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sábado, 30 de setembro de 2017

Luis Felipe Miguel "Boa parte da sociedade está anestesiada, descrente na resistência"

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A democracia está em crise, mas há temor de ampliá-la. Por quê? "Muitos têm medo da participação dos pobres",
 diz professor da UnB
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Rogério Melo / PR
Michel Temer
Temer: governo de retrocessos

O "fim da história", conceito segundo o qual a democracia liberal e o capitalismo formam o conjunto definitivo de organização da sociedade moderna é o ponto de partido do recém-lançado livro Consenso e Conflito na Democracia Contemporânea (Ed. Unesp), do cientista político Luis Felipe Miguel. Professor titular da Universidade de Brasília (UnB), Miguel questiona a "receita infalível" e destaca que, mais de duas décadas depois do fim da Guerra Fria, o mundo parece estar longe de uma união sob um modelo único.

As desigualdades econômicas e políticas, lembra o professor da UnB, não foram extintas com a nova organização e as vozes que exigem uma nova organização são cada vez mais numerosas. Nesta entrevista a CartaCapital, Miguel analisa a resistência à ampliação da participação no processo democrático, no mundo como um todo, mas em especial no Brasil. "Aqueles que estão controlando o poder hoje sabem que o projeto que pretendem implantar, um projeto de desnacionalização da economia e da retirada do compromisso do Estado com a redução da desigualdade social, não ganha eleição no Brasil", diz.

CartaCapital: Na orelha do livro há uma citação à queda do Muro de Berlim como divisor de águas após a Guerra Fria. Naquele contexto Francis Fukuyama falou sobre "o fim da história", marcado pela hegemonia da democracia liberal. Como você avalia essa ideia?
Luís Felipe Miguel: A tese de que com a vitória dos Estados Unidos na Guerra Fria nós teríamos chegado a uma espécie de momento final da evolução da sociedade nunca teve cabimento. A Guerra Fria representou um embate entre dois sistemas políticos e econômicos diversos, mas se formos pensar os mecanismos que levam à transformação histórica, eles nunca estiveram nesse embate, mas sim nas contradições internas de cada sociedade. 

Se a gente for pensar no sistema capitalista, ele tem contradições internas que nunca deixaram de estar presentes. Isso é que leva às transformações e aos movimentos históricos. A ideia de que a história havia acabado porque nós havíamos chegado ao sistema político e econômico definitivo, sempre foi mais parte de uma propaganda política do que uma realidade.

CC: E o que pode ser feito para aperfeiçoar a democracia liberal?
LFM: O único caminho que consigo ver pra que tenhamos essa democracia liberal funcionando melhor é se ela for capaz de reconhecer os seus próprios limites e abrir espaço para uma maior participação das pessoas comuns. Não tem como pensar em um sistema que chegue a decisões com qualidade se ao mesmo tempo queremos manter a maior parte da população em uma situação de deseducação política quase completa.

Muitos querem manter as instituições formalmente funcionando, mas têm medo da maior capacidade de intervenção política daqueles que não são proprietários e da maior participação dos pobres caso ampliemos a participação.

CC: O senhor pode dar um exemplo disso?
LFM: No Brasil, recentemente, tivemos um exemplo disso quando a então presidenta Dilma Rousseff tentou implementar a Política Nacional de Participação Social, em 2014. Era um projeto muito tímido ainda, porque era simplesmente a sacramentação de conselhos consultivos sem poder decisório, mas houve uma grita das bancadas conservadoras e o projeto foi rapidamente arquivado.
"A partir da posse de Michel Temer, temos um processo acelerado de retrocessos nas políticas sociais, em liberdade democráticas e uma série de questões"
Existe um receio de que a maior participação signifique, na prática, uma partilha maior de poder. Só que a democracia é isso, é partilha de poder! Democracia é todas as pessoas terem condições de influenciar, da maneira mais igualitária possível, a tomada de decisões. É importante saber que se a gente quer um sistema mais democrático, temos de aceitar o sentido verdadeiro da democracia.  
   
CC: Uma das bases da democracia liberal é o sistema representativo no sistema político. Mas esse modelo parece estar sendo questionado tanto pela esquerda quanto pela direita. Por quê?
Temos vários elementos pra dizer que esse modelo representativo liberal, tal como foi construído principalmente nos países do Hemisfério Norte, mas que foram se espalhando pelo mundo ao longo do século XX, está em crise.

Identificamos isso de diferentes maneiras. Uma delas é a alta taxa de pessoas que não comparecem às urnas, ou que votam em branco mundo afora. Esse sistema representativo dá muito pouco espaço para os cidadãos comuns expressarem suas vontades e demandas. É um modelo muito delegativo, em que se espera que o cidadão participe a cada quatro anos e depois o resto do tempo fique passivo politicamente. Então é difícil criar um diálogo efetivo entre representantes e representados.

Aí entram outros elementos. O fato de que temos uma série de instituições nessa sociedade que servem pra enviesar esses representantes. O peso do dinheiro e dos meios de comunicação de massa são exemplos. O que ocorre é que esses representantes parecem muito mais próximos desses grupos de poder do que do conjunto dos eleitores, e os cidadãos percebem isso.

