Por Laura Greenhalgh — Para o Valor, de São Paulo
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Cenas da barbárie em Brasília: um exército formado para
destruir a democracia, no anseio de uma intervenção militar — Foto: Marcelo
Camargo/Agência Brasil
Especialistas analisam o fenômeno que vem levando grande
parte da população a aderir a uma realidade paralela
“Olha aqui, os
policiais não estão fazendo nada e o Congresso está invadido. Que lindo. São
brasileiros que enfrentaram bombas, nem sei de onde vêm esses tiros... só sei
que estou aqui, feliz da vida. Mônica, João, isso é para vocês.”
A mensagem é de uma mulher de
meia-idade, que foi a Brasília participar dos atos golpistas de 8 de janeiro.
Sua voz é comovida, porém, calma e pausada. Serve de fundo para as cenas de
caos na Praça dos Três Poderes que ela capturava pelo celular. “Está
pacífico...”, repete ao narrar o vídeo da sua epopeia. Talvez tão relevante
quanto saber quem é a mulher e o que a levou a integrar aquela horda de
vândalos depredadores seria entender o sentido profundo desta frase: “Mônica,
João, isso é para vocês”.
Quem seriam os herdeiros da sua
aventura? Filhos, netos, amigos chegados, não se sabe. Alistando-se num
exército de demolidores da democracia, no anseio de uma intervenção militar que
desse fim a um governo legitimamente eleito e recém-empossado, a mulher parecia
viver o transe da sua relevância. Tanto que tratou de transferi-la em tempo
real, pelo celular, para destinatários muito especiais. Falava como combatente.
Arriscou-se para chegar à capital federal. Resistiu. Invadiu. Acredita que seu
esforço será garantia de um futuro melhor para Mônica e João.
Enquanto a “patriota” postava o
vídeo, o Congresso e o Palácio do Planalto estavam sob o signo da barbárie. Não
tardaria a acontecer o mesmo com o Supremo Tribunal Federal. O que se viu
naquela tarde foram cenas de violência e selvageria, protagonizadas por
invasores que quebravam espaços públicos de dentro para fora, muitos com a
destreza de gente treinada em táticas de assalto. O terror que assombrou o
Brasil e o mundo destoava por completo do estado de graça da mulher do vídeo.
Calcula-se em 4 mil o número total de participantes da tentativa de golpe.
Feitas mais de 1.400 audiências de custódia, havia em torno de mil indivíduos
com prisão preventiva decretada, no momento da conclusão deste texto.
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Cenas da barbárie em Brasília: um
exército formado para destruir a democracia, no anseio de uma intervenção
militar — Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Muito tem se especulado sobre
realidades paralelas em que brasileiras e brasileiros se confinaram nos últimos
tempos, rejeitando dados objetivos, e mesmo subjetivos, a partir das
experiências existenciais que lhes toca viver. São milhões de pessoas
encapsuladas em bolhas de “gente que pensa como a gente”, nas redes sociais.
Ali trocam informações majoritariamente inverídicas, apavoram-se com falsos
alarmes, divertem-se com tiradas de humor macabro, difamam personalidades do
mundo cultural, político, acadêmico, reforçam preconceitos, professam
religiosidades e, sobretudo, indignam-se todo santo dia. Nesta e nas próximas
páginas, é justamente esse fenômeno psicossocial que será apreciado por especialistas
de diferentes áreas.
“Não é exagero afirmar que o
Brasil se tornou laboratório de realidade paralela”, propõe de saída o
historiador e cientista político João Cezar de Castro Rocha, professor da
Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e autor, entre outros títulos,
de “Guerra cultural e retórica do ódio” (Caminhos). “É fácil verificar isso:
hoje todos temos ao menos um parente ou amigo próximo que se enredou na trama
bolsonarista. Foram quatro anos de uma dieta brava de desinformação, a ponto
das pessoas passarem a acreditar só no que lhes era oferecido, descolando-se da
realidade.”
