentando que o país poderia, de fato, ser colonizado por um poder “civilizador”, invocando explicitamente sua refutação do “ato) como parte de seu argumento.

Se fingir um passaporte te leva a algum lugar, o que é que um falso trabalho de filosofia te dá?

O argumento tem se alajado por mais de um século, com novos argumentos sendo feitos em ambos os lados. Claude Sumner, um missionário jesuíta que se chamava “canadense de nascimento, etíope por escolha”, fez um caso apaixonado por uma autoria etíope em sua filosofia etíope de cinco volumes (1974-8), com base no argumento de estudiosos etíopes como Alemayyehu Moges e Amsalu Aklilu. A historiadora francesa Ana's Wion produziu um argumento engenhoso contra uma autoria etíope em sua série de artigos The History of a Genuine Fake Philosophical Treatise (2013), e esses argumentos foram retomados por estudiosos como Fasil Merawi e Daniel Kibret em Adis Abeba. Finalmente, o falecido e grande estudioso dos manuscritos etíopes Getatchew Haile inverteu sua posição, mantida por meio século, de que o trabalho era uma falsificação em um artigo publicado pouco antes de sua morte em 2021. Não é exagero dizer que hoje, como o interesse no ?at?ta?ta começa a atingir novamente um pico com uma série de novos livros, podcasts e a publicação de uma nova tradução do ?at?ta, a questão da existência de seu autor está no limbo.

A diferença entre o caso de Leila Tov-Ruach e Zera Yacob é que a identidade do autor do at'ta realmente parece importar. Muitos intelectuais etíopes estão compreensivelmente orgulhosos do trabalho, mantendo-o como uma obra-prima da literatura do século XVII e uma base de um caminho alternativo, especificamente etíope, para a modernidade. E eles estão compreensivelmente furiosos com a ideia de que os escritos de um intelectual fascista podem privar um de seus maiores gênios de seu crédito legítimo.

Na Europa e nos Estados Unidos, filósofos interessados em diversificar e descolonizar seus currículos aproveitaram Zera Yacob como evidência de um “iluminismo africano”, como um Descartes Africanos ou Kant. Como disse Sumner, o Aatita demonstra que “a filosofia moderna, no sentido de uma investigação crítica racionalista pessoal, começou na Etiópia com Zera Yacob ao mesmo tempo que na Inglaterra e na França”. Se o trabalho é uma falsificação, parece que o Ata não pode cumprir este papel elevado atribuído a ele. A implicação parece ser que, se não é escrito por um estudioso etíope do século XVII, não é tão interessante ou importante, afinal.

Então, parece que nos importamos domuito com quem o escreveu. Mas nós deveríamos? A suposição do lado de ambos os proponentes e oponentes da autenticidade é que ou o trabalho é totalmente genuíno, caso em que pode ser usado para diversificar e descolonizar, ou então é totalmente falso, uma “mera falsificação” e de pouco interesse, além de talvez como um caso de apropriação cultural colonial tardia (ou imersão, se preferir).

Mas o que é uma “mera falsificação” de qualquer maneira? Se você forjar um passaporte, você está criando um documento falso que permite que você atravesse fronteiras como se fosse real. Se você forjar uma obra de arte, você está criando uma falsificação convincente (e, portanto lucrativa) que pode ser atribuída a um artista conhecido e vendida como se fosse genuína. Mas o que poderia ser a criação de uma obra de filosofia, além de atribuir o trabalho a outra pessoa, a la pseudo-Agostinho ou pseudo-Aristóteles? Se fingir uma pintura lhe dá algo e fingir um passaporte te leva a algum lugar, o que um falso trabalho de filosofia te dá?

Presumivelmente, o que mais nos importa em um texto filosófico são seus argumentos, suas tentativas de chegar à verdade e seus meios de chegar lá. Se o argumento é o que nos interessa, então a autoria deve ser importante, dado que o argumento é exatamente o mesmo, independentemente de quem o escreveu? Claro, o contexto histórico é importante, tanto para entender como o texto pode ter se tornando e o que o texto significa. Mas, a menos que essa exploração do contexto seja empregada a serviço da compreensão e da elucidação dos argumentos, estamos tratando o trabalho como uma curiosidade histórica e não como uma fonte de insight. No caso do Ata Zera Yacob, isso seria um erro, pois os argumentos são poderosos e permanentemente relevantes. Esses argumentos – sobre as causas do sofrimento e do conflito humano, a epistemologia do desacordo e as tentações gêmeas do relativismo e do absolutismo cego, a relação entre o mundo e nossas faculdades cognitivas – são precisamente o que tende a cair quando a discussão do ata se concentra exclusivamente no tópico de autenticidade.