O exemplo de Donald Trump nos Estados Unidos é que essa crise tem sido frequentemente aproveitada por discursos manipuladores e que usufruem da desconfiança generalizada nessas instituições representativas não para torná-las melhores, mas para permitir que outsiders e projetos autoritários tomem conta do Estado.

CC: No livro o senhor cita o sociólogo francês Pierre Bourdieu e lembra que, quando representantes dos "dominados" chegam ao poder, são obrigados a moderar seu discurso. Como funciona essa processo? 

LFM: Embora tenhamos formalmente uma política igualitária em que, a rigor, qualquer cidadão pode ser candidato, na verdade temos uma série de mecanismos que filtram quem de fato pode ocupar essas posições de poder. Basta olharmos para o Congresso brasileiro pra ver que existe um certo perfil de pessoas que estão lá, homens, quase todos brancos, e com uma situação socioeconômica bastante superior à da média da população. Isso são os filtros que operam e geram uma série de pressões para que, quem quiser se fazer ouvir nesse espaço, fale a mesma língua daquelas que já estão lá.

 
Se eu entro com uma postura totalmente diferente, não vou conseguir influenciar nem participar do debate. Esse é um estímulo muito objetivo para que as pessoas se moderem.

Mas se elas fazem isso, por outro lado, deixam de representar as demandas que iriam representar no começo. Até as organizações mais radicais, com discursos mais a esquerda, acabam, com o passar do tempo, a se aproximar de posições mais moderadas justamente porque, se não fazem isso, ficam fadadas à irrelevância.

O que o Bourdieu nos ajuda a entender é que estamos sempre nesse dilema quando estamos nessas instituições. Isso tem de ser entendido como um elemento que faz com que o jogo seja mais favorável a algumas posições e menos favorável a outras

CC: Recentemente ao escrever sobre seu livro o senhor disse que o Brasil não tem nenhum consenso, mas que tem muito menos conflito do que deveria. O que isso quer dizer?
LFM: Nós vivemos no Brasil um retrocesso político muito acelerado nos últimos anos. O ponto emblemático foi o golpe parlamentar que destituiu a presidente Dilma Rousseff. Mas esse golpe não foi o fim da história. A partir da posse de Michel Temer, temos um processo acelerado de retrocessos nas políticas sociais, em liberdade democráticas e uma série de questões.

Temos hoje um governo que não está preocupado em construir consenso na sociedade. Normalmente aqueles que estão exercendo o poder, se querem que ele seja reconhecido com alguma base democrática, vão dialogar com a sociedade para tentar construir alguma base de apoio nas medidas que vão ser implementadas.

Ele não foi eleito, não tem legitimidade para estar onde está, mas empurra goela abaixo da sociedade políticas que são amplamente rechaçadas por ela. O caso da reforma trabalhista é um exemplo e a reforma previdenciária é outro. Não se busca uma discussão com a sociedade pra tentar atingir algum modelo que seja pelo menos aceito por uma boa parte dela. Não existe essa preocupação com o consenso.

Ao mesmo tempo nós temos muito pouco conflito porque a resistência da oposição a essas políticas tem sido muito fraca. Tivemos algumas tentativas. A greve geral de 28 de abril teve alguma repercussão, mas, de maneira geral, diante do tamanho dos retrocessos das políticas sociais, o que vemos é pouca resistência e muito pouco conflito político. Estamos numa situação em que boa parte da sociedade está anestesiada, descrente na possibilidade de resistência.
Congresso
No Congresso, permanecem sempre os mesmos (Foto: Ana Luiza Sousa / Fotos Públicas)
CC: O Congresso deve fracassar na tentativa de fazer uma reforma política. Como o senhor analisa esse processo? 
LFM: Temos aí uma situação na qual a elite política vem tentando arranjar uma solução que serve a ela mesma, mas que não leva em conta nenhum outro interesse social. Claro que se pensarmos em reforma política, há muita coisa pra ser mudada no Brasil, mas essa reforma que estão tentando fazer não toca em várias de nossas questões centrais, por exemplo, os meios de comunicação de massa, que são centrais no funcionamento do debate político.

CC: Durante o debate alguma figuras falaram sobre o parlamentarismo. O que o senhor acha dessa ideia?
LFM: Veio a ideia do parlamentarismo e, para dourar a pílula, estão chamando de semi-presidencialismo. Isso nada mais é que outra tentativa de tirar poder da Presidência da República e ampliar os poderes desse Congresso. Isso já foi rechaçado em dois plebiscitos, em 1963 e em 1993, e querem fazer passar agora sem consulta popular.

O parlamentarismo retira da vida política brasileira o único momento em que de fato nós temos alguma discussão sobre projeto nacional, que são as eleições presidenciais. As eleições para o Congresso tendem a ser dominadas por uma política pequena, uma política de vizinhança, de favorecimento de interesses corporativos.