Embora circulem estimativas
imprecisas sobre o número dos apoiadores mais exaltados de Jair Bolsonaro,
projetadas a partir da presença de manifestantes em portas de quartéis, em
bloqueios de estrada e pelo país - diz-se algo em torno de 100 mil -, Castro
Rocha acredita que este segmento pode ser bem maior, considerando-se o universo
de 58 milhões de votos recebidos pelo ex-presidente na campanha de 2022. “Falo
daqueles com os quais não há chance de diálogo. Se divido uma mesa de
restaurante com outras pessoas e uma delas diz que Bolsonaro fez bem ao país,
peço uma garrafa de vinho e duas taças. Vamos conversar. Mas, se esta pessoa
afirma que o coronel Brilhante Ustra, um torturador condenado, foi um herói
nacional, daí pago a conta e vou embora. Farei o mesmo se a pessoa cravar que
mulheres devem ganhar menos do que os homens ou que negros são seres inferiores.
São situações em que conversar é perder tempo.”
Esta simulação de casos tem a ver
com a linha de pesquisa do professor nestes tempos bicudos. Recuperando uma
teoria dos anos 1950, a “dissonância cognitiva”, desenvolvida pelo psicólogo
americano Leon Festinger (1919-1989), Castro Rocha procura entender os
mecanismos associados ao modo como um indivíduo lida com dados da realidade.
Festinger demonstrou que faz parte da condição humana uma certa dissonância
entre “o que eu creio” e “o que eu faço”. Conhecido exemplo é o do médico
pneumologista que fuma. Sabe que faz mal, mas não abre mão dos seus charutos.
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“Não é exagero afirmar que o Brasil se tornou laboratório de
realidade paralela”, diz João Cezar de Castro Rocha, professor da Uerj — Foto:
Antonio Scorza/Agência O Globo
Trazendo o fenômeno para o campo
social, Castro Rocha observa a ampliação da dissonância quando, numa espécie de
looping, indivíduos passam a viver em comunidades virtuais ou bolhas que
retroalimentam as suas crenças. “Daí a dissonância torna-se coletiva e
perigosa. É quando as pessoas consomem teorias da conspiração que são
potencializadas na midiosfera extremista, ou seja, num ecossistema de
desinformação operando 24 horas por dia, todos os dias da semana.” Nessa
midiosfera, segundo o professor, cabem grupos de WhatsApp, canais do YouTube,
redes sociais, aplicativos e, elemento externo, a “mídia amiga”, como ideólogos
de extrema direita nomeiam determinados veículos de comunicação comerciais,
visivelmente alinhados.
A maior parte do Brasil,
constituída de pessoas que rejeitam o ser político Jair Bolsonaro e pessoas que
nele votaram sem endossar seu viés autoritário e antidemocrático, presenciaram
uma escalada retórica ao longo do mandato presidencial, especialmente nas
infovias. E funcionou para a ampliação da base de apoio do mandatário. Isso
levou o escritor e psicanalista Christian Dunker, ouvido pelo Valor, a refletir
sobre o enraizamento do bolsonarismo.
“Com toda certeza já se pode
falar em um movimento social dando suporte a um projeto de poder”, garante
Dunker, autor de “Lacan e a democracia” (Boitempo), livro no qual explora a
articulação entre psicanálise e política.
O que se viu em Brasília, prossegue, seria apenas uma amostra desse movimento,
incluindo mulheres e homens que sequer tinham claro para si o que
reivindicavam. “Acreditaram que dariam um golpe de Estado contando com
Bolsonaro fora do país, os generais em silêncio e as polícias em estado de
leniência.”
Sempre recorrendo ao campo
psicanalítico, Dunker chama a fúria destruidora do 8 de janeiro de “crença
delirante artificialmente produzida”. Vale explicar: nem todos os participantes
da Festa da Selma, codinome criado nas redes para batizar a invasão golpista,
são psicóticos. O que serve de explicação para aquelas ondas humanas derrubando
barreiras e adentrando os palácios, para daí quebrar sem dó o que lhes desse
vontade, seria uma situação clínica descrita há mais de um século: a folie à
deux, loucura a dois, que, na verdade, pode ser a três, a quatro, a mil. Como
elemento de ignição, o promotor de um estado delirante envolve outro, daí mais
outro, e essa adesão cresce a ponto de gerar uma realidade terceira, que já não
pertence a ninguém.