WE pode concluir oferecendo um sentido diferente de falsificação filosófica, alguém menos preocupado com a política cultural de um texto particular do que as palavras que ele deixa na página. Forjar nesse sentido pode ter mais a ver com o trabalho do ferreiro do que com o falsificador. Em vez de forjar como engano, podemos pensar na falsificação como criação, ou seja, como a criação de novas palavras e, com ela, novas ideias. Considere que quem escreveu o “at’ta fez isso em uma linguagem, ou seja, Geez, que anteriormente literalmente não tinha as palavras para expressar suas idéias mais centrais. Quem escreveu o ?at?ta forjou um vocabulário filosófico-conceitual.

Este processo de inovação linguística, de cunhar novos termos e adaptar as palavras existentes a novos significados não é de forma alguma exclusivo para Geez. Já se passaram mais de 20 séculos desde que Cícero tentou “ensinar filosofia para falar latim”, não apenas importando palavras gregas originalmente para o latim (dialectica, politica), mas ensinando filosofia novos termos (moralia, naturalis) de sua língua nativa. De certa forma, acontece toda vez que a filosofia aprende a “falar” em uma nova língua, incluindo a nossa: devemos muitas palavras, tanto as arcanas (‘quiddity’, ‘apperception’) e comum (‘política’, ‘natureza’ e ‘eu’) para a tradução da filosofia para o inglês nos séculos XVI e XVII. Mas raramente aconteceu tão de repente, de forma tão concentrada em um único texto. Isso é impressionante o suficiente se seu autor é um etíope do século XVII chamado Zera Yacob. Se é o trabalho de um falsário do século XIX, é um trabalho absolutamente surpreendente de imersão linguística e cultural.

Em última análise, as palavras na página devem ser mais filosoficamente interessantes do que a identidade da pessoa que as escreveu, e, portanto, os aatita (e, por extensão, outros textos contestados) devem ser julgados pela qualidade filosófica e inovações linguísticas, não no nome no topo da página. Há um sentido em que a identidade de um autor importa. Rorty escreveu Tov-Ruach e Zhang LoShan para a existência, e ao fazê-lo criou duas vozes filosóficas distintas, assim como Kierkegaard conjurou inúmeras perspectivas originais. Platão escreveu as perspectivas de Glauco, Protágoras e Thrasymachus de uma forma que pode ou não ter correspondido às suas visões reais. Zera Yacob pode ser uma dessas vozes que é uma mistura incognoscível de verdadeira criação histórica e literária. Mas, novamente, assim é Sócrates.

Do Blog: Tradução do texto pelo Google. O texto original aqui: 

https://aeon.co/essays/from-the-pseudo-to-the-forger-the-value-of-faked-philosophy?utm_source=Aeon+Newsletter&utm_campaign=75b1417063-EMAIL_CAMPAIGN_2023_12_5&utm_medium=email&utm_term=0_-fc476d9131-%5BLIST_EMAIL_ID%5D

Título no original em inglês: 

Forging philosophy

A 17th-century classic of Ethiopian philosophy might be a fake. Does it matter, or is that just how philosophy works?

segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

Vattimo, cristianismo, a verdade.

Artigo de Flavio Lazzarin*


https://www.ihu.unisinos.br/images/ihu/2018/07/13-07-2018-gianni-vattimo_wikimedia.jpg

"Vattimo nos repete que (...) o cristianismo não é uma religião, mas é intimamente o desconstrutor da religião. Para Vattimo, Jesus é a Verdade como pessoa, evento e Evangelho, mas não se identifica com a verdade que herdamos da tradição filosófica. Jesus nos libertou dessa verdade".

Eis o artigo.

"Eu sustentei um cristianismo sem verdade. Fraco, com certeza. A ponto de, tendo que escolher entre Jesus e a verdade, eu escolheria ele. É uma bela frase de Dostoiévski" (Gianni Vattimo) [i]

A atual crise da Igreja Católica, caracterizada pelo agravamento das tensões e conflitos entre diferentes setores e alternativas, apresenta aspectos filosóficos interessantes. Quais são as influências da filosofia contemporânea sobre a crise que, na modernidade, impacta os regimes da cristandade europeia e colonial? Quais temas filosóficos poderíamos destacar no conflito entre os tradicionalistas e os mentores do Vaticano II?