Você não discute um projeto nacional normalmente numa campanha para o Congresso, isso é discutido na eleição presidencial. Mas aqueles que estão controlando o poder no Brasil hoje sabem que o projeto que pretendem implantar, um projeto de desnacionalização da economia e da retirada do compromisso do Estado com a redução da desigualdade social, não ganha eleição no Brasil.
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Reportagem por  por Bruno Pavan Almeida — publicado 30/09/2017
Fonte:  https://www.cartacapital.com.br/politica/boa-parte-da-sociedade-esta-anestesiada-descrente-na-resistencia
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sexta-feira, 29 de setembro de 2017

Mais Santo Agostinho, menos Contardo Calligaris: quem busca só prazeres carnais terá miséria espiritual

 Rodrigo Constantino*

O psicanalista Contardo Calligaris segue em sua cruzada materialista e hedonista, usando seu espaço na Folha às quintas-feiras para disseminar a busca desenfreada e irrefletida pelos prazeres carnais. Na coluna de hoje, voltou ao clássico Confissões de Santo Agostinho para concluir:

Agora, que eu saiba, não há outros casos de um relato mórbido grave que tenha tido um sucesso comparável. Agostinho conseguiu mesmo transformar o asco doentio por seu próprio tesão em condenação do desejo sexual numa cultura inteira, por séculos.
As encruzilhadas da vida são curiosas. Agostinho inventou um deus que pudesse ajudá-lo a reprimir seu desejo carnal.

Eu, desde a adolescência, deixei de acreditar no deus de Agostinho justamente porque me parecia absurdo que ele se preocupasse em reprimir o desejo carnal de quem quer que seja e especialmente o meu. Ou seja, ele chamou deus para que o auxiliasse na luta contra seu próprio prazer. Eu achei que realmente não precisava de um deus que fosse oposto a meus prazeres.
Alguém dirá que por isso irei ao Inferno. Veremos. Por enquanto, o fato é que Agostinho atormentou a vida de centenas de milhões. Eu, não. 

Minha preocupação não é tanto com o Inferno após a morte do autor, e sim com o inferno terrestre que ele ajuda a criar com essa mensagem libertina e irresponsável. Sendo um psicanalista, Calligaris deveria saber que até Freud, em Mal-estar na Cultura, reconhece que frear apetites é condição necessária para a vida em sociedade.

Ou seja, quem não quer recalcar nada leva a vida de um animal, não de um ser civilizado. Calligaris só não atormenta a vida de centenas de milhões pois não tem essa expressão toda. Mas aquilo que ele representa, o “progressismo” pós-moderno, tem sim atormentado a vida de centenas de milhões, ao prometer o paraíso com a “libertação sexual”, enquanto os jovens vivem cada vez mais inseguros, tomando antidepressivos, sentindo-se culpados ou vazios.

Não é tão trivial assim driblar a culpa cristã. Ainda bem! É porque temos pulsão de vida também, não só de morte. Eros e Tânatos. Por isso os tabus, o pudor, a vergonha, o recalque. Porque a alternativa é “deixar a vida nos levar”, como bichos instintivos, somente em busca de prazeres carnais e nada mais. Uma completa miséria espiritual.

Na carta que escrevi para meu filho Antonio, que acaba de nascer, uma espécie de testamento ético, um guia moral para sobreviver nesse mundo pós-moderno, hedonista e relativista, falei justamente isso:
Não dê vazão a todos os seus apetites, filho. Você não é um bonobo, um cachorro, um animal irracional qualquer. Você é um ser humano civilizado, e isso significa conter emoções, saber controlá-las. Portanto, não é para achar bonitinho qualquer porcaria só porque é “espontânea” ou “genuína”. O cocô que você faz é espontâneo, é genuíno, mas certamente não é lindo, muito menos uma obra de arte. Saiba separar o joio do trigo, julgar o que é certo ou errado, lixo ou não. Evite vulgaridades mascaradas de “espontaneidade”.

Infelizmente, o que mais vemos por aí são “intelectuais” e psis estimulando o comportamento irresponsável e hedonista, o materialismo e a sexualização precoce, a ideia de que seguir os instintos em busca dos prazeres da carne é o grande segredo da felicidade.

Só não sabem explicar porque esses libertinos parecem os mais infelizes de todos, em relacionamentos sempre conturbados, dependendo de remédios, mergulhados em melancolia. Parece que essa “libertação” toda não passou de uma nova forma de escravidão…
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*  Economista pela PUC com MBA de Finanças pelo IBMEC, trabalhou por vários anos no mercado financeiro. É autor de vários livros, entre eles o best-seller “Esquerda Caviar” e a coletânea “Contra a maré vermelha”. Contribuiu para veículos como Veja.com, jornal O Globo e Gazeta do Povo. Preside o Conselho Deliberativo do Instituto Liberal.
Fonte:  http://www.gazetadopovo.com.br/rodrigo-constantino/artigos/mais-santo-agostinho-menos-contardo-calligaris-quem-busca-prazeres-carnais-tera-miseria-espiritual/?utm_medium=feed&utm_source=feedpress.me&utm_campaign=Feed%3A+rconstantino
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Grande estudo genético mostra como humanos estão evoluindo

 http://www2.uol.com.br/sciam/noticias/img/grande_estudo_genetico_mostra_como_humanos_estao_evoluindo_1__2017-09-13174437.jpg
 Análise do DNA de 215 mil pessoas sugere que variantes que encurtam a vida estão sendo excluídas 
pela seleção natural

Um enorme estudo genético que buscou identificar como o genoma humano está evoluindo sugere que a seleção natural está se livrando de mutações genéticas nocivas que encurtam a vida das pessoas. O trabalho, publicado na revista científica PLoS Biology, analisou o DNA de 215 mil pessoas, e é uma das primeiras tentativas de examinar diretamente como os humanos estão evoluindo ao longo de uma ou duas gerações.