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Os ressentidos encontram múltiplas motivações para entrar
nessa mitologia”, diz a psicanalista Maria Beatriz Vannuchi — Foto:
Reprodução/Facebook
“A realidade então se subordina a
certezas construídas artificialmente, produzindo crenças que, para continuar a
existir, precisam ser praticadas continuamente. É o que explica o compartilhamento
incessante de fake news pelo celular, a tendência de ouvir sempre os mesmos
gurus, a vontade de fazer parte da mesma bolha, e assim por diante. Em resumo, é
a prática cotidiana da crença que dá consistência social ao delírio”, arremata
Dunker.
São meramente personagens
tresloucados os que se cobrem com a bandeira, tatuam bizarrices pelo corpo,
rezam em torno de pneus e ameaçam a vida de ministros da Suprema Corte? Afinal,
quem manipula e quem é manipulado? Mentores, organizadores e financiadores do
projeto golpista de 8 de janeiro têm sido identificados e deverão responder
criminalmente. Idem para os depredadores do patrimônio público. Porém,
admitindo-se haver também uma massa de manobra nessa história, Dunker traz para
a conversa um livro póstumo do colega Contardo Calligaris, editado em 2022,
cujo título é “O grupo e o mal: estudo sobre a perversão social” (Fósforo).
Trata-se da tese de doutorado de Calligaris, defendida na França em 1991, na
qual ele buscou verter para a teoria psicanalítica o conceito de “banalidade do
mal”, da filósofa alemã Hannah Arendt (1906-1975).
Um dos questionamentos do livro é
por que aceitamos conviver com atrocidades. “Eu me convenci de que a verdadeira
perversão é a social. É quando o indivíduo abdica da sua personalidade, como um
sujeito esvaziado, entregando-se à instrumentalidade do grupo, sob o fascínio
de servir ao outro”, explica Dunker. No prefácio do livro de Calligaris, o psicanalista
Jurandir Freire Costa chama tal comportamento de servidão voluntária,
remetendo-a ao contexto da ascensão das ideologias totalitárias pelo mundo,
“pesadelos históricos que julgávamos varridos pelo tempo”. Essa espécie de
prontidão para o que der e vier de gente que não pretende parar de louvar
Bolsonaro e repetir slogans que aprendeu com ele pode caracterizar esse tipo de
servidão.
Já alguns analistas políticos têm
apontado a possibilidade de formação de um “bolsonarismo sem Bolsonaro”. Ou
seja, mesmo que o ex-presidente saia de cena, o movimento seguirá adiante,
ganhando massa. Em entrevista recente, Dimas de Souza, professor do Instituto
de Ciências Sociais da PUC-MG, que justamente tem se concentrado em estudar a
base ideológica do bolsonarismo, afirmou que o movimento se mantém ao criar
para si uma mitologia, com um vilão (hoje, o presidente Lula), um salvador
(hoje, Bolsonaro) e teorias da conspiração (entre elas, hoje, o Foro de São
Paulo e o complô de dominação da esquerda).
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Rudá Ricci diz que uma palavra-chave é tédio. Um sentimento
difuso, habilmente explorado por agenciadores que oferecem viagens com tudo
pago, para promover ataques terroristas — Foto: Reprodução/Youtube
“Mas eu ainda penso em
bolsonarismo com Bolsonaro. Mesmo que o ex-presidente venha a sumir da cena
política, as pessoas vinculadas ao movimento irão substituí-lo por outra
figura. A identificação com o líder, feita de laços de paixão, como formulou
Freud em ‘Psicologia das massas’, é algo muito forte e poderoso. Atravessa a
realidade levando consigo um desejo gregário, afinal ‘sou instrumento daquele a
quem sigo’. Ou, ‘sou parte disso tudo’”, exemplifica Maria Beatriz Vannuchi.
