Bruno Nogueira

A vida, ao contrário do que nos querem fazer crer, não é feita de grandes momentos. É feita de um amontoado de primeiras e últimas vezes, tão bem misturadas que só com sorte é que descobrimos as costuras. E se a última vez passou sem aviso, então que assim seja.
É A IGNORÂNCIA que nos mantém felizes.
Desconhecemos o que está pela frente, e por isso avançamos com passadas
largas. Esse desconhecimento do futuro pode ser uma falta de ar ou um
alívio, porque abre espaço à imaginação, como se fosse um campo sem fim à
vista. Sabemos sempre quando estamos a fazer uma coisa pela primeira
vez, mas nunca sabemos quando estamos a fazer uma coisa pela última vez.
O que faríamos de diferente se
soubéssemos que nunca mais iríamos voltar a repetir uma coisa? O pior
das últimas vezes é que nunca se comportam como tal. Há abraços que são
despedidas maiores do que aquelas que imaginamos que estão a ser, como
se fossem um adeus que guarda um segredo escuro dentro dele. Se
soubéssemos a derradeira verdade sobre o que estamos a fazer enquanto o
estamos a fazer, teríamos à nossa disposição um leque muito maior de
opções por onde seguir. O lamento de quem só mais tarde descobre que fez
uma coisa pela última vez é um grito surdo que pode assombrar uma
cabeça por tempo indefinido.
Puxamos pela cabeça para tentar descobrir sinais que se
calhar nunca lá estiveram, coisas que nos foram ditas nessa noite e que
se calhar eram despedidas encapotadas, premonições de alguém que sabia
tão pouco como nós. Este não saber tem um certo charme trágico. A vida
poupa-nos quase sempre ao espectáculo da despedida porque sabe que não
fomos feitos para dizer adeus. Somos todos frágeis, mas achamos que os
outros ainda não descobriram. O último dia de Verão na nossa praia
preferida já terá acontecido ou ainda está à nossa espera? Aquele
passeio a pé pelo sítio mais bonito que conhecemos, que fazemos a achar
que no dia seguinte o caminho ainda estará lá. Mas por vezes o caminho
muda sem que nós saibamos. Ou pior: somos nós que mudamos sem sabermos.
Achamos que é só mais uma vez adiada, sem percebermos que era a última.
Se soubéssemos que era o fim talvez arruinássemos o momento com a
consciência de que aquilo nunca mais se repetiria. A doce incerteza pode
ser amarga ou pode ser a melhor forma que o grande mistério que é viver
encontrou de nos suavizar a angústia que é não mandarmos na nossa
sorte.
O tempo não é uma coisa infinita e nós sabemos isso, mas
fingimos que não. Temos uma tremenda fé na imortalidade daquilo que
queremos repetir, e andamos para a frente com a frágil certeza de que
ainda haverá espaço para a despedida de tudo e de todos. Não há antídoto
para isso que não caia em tragédia, porque dizer adeus a tudo como um
ato definitivo é um peso que não nos deixaria voltar a levantar. Há uma
certa misericórdia nesta ignorância, porque a vida já tem arestas
suficientes e não precisa de mais umas para nos magoar. O problema é
este: não é a morte que nos rouba as últimas vezes, é a vida. A vida, ao
contrário do que nos querem fazer crer, não é feita de grandes
momentos. É feita de um amontoado de primeiras e últimas vezes, tão bem
misturadas que só com sorte é que descobrimos as costuras. E se a última
vez passou sem aviso, então que assim seja. Já nos roubaram tanta coisa
sem que déssemos por isso, o melhor é não nos roubarem também o prazer
do momento. A beleza da última vez está precisamente no seu anonimato.
Não a vimos chegar, e muito menos percebemos que já se foi.
Num mundo onde tudo nos fosse anunciado, não conseguiríamos andar cinco metros sem sermos consumidos pela nostalgia do que acabou de passar. O que nos salva é não sabermos o que temos pela frente, como se fosse um doce manto de nevoeiro. É avançar de peito feito, como se a última vez fosse só mais uma. E, de certo modo, é isso que a torna tão especial: ela passa, mas nós continuamos. Uma bênção disfarçada de tragédia.
*Humorista
Fonte: https://www.sabado.pt/opiniao/detalhe/foi-a-ultima-vez
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