Para identificar quais fragmentos do genoma humano poderiam estar evoluindo, os pesquisadores exploraram grandes bancos de dados genéticos dos Estados Unidos e do Reino Unido buscando por mutações cuja prevalência em grupos de diferentes faixas etárias tenha mudado. Para cada pessoa, a idade da morte dos pais foi registrada como medida de longevidade, ou, em alguns casos, a sua própria idade.

“Se uma variante genética influencia a sobrevivência, sua frequência deveria mudar com a idade dos indivíduos sobreviventes”, diz Hakhamanesh Mostafavi, biólogo evolutivo da Universidade Columbia, em Nova York, que liderou o estudo. Pessoas que carregam uma variante genética nociva morrem a uma taxa mais alta, então a variante se torna mais rara na porção mais velha da população.

Mostafavi e seus colegas testaram mais de oito milhões de mutações comuns e encontraram duas que pareciam se tornam menos prevalentes com a idade. Uma variante do gene APOE, que está fortemente relacionado com a doença de Alzheimer, raramente foi encontrada em mulheres com mais de 70 anos. Uma mutação no gene CHRNA3, associada a tabagismo pesado em homens, sumiu gradualmente a partir da população de meia idade. Pessoas que não têm essas mutações possuem uma vantagem para a sobrevivência e têm maior propensão a viver mais, sugerem os pesquisadores.

Isso não é, por si só, evidência da evolução trabalhando. Em termos evolutivos, ter uma vida longa não é tão importante quanto ter uma vida frutífera reprodutivamente, com muitos filhos que sobrevivem à idade adulta e geram sua própria prole. Então, mutações nocivas que exerçam seus efeitos após a idade reprodutiva poderiam ser “neutras” aos olhos da evolução, e não representariam uma desvantagem em termos de seleção.

Contudo, se fosse esse o caso, ainda haveria muitas dessas mutações no genoma, argumentam os autores. O fato de um extenso estudo ter encontrado apenas duas sugere fortemente que a evolução está “eliminando-as”, diz Mostafavi, e que outras provavelmente já foram removidas da população pela seleção natural.

Conexões com a longevidade

O porquê de tais mutações poderem diminuir a aptidão genética de uma pessoa - sua habilidade de reproduzir e espalhar seus genes - continua uma questão em aberto.

Os autores sugerem que, no caso dos homens, pode estar ligado ao fato de que aqueles que vivem por mais tempo podem ter mais filhos, mas é improvável que essa seja toda a história. Então, os cientistas estão considerando duas outras explicações sobre a importância da longevidade. Primeiro, pais que chegam a idades avançadas com boa saúde podem cuidar de seus filhos e netos, aumentando as chances das próximas gerações sobreviverem e reproduzirem. Isso é algo conhecido como a “hipótese da avó” e pode explicar por que humanos tendem a viver bastante após a menopausa.

Em segundo lugar, é possível que variantes genéticas que são explicitamente ruins na velhice também sejam nocivas - porém mais sutilmente - mais cedo na vida. “Você precisaria de amostra extremamente grandes para ver esses pequenos efeitos”, diz Iain Mathieson, geneticista populacional da Universidade da Pennsylvania na Filadélfia. Por isso, ainda não é possível dizer se é esse o caso.

Os pesquisadores também descobriram que certos grupos de mutações genéticas - que individualmente não teriam efeitos mensuráveis, mas juntos representariam ameaças para a saúde - apareceram com menor frequência em pessoas que tinham uma expectativa de vida longa do que em pessoas sem tal perspectiva. Isso incluía predisposição para asma, alto índice de massa corporal e colesterol alto. O mais surpreendente, no entanto, foi a descoberta de que conjuntos de mutações que atrasam a puberdade e a idade fértil são mais prevalentes em pessoas com vidas mais longas.

Ver uma conexão genética com o adiamento da idade fértil é intrigante, diz Jonathan Pritchard, geneticista da Universidade de Standford na Califórnia. A ligação entre longevidade e fertilidade tardia foi detectada antes, mas esses estudos não puderam descontar os efeitos da riqueza e da educação, porque as pessoas com altos níveis de ambos tendem a ter filhos mais tarde na vida. A última evidência genética faz Pritchard pensar que existe uma troca evolutiva entre fertilidade e longevidade, que anteriormente foi estudada apenas em animais. "Encontrar isso em seres humanos é realmente muito legal", ele diz. "Eu acho que é um estudo muito bom."