Com intenso trabalho clínico a
partir de São Paulo e experiência acumulada em análise institucional, a
psicanalista explica que a realidade paralela deve ser entendida como uma
criação psíquica, portanto permeada pela fantasia, servindo como um meio de
fugir do real. “Só que a negação da realidade existencial, algo que pode se dar
bem perto da psicose, traz consigo muita dor, às vezes no limite do
insuportável. Vejo muita gente desesperada nesses acampamentos e atos golpistas
Vannuchi nos convida a olhar o
bolsonarismo lá na origem, como um canal de expressão para indivíduos que não
se sentiam incluídos ou contemplados. A partir de um dado momento, passam a
seguir um discurso extremista, que articula a criminalização da política, o
ataque à democracia e às instituições, a demonização da esquerda, a difamação
de autoridades, o conservadorismo nos costumes - e tudo isso envolto no pacote
do combate à corrupção, pela moralidade pública. “Assim os ressentidos encontram
múltiplas motivações para entrar nessa mitologia.”
Mas como abraçar o mito
incorporado por um presidente que não demonstrou ter empatia diante dos 700 mil
mortos pela covid-19 no Brasil, que jamais foi ao sepultamento de uma vítima ou
fez uma visita de pêsame a um familiar enlutado? Um presidente que inclusive
colocou a sua carteira de vacinação sob sigilo de 100 anos, para não ter de
prestar contas do seu negacionismo? “Bolsonaro não sente pena. Nem culpa.
Jamais sentirá”, acredita Vannuchi. E prossegue: “E por encarnar o ‘macho
ferido’ do patriarcado, seguidores seus tendem a imitá-lo, incluindo as mulheres”.
Neste ponto da conversa, impossível não pensar nas cenas de faroeste urbano da
deputada Carla Zambelli (PL-SP), às vésperas do segundo turno, correndo e
acossando um homem negro em São Paulo, de arma em riste.
A realidade paralela ganha outros
contornos com a ajuda de pesquisadores e teóricos da comunicação, campo onde se
revelam as evidências de que engajamento tem a ver com dinheiro. Muito
dinheiro. E a política já provou ser um instrumento eficaz para engajar - ao
gerar polêmica, alimentar antagonismos, impulsionar compartilhamento e, do
outro lado do balcão, multiplicar os anunciantes, tornando as plataformas
digitais cada vez mais ricas e poderosas. “Como tudo isso tem a ver com
faturamento, viveremos daqui para frente em estado de campanha”, anuncia Rose
Marie Santini, professora da Escola de Comunicações da UFRJ e diretora do
NetLab, núcleo de estudos e pesquisas sobre internet da universidade. Não será
exagero prever: todos sentiremos os efeitos da tensão pré-eleitoral permanente
em nossas vidas.
“Estudo internet há 20 anos. Comecei
pesquisando pirataria e hoje me vejo às voltas com o ativismo das redes.
Definitivamente, a política entrou nas plataformas, comandada por algoritmos
que são unidades de inteligência artificial com alto poder de influência sobre
os comportamentos humanos”, afirma Santini. “Evidentemente os conteúdos
polêmicos engajam mais, daí por que o discurso do ódio ganhou tanto terreno.
Engajamento é o que as plataformas querem mostrar ao mercado publicitário para
atrair anúncios e faturar. Por trás dessa lógica, existem modelos de negócio muito
bem estruturados e implantados, e não só no Brasil.”
Não restam dúvidas de que o
assalto ao Capitólio nos Estados Unidos, em 6 de janeiro de 2021, foi
articulado por meio das redes sociais. Investigações em torno da quebradeira
promovida por trumpistas radicais - sem a cobertura dos militares, bem ao
contrário - pavimentam o caminho para a responsabilização direta do
ex-presidente Donald Trump. No entanto, observadores notam que a apuração
torna-se mais arrastada quando o foco se volta para grandes plataformas.
Dois anos separam as explosões de
violência vividas em Washington e Brasília, com semelhanças que vão além da
mera coincidência, a começar pelo questionamento do resultado das eleições como
estopim. “Só que, no caso brasileiro, era algo já anunciado. Há quatro anos
acompanhamos mensagens raivosas contra o STF, com a convocação de invadir e
tocar fogo em tudo”, diz a diretora do NetLab, que chegou a apresentar relatório
para assessores dos integrantes da Corte.