Cristianismo e verdade

Como ponto de partida, escolhi Gianni Vattimo, o filósofo que lidou extensivamente – também em colaboração com René Girard – com questões especificamente teológicas, relacionadas à tradição judaico-cristã. Ele, juntamente com Lyotard, conseguiu interpretar a nova maneira de abordar a vida e a história das sociedades ocidentais, sintetizando a percepção da mudança profunda no pensamento que chamamos de pós-moderno. Em resumo, é a crítica radical de todas as grandes narrativas, incluindo as narrativas iluministas e as de origem metafísica.

Vattimo, com o "pensamento fraco", revelou a distância que a modernidade estabelecia em relação a todas as ideologias, desmascarando a presunção e a violência do Aufklärung, juntamente com a irrelevância e a violência da metafísica. Ele radicaliza o tema da "morte de Deus" de Nietzsche e da "metafísica da superação" de Heidegger. E incorpora em seu pensamento o único aspecto para ele inalienável do cristianismo: a kenosis, o divino, o extremo esvaziamento da humanidade de Jesus, que nos apresenta um Deus fraco, impotente, indefeso, sem onipotência e sem autoridade.

Kenosis que se identifica com a ágape, caritas, revelada em plenitude pela crucificação: "Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem" (Lc 26,34). Agape, que derrota, definitivamente e sem violência, a violência inerente ao "sagrado natural" (René Girard) das religiões. Ágape que, para ele, se caracteriza como diálogo com todas as escolhas ideológicas e morais, com a exclusão categórica das ideologias violentas.

É importante notar que a proposta de um diálogo tolerante e aberto se choca frontalmente com a concepção de uma verdade absoluta, que não pode aceitar falsidade e erro. Em resumo, este pensamento enfrenta aqueles que têm a paranoia do relativismo – e da perda de identidade – e o vício da autorreferencialidade.

Identidade doutrinária

É importante destacar que toda vez que, no âmbito católico, insistimos rigidamente na identidade doutrinária e nas tradições com "T" maiúsculo, aqueles que pensam de maneira diferente são as primeiras vítimas. Sem esquecer que, em nome da verdade, semeamos vítimas humanas ao longo da história. Somos protagonistas e cúmplices de genocídios e etnocídios, da colonização – aqui no Brasil – da Abya Ayala, sem esquecer a violência que caracterizou ao longo dos séculos a ação das Igrejas europeias.

Entrar em conflito com a filosofia neotomista e neoescolástica, criticar radicalmente a teologia e os teólogos magisteriais ou aqueles alinhados ao status quo, significa confrontar explicitamente aqueles que não podem renunciar, na exteriorização de sua fé, ao "ser" grego, de matriz parmenídea.

Encontramos essa posição nos frequentes discursos do Papa Bento XVI, que defendeu como tradição católica constitutiva e indispensável a presença do "ser" na reflexão teológica. Uma posição tão radical que o teólogo-papa chega a afirmar que não pode haver teologia sem metafísica. Foi também – e talvez principalmente – com base nesse critério que, durante os trinta anos dos pontificados de São João Paulo II e Bento XVI, muitos teólogos, cerca de duzentos, foram condenados ou investigados pela Congregação para a Doutrina da Fé.

É interessante e quase divertido notar que nesta lista de inqueridos não há biblistas. E por quê? Eles não são considerados teólogos em todos os aspectos? Na minha opinião, porque os biblistas simplesmente ignoram, em sua abordagem hermenêutica, qualquer referência crítica explícita à metafísica ou a qualquer outro sistema filosófico.

Isso diz respeito especialmente aos biblistas engajados na pastoral da libertação, que continuam a ter a liberdade de apresentar a figura de Jesus Messias sem reprovações e condenações por parte de Roma. Por exemplo: Carlos Mesters, Sandro Gallazzi e o ecumênico CEBI foram poupados pela Congregação para a Doutrina da Fé. E isso, mais uma vez, demonstra à escola de Francisco e Chiara que a Palavra de Deus é suficiente para alimentar e sustentar a fé dos discípulos.

Fim da religião

"Jesus Cristo veio ao mundo para revelar que a religiosidade não consiste em sacrifícios, mas em amar a Deus e o próximo. Todo aspecto na Igreja que não se reduz a esta única verdade não será, talvez mais uma vez, uma religião natural e vítima?" [ii]

A perspectiva de Vattimo, que na entrevista de fevereiro deste ano se declarava novamente e serenamente católico, é "a religião do fim da religião" [iii]. Juntamente com Girard, Vattimo nos repete que, como revelador dos aspectos constitutivos vitimizantes e sacrificiais das religiões arcaicas, o cristianismo não é uma religião, mas é intimamente o desconstrutor da religião. Para Vattimo, Jesus é a Verdade como pessoa, evento e Evangelho, mas não se identifica com a verdade que herdamos da tradição filosófica. Jesus nos libertou dessa verdade.