Estudar a evolução “em ação” junto aos seres humanos é notoriamente difícil. Cientistas que desejam observar a seleção diretamente teriam que medir a frequência de uma mutação em uma geração, depois também em todos os filhos dessa geração e, melhor ainda, nos netos, diz Gil McVean, geneticista estatístico da Universidade de Oxford, no Reino Unido. “Seria muito difícil fazer isso bem”, diz ele. “Precisaríamos de inúmeras amostras.”
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Bruno Martin, Nature
Este artigo é reproduzido com permissão é foi originalmente publicado em 6 de setembro de 2017.
Fonte:  http://www2.uol.com.br/sciam/noticias/grande_estudo_genetico_mostra_como_humanos_estao_evoluindo.html
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quinta-feira, 28 de setembro de 2017

Jacob Weisberg: “Trump é o pior ser humano que já ocupou a Casa Branca”


O escritor Jacob Weisberg (Foto: Newscom)

 

Para o comentarista político do programa de áudio Trumpcast, o presidente americano é tão incompetente que talvez não consiga materializar suas ideias ruins

MARCELO MOURA
28/09/2017 
 
No dia 19, o presidente Donald Trump estreou na tribuna da Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU). Era um evento cercado de simbolismo. A criação da ONU foi uma vitória da diplomacia dos Estados Unidos, após a Segunda Guerra Mundial. Mas em 42 minutos de discurso, Trump massacrou a tradição americana. Na casa da paz, ameaçou “destruir totalmente a Coreia do Norte”. “Trump está encolhendo a liderança que seu país tem no mundo”, afirma o jornalista Jacob Weisberg, diretor da revista on-line Slate e criador do Trumpcast, programa de comentários sobre o presidente. Autor de livros sobre os presidentes Ronald Reagan e George W. Bush, Weisberg diz que, passados nove meses, o governo Trump só traz um motivo para otimismo: “Trump é tão incompetente que pode nem conseguir causar dano”. O jornalista estará no Festival Piauí GloboNews de Jornalismo, em São Paulo, nos dias 7 e 8 de outubro.

ÉPOCA – Donald Trump ameaçou “destruir totalmente a Coreia do Norte”. Quais são as intenções dele?
Jacob Weisberg –
Trump está tentando ser agressivo, ver quem é mais machão. É como ele se porta diante de cada questão: como um desafio pessoal. Do ponto de vista diplomático, é uma estratégia perigosa e contraproducente.

ÉPOCA – Kim Jong-un disse que Trump “vai pagar caro”. O que o líder norte-coreano quer dizer com isso?
Weisberg –
Kim Jong-un entrou nessa retórica ridícula e hiperbólica desde que assumiu o poder. Antes, seu pai  fazia o mesmo. Mas líderes mundiais responsáveis procuravam não provocá-lo. Tentavam contemporizar. Trump, ao contrário, está dando eco. Começa a parecer uma briga entre rivais do mesmo nível, em vez de uma briga entre o mundo livre e uma ditadura perigosa e isolada.

ÉPOCA – Ao se rebaixar, Trump rebaixa os Estados Unidos?
Weisberg –
A briga não rebaixa necessariamente os Estados Unidos. O país perde autoridade e credibilidade quando o presidente se comporta desse jeito imaturo. Mas não acredito que as pessoas ao redor do mundo enxerguem Trump como representante da opinião dos americanos. Muita gente ainda confia nos Estados Unidos para evitar o perigo de a Coreia do Norte partir para um confronto militar.

ÉPOCA – Quanto estamos longe de uma guerra?
Weisberg –
O tamanho do problema é discutível. Apesar da retórica inflamada, Kim Jong-un está se comportando racionalmente. Apesar de a Coreia do Norte desenvolver armas nucleares, não acho que estejamos à beira de uma guerra atômica. A possibilidade mais alarmante é usarem armas convencionais contra a Coreia do Sul. Isso poderia trazer tremenda destruição a uma população enorme.

ÉPOCA – O tom duro de Trump se deve apenas a seu temperamento ou expressa também a falta de alternativas diante de um país que, agora, está perto de desenvolver um arsenal nuclear de alcance mundial?
Weisberg –
Sejamos honestos, a escolha de Trump é ruim, mas não existem alternativas boas a respeito da Coreia do Norte. Bill Clinton, George W. Bush e Barack Obama não  conseguiram deter diplomaticamente os norte-coreanos. O problema na mesa de Trump é fruto do fracasso de seus antecessores. Mas, ao fazer ameaças, ele aumenta o risco.

ÉPOCA – Se a Coreia do Norte mantém 85% de seu comércio exterior com apenas um país, a China, como Trump pode exercer pressão diplomática?
Weisberg –
A única forma de pressionar Kim Jong-un é por meio da China. Mas, para os chineses, a Coreia do Norte é apenas um entre tantos problemas. O único caminho diplomático possível aos Estados Unidos é pedir a Pequim maior prioridade à questão norte-coreana. Trump se irrita ao achar que os chineses não estão se empenhando tanto quanto poderiam.

ÉPOCA – Na campanha, Trump parecia bem mais preocupado com os assuntos internos do que externos. Isso mudou. A mudança é uma estratégia para disfarçar fracassos domésticos, como a tentativa de mudar o sistema de saúde? O governo Trump está perdendo o foco, se é que já teve algum?
Weisberg –
Não, ele nunca teve foco. É um oportunista. O foco de Trump é aquilo que ele viu pela manhã no canal Fox News. Sua única agenda concreta é aquela que ele apresentou durante a campanha: construir um muro e cancelar acordos de comércio exterior. Ambas são impraticáveis, contraproducentes, más ideias. A ignorância de Trump não tem fim, mas, no caso específico de política externa, é absoluta.

