sábado, 12 de outubro de 2024

Foi a última vez?

 Bruno Nogueira


A vida, ao contrário do que nos querem fazer crer, não é feita de grandes momentos. É feita de um amontoado de primeiras e últimas vezes, tão bem misturadas que só com sorte é que descobrimos as costuras. E se a última vez passou sem aviso, então que assim seja.

É A IGNORÂNCIA que nos mantém felizes. Desconhecemos o que está pela frente, e por isso avançamos com passadas largas. Esse desconhecimento do futuro pode ser uma falta de ar ou um alívio, porque abre espaço à imaginação, como se fosse um campo sem fim à vista. Sabemos sempre quando estamos a fazer uma coisa pela primeira vez, mas nunca sabemos quando estamos a fazer uma coisa pela última vez.

O que faríamos de diferente se soubéssemos que nunca mais iríamos voltar a repetir uma coisa? O pior das últimas vezes é que nunca se comportam como tal. Há abraços que são despedidas maiores do que aquelas que imaginamos que estão a ser, como se fossem um adeus que guarda um segredo escuro dentro dele. Se soubéssemos a derradeira verdade sobre o que estamos a fazer enquanto o estamos a fazer, teríamos à nossa disposição um leque muito maior de opções por onde seguir. O lamento de quem só mais tarde descobre que fez uma coisa pela última vez é um grito surdo que pode assombrar uma cabeça por tempo indefinido.

“Se eu soubesse que era a última vez teria feito de uma maneira diferente.” Se soubéssemos, talvez disséssemos adeus de olhos postos no outro, sem medo de esconder o que somos, sem vergonha da beleza da fragilidade. Mas a vida raramente nos dá esse luxo, a não ser que a tragédia nos tire o chão e nos obrigue ao impulso da despedida possível, a termos de revolver cá dentro de improviso o que achávamos que sabíamos de cor. É um jogo sujo de distração, onde estamos demasiado ocupados a viver para perceber aquilo que nos está a acontecer. E de repente um dia olhamos para trás e damos por nós a pensar: quando é que foi a última vez? O último jantar com alguém pode ter o mesmo sabor do penúltimo, e só depois, ao encontrarmos uma fotografia qualquer de uma noite distante, é que nos lembramos: olha, aquela foi a última vez. E aí já não há volta a dar.





Puxamos pela cabeça para tentar descobrir sinais que se calhar nunca lá estiveram, coisas que nos foram ditas nessa noite e que se calhar eram despedidas encapotadas, premonições de alguém que sabia tão pouco como nós. Este não saber tem um certo charme trágico. A vida poupa-nos quase sempre ao espectáculo da despedida porque sabe que não fomos feitos para dizer adeus. Somos todos frágeis, mas achamos que os outros ainda não descobriram. O último dia de Verão na nossa praia preferida já terá acontecido ou ainda está à nossa espera? Aquele passeio a pé pelo sítio mais bonito que conhecemos, que fazemos a achar que no dia seguinte o caminho ainda estará lá. Mas por vezes o caminho muda sem que nós saibamos. Ou pior: somos nós que mudamos sem sabermos. Achamos que é só mais uma vez adiada, sem percebermos que era a última. Se soubéssemos que era o fim talvez arruinássemos o momento com a consciência de que aquilo nunca mais se repetiria. A doce incerteza pode ser amarga ou pode ser a melhor forma que o grande mistério que é viver encontrou de nos suavizar a angústia que é não mandarmos na nossa sorte.

O tempo não é uma coisa infinita e nós sabemos isso, mas fingimos que não. Temos uma tremenda fé na imortalidade daquilo que queremos repetir, e andamos para a frente com a frágil certeza de que ainda haverá espaço para a despedida de tudo e de todos. Não há antídoto para isso que não caia em tragédia, porque dizer adeus a tudo como um ato definitivo é um peso que não nos deixaria voltar a levantar. Há uma certa misericórdia nesta ignorância, porque a vida já tem arestas suficientes e não precisa de mais umas para nos magoar. O problema é este: não é a morte que nos rouba as últimas vezes, é a vida. A vida, ao contrário do que nos querem fazer crer, não é feita de grandes momentos. É feita de um amontoado de primeiras e últimas vezes, tão bem misturadas que só com sorte é que descobrimos as costuras. E se a última vez passou sem aviso, então que assim seja. Já nos roubaram tanta coisa sem que déssemos por isso, o melhor é não nos roubarem também o prazer do momento. A beleza da última vez está precisamente no seu anonimato. Não a vimos chegar, e muito menos percebemos que já se foi.

Num mundo onde tudo nos fosse anunciado, não conseguiríamos andar cinco metros sem sermos consumidos pela nostalgia do que acabou de passar. O que nos salva é não sabermos o que temos pela frente, como se fosse um doce manto de nevoeiro. É avançar de peito feito, como se a última vez fosse só mais uma. E, de certo modo, é isso que a torna tão especial: ela passa, mas nós continuamos. Uma bênção disfarçada de tragédia. 

*Humorista

Fonte: https://www.sabado.pt/opiniao/detalhe/foi-a-ultima-vez

Nenhum comentário:

Postar um comentário