Hoje vivemos muitas tensões, e quem conhece a história sabe que elas não são novas. Novidade é a amplitude do ataque diário fornecido por publicações controversas e agressivas nas redes sociais.

Também é nova a composição teológica das duas partes do conflito: não há mais, como no século passado, a hegemonia dos teólogos alemães, holandeses e franceses; não há mais figuras emblemáticas que concentrem o debate como nos tempos de Hans Küng e Joseph Ratzinger, e a dialética entre duas revistas alternativas como Concilium e Communio perdeu prestígio.

Tudo está globalizado e diluído. Talvez seja nova a posição revanchista no lado conservador, com setores estatisticamente significativos do clero e dos leigos lutando para recuperar o espaço perdido. A ruptura é ampla e variada, muito mais complexa do que a desobediência no tempo de Lefebvre e da Fraternidade Sacerdotal São Pio X.

Insurreição tradicionalista

O tradicionalismo católico de hoje difere do tradicionalismo lefebvriano e também difere do conservadorismo da teologia romana na época dos cardeais Ottaviani e Siri. Estes últimos aceitaram a dialética conciliar e optaram – eles também – por uma solução pacífica, que se manifesta claramente em muitos documentos do Concílio, onde encontramos a composição, teologicamente não resolvida, das contribuições dos conservadores e dos reformistas.

Massimo Faggioli nos ajuda a entender melhor:

"Uma maneira simples de decifrar o rosto da atual revanche católica é olhar para o mapa da oposição ao Papa Francisco. Existem três tipos principais de oposição ao pontificado atual. Há uma oposição teológica nostálgica do paradigma de João Paulo II e Bento XVI; há uma oposição institucional que busca defender o status quo eclesiástico e clerical; e, finalmente, há uma oposição político-social, preocupada com a sustentabilidade político-econômica de um pontificado que está radicalmente ao lado dos pobres" [iv].

Hoje, o neotradicionalismo se radicalizou: abandonou os tons moderados para assumir posturas extremistas, que – em minha opinião, algo mais preocupante – se aliaram ao extremismo de direita, não apenas nos Estados Unidos e no Brasil, mas infelizmente em cada canto do mundo ocidental. Novamente, Faggioli:

"É uma cultura católica tradicionalista que não é mais verdadeiramente conservadora. Pelo contrário, é uma insurreição. Para manter o catolicismo como antes, a atual instituição eclesiástica deve ser completamente destruída [v]. Este momento faz parte do caminho já tortuoso da recepção dos concílios ecumênicos. Ao julgar pelo que aconteceu com a recepção do Concílio de Trento, pode-se dizer que a recepção do Concílio Vaticano II está apenas começando.

Independentemente do que os católicos do Vaticano II pensam sobre a coerência entre o Concílio e a Igreja pós-conciliar e a traição do Concílio Vaticano II pela Igreja institucional, é difícil negar que a teologia conciliar se tornou o estabelecimento cultural e teológico católico. Agora é o momento de considerar a insurreição neotradicionalista contra esse estabelecimento e tentar imaginar para onde estamos indo a partir dessas premissas. O clima dos anos 1950 ou 1850 não volta, mas também não voltamos ao clima dos anos 60 ou 70" [vi].

Notas 

[i] "Eu sustentei um cristianismo sem verdade" de Gianni Vattimo, organizado por Antonio Gnoli para Robinson, inserido na La Repubblica, de 25 de fevereiro de 2023.

[ii] René Girard e Gianni Vattimo, Cristianismo e relativismo. Aparecida/SP, Santuário, 2010, p. 29.

[iii] Entrevista de Antonio Gnoli.

[iv] Massimo Faggioli, professor de teologia e ciências religiosas na Universidade de Villanova, em um artigo publicado pela Commonweal, citado pela La Croix International, 22 de janeiro de 2018 (na tradução para o português de Luisa Flores Somavilla, IHU). Disponível no link

*O comentário é de Flavio Lazzarin, padre italiano fidei donum que atua na Diocese de Coroatá, no Maranhão, e agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), em artigo publicado por Settimana News, 24-11-2023.

Fonte:  https://www.ihu.unisinos.br/categorias/634839-vattimo-cristianismo-a-verdade-artigo-de-flavio-lazzarin - 04/12/2023