Trump nunca teve foco. Seu foco é o que ele assistiu 
de manhã no canal Fox News"
Jacob Weisberg
 
ÉPOCA – Quanto a ignorância de Trump custa aos Estados Unidos?
Weisberg –
Está custando à América o respeito que ela conquistou no mundo. Está custando a autoridade de liderar, está custando interesses econômicos e estratégicos. Sua posição no mundo está encolhendo vastamente pela Presidência de Trump. A única coisa positiva a dizer sobre esse assunto é que a imagem dos Estados Unidos também encolheu severamente durante o governo de George W. Bush, apesar de não ter sido algo tão rápido ou drástico. Quando Obama foi eleito e Bush foi embora, o país conseguiu recuperar grande parte de sua liderança, muito rapidamente. Meu pensamento otimista é este: o dano é severo, mas pode não ser permanente.

ÉPOCA – Quanto a ignorância de Trump custa ao mundo?
Weisberg –
Acho que os Estados Unidos ainda representam a referência mundial de nação. A falta da liderança americana traz alguns problemas. Certas ações se tornam muito difíceis, quando não impossíveis. Um bom exemplo é o combate ao aquecimento global. O resto do mundo pode buscar os objetivos do Acordo de Paris sem os americanos, mas a um custo muito maior. Desde direitos humanos até comércio internacional, há uma série de questões que preocupam o planeta, mas nem sequer interessam a Trump. Como resultado, a América não consegue exercer sua liderança e o mundo se torna um lugar pior.

ÉPOCA – Um presidente ignorante não precisa, necessariamente, fazer um governo ignorante. Por que os assessores de Trump não conseguem elevar o nível? Ter como conselheiros a filha e o cunhado certamente não ajuda, mas onde estão os outros?
Weisberg –
Essa tremenda incompetência e essa tremenda corrupção estão muito mais num nível que a gente esperaria ver num país emergente, ou antidemocrático, do que nos Estados Unidos.

ÉPOCA – Durante a campanha eleitoral, o senhor afirmou que a mera candidatura de Trump já representava uma ameaça à democracia. Como sua opinião mudou?
Weisberg –
Passados nove meses de governo Trump, os Estados Unidos ainda são uma democracia. Já é uma boa notícia. Mas em muitos fundamentos de nossa democracia, como transparência, separação entre interesses públicos e privados, liberdade de imprensa... Até mesmo no linguajar, Trump está muito distante da tradição americana. O perigo continua bastante real, uma vez que Trump ainda tem um apoio razoável e não foi afastado. É muito perturbador. Não podemos ser complacentes com a ameaça e os riscos à democracia. Ao mesmo tempo, vemos como muitas instituições e tradições são resilientes. Há uma robusta resistência a Trump, tanto dentro quanto fora do governo. Tenho a esperança de que a democracia americana vai sobreviver. Mas não acho que podemos dar isso como certo.

ÉPOCA – Muitos outros presidentes americanos custaram a engrenar no cargo. Trump é diferente?
Weisberg –
Sim. Ele é muito diferente. É diferente no sentido de não ter a menor ideia do que é ser presidente. A ele faltam as mais básicas atitudes, habilidades e experiência para o cargo. Vários outros presidentes tinham falta de experiência, mas procuraram melhorar com o apoio de gente mais experiente. Trump não fez isso. Sua concepção de governo é integralmente concentrada nele, na visão dele. Não vejo a menor chance de ele evoluir com o tempo.

ÉPOCA – Trump é o pior presidente da história dos Estados Unidos?
Weisberg –
Sem dúvida. Pensando bem, talvez seja prematuro dizer isso, pois ainda não podemos dimensionar os danos que ele causará aos Estados Unidos. Trump é tão incompetente que pode nem conseguir causar dano. Até agora, não aprovou nenhum projeto relevante no Congresso e entrou em guerra contra seu próprio partido. Um presidente inócuo acabaria não parecendo o pior de todos... Mas, como pessoa, Trump é seguramente o pior ser humano que já ocupou a Casa Branca.
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 Fonte: http://epoca.globo.com/mundo/noticia/2017/09/jacob-weisberg-trump-e-o-pior-ser-humano-que-ja-ocupou-casa-branca.html
Postado por Zelmar Guiotto às 11:19 Nenhum comentário:

Decepcionando leitores

Juremir Machado da Silva*
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Eu me reconheço numa frase de Edgar Morin: “Eu não pertenço a vocês”. Não sou de ninguém. Não sou confiável. Todos se enganam comigo. Não tenho partido, não tenho sindicato, não tenho candidato. Nunca votei no PT. Jamais votei no PP. Sempre duvidei da modernidade do PSDB. Nunca confiei no PMDB. Voto em pessoas. Nenhuma legenda me explica. Daí tantas ilusões em relação a mim. Às vezes, sou de esquerda. Outras, de direita. Jamais de centro. O centro é o extremo que se finge de moderado. Não votarei em Bolsonaro. Nem em Lula. Muito menos em Dória, Alckmin ou qualquer um dessa escória. Para mim, PT, PMDB, PP, DEM e PSDB deveriam desaparecer dando lugar a siglas limpas.