A reação foi a de que aquelas
manifestações de desagrado fariam parte da democracia. Agora, após uma
tentativa de golpe de Estado, com centenas de prisões realizadas, o NetLab
chama a atenção para outro aspecto inquietante: do ponto de vista das redes
bolsonaristas, parece não haver arrependidos. “O que se vê é um discurso
unificado e orquestrado, de que todos são pela democracia, menos a esquerda, e
a destruição em Brasília foi feita por petistas infiltrados que agiram para
incriminar os patriotas.”
“Existem duas situações distintas
quando falamos de indivíduos fanatizados: os que cometem crimes e os que não
cometem crimes. Os primeiros devem ser punidos com a força da lei, como já vem acontecendo
nos Estados Unidos. Sobre os segundos, sempre existirão em qualquer democracia
livre. O desafio é impedir que cheguem ao poder e imponham as suas loucuras ao
restante da sociedade”, avalia o cientista político e escritor português João
Pereira Coutinho, autor de livros como “As ideias conservadoras explicadas a
revolucionários e reacionários”.
Coutinho acha que poderá haver
uma depuração natural no bolsonarismo após o vandalismo que se viu em Brasília.
Nesse sentido, uma parte da centro-direita que votou em Bolsonaro, sem muita
convicção, agora terá motivos para abandoná-lo. “Claro, estou sendo otimista,
mas às vezes o otimismo é uma forma de realismo.”
Já para o professor Castro Rocha,
o aumento do terrorismo doméstico é tema para o qual deve-se dar a devida
atenção no Brasil. Por isso ele espera que respondam por seus atos aqueles que
atuaram de forma criminosa, incluindo quem dá plausibilidade ao extremismo. “Ao
comparar os atentados em Washington e Brasília, admitamos que o episódio
brasileiro foi muito mais sério. Na capital americana, os bandidos se
concentraram em atacar o Capitólio, no momento da confirmação do candidato
vencedor. Na capital do Brasil, os bandidos atacaram todos os poderes da
República, com um governo já empossado. Gravíssimo.”
Ao monitorar constantemente as
redes, pesquisadores do NetLab têm detectado a presença de grupos que atuam como
células terroristas - na maneira de se comunicar, no uso dos códigos, nas
formas de mobilização etc. Caberia indagar: por frequentar esse ambiente de
alta radicalização, o vândalo de ontem pode ser o assassino de amanhã? A
resposta é “sim, para Christian Dunker. “Se a frustração dessas pessoas crescer
e se o delírio em que entraram de alguma forma for ameaçado, respostas mais
violentas podem surgir”, afirma o psicanalista, ressaltando a importância de se
criar canais de mediação para começar a tratar esses conflitos.
Um exemplo de recaída radical se
deu em novembro do ano passado, quando um homem invadiu a casa da presidente da
Câmara dos Representantes dos EUA, a deputada democrata Nancy Pelosi, então
segunda autoridade na linha de sucessão do presidente Joe Biden. O terrorista
arrombou a residência, situada num bairro chique de San Francisco, na
Califórnia, berrando repetidamente “onde está Nancy?”, o mesmo grito raivoso que
se ouvia quando tentaram capturá-la na invasão do Capitólio, em 2021.
Era madrugada quando o homem
acordou o marido da deputada, o investidor americano Paul Pelosi, de 82 anos,
que lhe disse que a mulher estava fora. Num dado momento, Pelosi conseguiu
acionar o 911 e a polícia chegou. Mas não antes de o criminoso alvejá-lo com um
golpe de martelo na cabeça. Paul Pelosi seguiu para a UTI, para ser submetido a
uma cirurgia de reparação craniana.
Quanto ao criminoso, David Wayne
De Pape, de 42 anos, sabe-se que é um propagador do QAnon, teoria da
conspiração de extrema direita com muitos adeptos entre os invasores do
Capitólio. O QAnon garante haver um complô de adoradores do Satã, em conluio
com pedófilos e traficantes sexuais, contra Donald Trump, guiado por Hillary
Clinton, Barack Obama, o banqueiro e filantropo George Soros e, não por acaso,
a deputada Pelosi.