Meu papel é decepcionar todo mundo.

Não acredito que a condição sexual de cada uma seja cultural. Nasce-se heterossexual, homossexual ou bissexual. Os papéis atribuídos a cada condição é que não são naturais. Papai deve sair para trabalhar? Mamãe deve cuidar da casa? Essa distribuição de tarefas não está nos genes, mas na história. Eu sou uma decepção ambulante. Acho os governos de Michel Temer, José Ivo Sartori e Nelson Marchezan Júnior medíocres. Mas não contesto tudo o que eles propõem. Não vejo razão para uma gratificação de chefia depois de dez anos incorporar aos ganhos do funcionário mesmo que ele já não seja chefe. Sou tudo e nada: comunista e neoliberal, socialdemocrata e trabalhista, anacrônico e futurista. Anarquista.

Temo as corporações de toda ordem, sindicais e empresariais quando elas se fecham em seus “ideais”. Acredito em delatores. Acho que todos, inclusive Lula, têm culpa no cartório. Mas só aceito condenação com provas. Gosto da Lava Jato embora seja evidente a sua seletividade. Sou pela liberação das drogas – adultos têm direito de consumir o que quiserem e o combate fracassou – e a favor de campanhas poderosas contra o consumo de tudo o que causa dependência nociva. Sou a favor da polarização.

Ela tira a sujeira escondida sob o tapete.

O discurso da unidade sempre tem lado, normalmente o da direita afiada.

Gosto de botar os pingos nos is: somos um país racista, homofóbico, desigual, injusto, preconceituoso e elitista. O nosso maior problema não é a corrupção, mas a dívida jamais paga com a escravidão, que permeia nosso imaginário e nossa relação social. Os farroupilhas traíram os negros. A república foi um golpe de Estado. Dilma levou uma rasteira de uma quadrilha. Temer ficará no poder por ter o apoio da mídia e do mercado conservadores. As privatizações de Sartori são ideológicas. Marchezan quer ferrar funcionários acabando com o plano de carreira que lhes garante um mínimo de dignidade. Brigar para manter nome de ditador numa rua é pisotear a história.

Nunca estou onde me esperam. Sou infiel. O obscurantismo avança cancelando exposições, ameaçando peças de teatro, legitimando declarações de general golpista, autorizando tratar o que não é doença. A saída não está no regime militar nem no marxismo secular. Cavaleiro solitário, franco-atirador, estou em todos os lugares e em lugar algum. Eis a minha declaração inegociável de independência. Não sou lobo da direita nem águia da esquerda. Quintanamente passarinho.
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 *Jornalista. Sociólogo. Graduou-se em História (bacharelado e licenciatura) e em Jornalismo pela PUCRS, onde também fez Especialização em Estilos Jornalísticos. Passou pela Faculdade de Direito da UFRGS, onde também chegou a cursar os créditos do mestrado em Antropologia. Obteve o Diploma de Estudos Aprofundados e o Doutorado em Sociologia na Universidade Paris V, Sorbonne, onde também fez pós-doutorado. 
Fonte: http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/2017/09/10255/decepcionando-leitores/ 27/09/2017
Imagem da Internet
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quarta-feira, 27 de setembro de 2017

Boaventura reexamina as formas de luta

Boaventura de Sousa Santos*
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O que diferencia revolução, luta institucional, rebedia e desobediência civil? Por que, nas últimas décadas, a ciência política esqueceu este debate? Vale a pena retomá-lo?



Há temas que, apesar de serem uma presença constante na vida da grande maioria das pessoas, ora aparecem ora desaparecem do radar daqueles a quem compete refletir sobre eles – seja no plano científico, cultural ou filosófico. Alguns dos temas hoje desaparecidos são, por exemplo, a luta social (mais ainda, a luta de classes), a resistência, a desobediência civil, a rebeldia, a revolução e, subjacente a todas eles, a violência revolucionária. Ao longo dos últimos cento e cinquenta anos estes temas tiveram um papel central na filosofia e na sociologia políticas porque sem eles era virtualmente impossível falar de transformação social e de justiça. Hoje em dia, a violência está onipresente nos noticiários e nas colunas de opinião, mas raramente é referida aos temas anteriores. A violência de que se fala é a violência despolitizada, ou como tal concebida: a violência doméstica, a criminalidade, o crime organizado. Por outro lado, é sempre de violência física que se fala, raramente de violência psicológica, cultural ou simbólica e, nunca, de violência estrutural. Os únicos contextos em que a violência é, por vezes, referida como política é a violência nos países “menos desenvolvidos” ou “Estados falidos” e a violência terrorista, considerada (e bem) como um modo inaceitável de luta política.