Admita-se que nem todos os
“patriotas” que acamparam em quartéis e invadiram as sedes dos Poderes agiram
de forma criminosa, insuflados por influenciadores antidemocráticos e financiadores
de golpes. Então, o que fazer para pouco a pouco ajudar esses brasileiros a
saírem das suas bolhas e realidades paralelas? Este foi um dos tópicos tratados
pelo sociólogo e cientista político Rudá Ricci em entrevista ao Valor. “Para
enfrentar o extremismo, o governo não poderá ficar apenas nas ações
institucionais. Terá de se aproximar do povo e dos movimentos sociais, escutar
o que estão dizendo e daí propor programas de valorização e defesa da
democracia. Todo governo tem uma ação pedagógica, portanto, hora de usá-la.”
Ricci trabalhou com Paulo Freire
(1921-1997), um ícone da pedagogia mundial atacado pela extrema direita, e
recentemente lançou o livro “Fascismo brasileiro: E o Brasil gerou o seu Ovo da
Serpente” (Kotter Editorial). Tem procurado entender as razões do ressentimento
de razoável parcela da população, praticamente a metade do país. Acredita que,
para se chegar a um diagnóstico correto, será preciso olhar para o Brasil
profundo, constituído de 65% dos municípios brasileiros que estão distantes dos
centros urbanos.
“Ao analisar as listas dos
detidos em Brasília, vê-se que muitos saíram de pequenas e médias cidades, no
Centro-Oeste, Sudeste e Sul. Daí o dono da oficina se apresenta na polícia como
empresário. Idem para a vendedora de doces. A manicure se define como
empreendedora. Ou seja, aquela cultura caipira melancólica, do Jeca Tatu de
Monteiro Lobato, ou a cultura janeleira, do cronista João do Rio, foram
substituídas por uma cultura country acelerada, mercantilista, ostentatória”,
compara Ricci. “Os jovens desse imenso interior parecem cansados de estacionar
o carro para beber cerveja e ouvir sertanejo universitário no fim de semana.
Assim como idosos estão fartos de excursões de terceira idade com direito a
hotel decadente, sopão no jantar e baile da saudade antes de dormir. Digo isso
porque entrevisto essas pessoas”, conta Ricci, diretor e fundador do Instituto
Cultiva, que trabalha com projetos de educação.
Na sua descrição de um Brasil
desinteressante, a palavra-chave é tédio. Um sentimento difuso, habilmente
explorado por agenciadores que oferecem viagens com tudo pago, para promover
ataques terroristas e tentar golpes de Estado. Programa arriscado? Sim. Mas,
animado, também. Muitos chegaram a Brasília sentindo-se em excursão de turismo,
num grande embalo golpista. Foram detidos pela polícia e levados para dentro de
ônibus, de cujas janelas lançavam sinais de vitória, risadas, gritos, e faziam
selfies.
São múltiplos os caminhos de
interpretação da realidade paralela. Maria Beatriz Vannuchi não perde de vista
a “sensação de pertencimento” ao grupo, que transforma desencanto em aventura, sofrimento
em gozo. Chama ainda a atenção para o quadro epidêmico de problemas de saúde
mental no Brasil, algo que precisa ser cuidado com urgência. Christian Dunker
segue atrás dos mecanismos que levam ao refúgio de uma “realidade encantada”,
ainda que temerária. Castro Rocha continuará pesquisando a midioesfera
extremista. Coutinho se volta para a capacidade de as políticas democráticas
disciplinarem a violência. Rose Marie Santini finaliza um relatório sobre
quatro anos de ataques à democracia no Brasil. Quanto a Rudá Ricci, continuará
com a sua escuta social, quem sabe encontrando as vertentes de uma pedagogia
dos ressentidos: “Não é suficiente dizer que o Brasil voltou. Na verdade, o Brasil
mudou”.
Fonte: https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2023/01/27/atos-golpistas-como-funciona-a-psicologia-da-extrema-direita-brasileira.ghtml