Em termos de debate filosófico e político, o nosso tempo é um tempo simultaneamente infantil e senil. Engatinha por entre ideias que o atraem pela novidade e lhe conferem o orgulho de ser protagonista de algo inaugural (autonomia, competição, empoderamento, criatividade, redes sociais). E, por outro lado, deixa-se perturbar por uma ausência, uma falta que não consegue nomear exatamente (solidariedade, coesão social, justiça, cooperação, dignidade, reconhecimento da diferença), uma falta obsoleta mas suficientemente impertinente para o fazer tropeçar na sua própria ruína. Como a luta, a resistência, a rebeldia, a desobediência, a revolução continuam a constituir a experiência quotidiana da grande maioria da população mundial – que, aliás, paga um preço muito alto por isso –, a disjunção entre o modo como se vive e o que é dito publicamente sobre ele faz com que o nosso tempo seja um tempo dividido entre dois grupos muito assimétricos: os que não podem esquecer e os que não querem recordar. Os primeiros só na aparência são senis e os segundos só na aparência são infantis. São todos contemporâneos uns dos outros, mas reportam-se a contemporaneidades diferentes.

Revisitemos, pois, os conceitos senilizados. A luta é toda a disputa ou conflito sobre um recurso escasso que confere poder a quem o detém. As lutas sociais sempre existiram e sempre tiveram objetivos e protagonistas muito diversificados. No final do século XIX, Marx conferiu um papel especial a um certo tipo de luta: a luta de classes. A sua especificidade residia na sua radicalidade (a parte perdedora perderia tudo), na sua natureza (entre grupos sociais organizados em função da sua posição face à exploração do trabalho assalariado) e nos seus objetivos incompatíveis (capitalismo ou socialismo).

As lutas sociais nunca se reduziram à luta de classes. A meio do século passado, surgiu o termo “novos movimentos sociais” para dar conta de atores políticos organizados em outras lutas, segundo outros critérios de agregação que não a classe e para objetivos muito diversificados. Esta ampliação não só alargava o conceito de luta social como dava mais complexidade à ideia de resistência, um conceito que passou a designar todos os grupos inconformados com o estatuto de vítima. É resistente todo aquele que se recusa a ser vítima. 

Esta ampliação recuperava alguns debates do final do século XIX entre anarquistas e marxistas, sobretudo o debate sobre a revolução e a rebeldia. A revolução implicava a substituição de uma ordem política por outra, enquanto a rebeldia significava a rejeição de uma dada (ou qualquer) ordem política. A rebeldia distinguia-se da desobediência civil, porque esta, ao contrário da primeira, questionava uma determinação específica (por exemplo, serviço militar obrigatório) mas não a ordem política no seu conjunto. 

O conceito de revolução foi-se alimentando com a revolução russa, a revolução chinesa, a revolução cubana, a revolução argelina, a revolução egípcia, a revolução vietnamita ou a revolução portuguesa de 25 de Abril de 1974 (ainda que muitos, eu incluído, duvidássemos do seu carácter revolucionário). A queda do Muro de Berlim veio retirar atualidade ao conceito de revolução, ainda que ele ressuscitasse alguns anos depois na América Latina com a revolução bolivariana (Venezuela), a revolução comunitária (Bolívia) e a revolução cidadã (Equador), mesmo que também nestes casos fossem muitas as dúvidas sobre o caráter revolucionário destes processos. Com o levantamento neozapatista de 1994, o Fórum Social Mundial de 2001 e anos seguintes e os movimentos indígenas e afrodescendentes, os conceitos de rebeldia e de dignidade voltaram a dominar. Até hoje.

Subjacente às vicissitudes destes diferentes modos de nomear as lutas sociais contra o status quo estiveram sempre duas questões: a dialética entre institucionalidade e extra-institucionalidade; e a dialética entre luta violenta ou armada e luta pacífica. As duas questões são autônomas, ainda que relacionadas: a luta institucional pode ou não ser violenta e a luta armada, se duradoura, cria a sua própria institucionalidade. Ambas as questões começaram a ser discutidas ao longo do século XIX e explodiram em momentos diferentes no final do século XIX e início do século XX. Por que as refiro aqui? Porque, apesar de nos últimos trinta anos terem sido consideradas obsoletas ou residuais, ganharam ultimamente uma nova vida.

Institucional versus extra-institucional:

Esta questão agudizou-se com as divisões no seio do partido social-democrata alemão nas vésperas da Primeira Guerra Mundial. Lutar dentro das instituições? Ou pressioná-las e mesmo transformá-las a partir de fora por vias consideradas ilegais? A questão teve o seu curso durante cinquenta anos e pareceu ter-se esgotado com o fim da revolta estudantil de Maio de 1968. Obviamente que em diferentes partes do mundo continuou a haver insurreições, guerrilhas, protestos, greves ilegais, lutas de libertação; mas de algum modo foi-se consolidando a ideia de que representavam o passado e não futuro, uma vez que a democracia liberal, agora apadrinhada pelo neoliberalismo global, FMI, Banco Mundial, ONU, acabaria por se impor como o único modo legítimo de dirimir conflitos políticos. Tudo mudou em 2011 com a onda de movimentos de protesto em diferentes países: as diferentes primaveras de revolta, o movimento Occupy Wall Street, os movimentos dos indignados, etc. Por que esta mudança? Suspeito que a crise da democracia liberal tem se aprofundado de tal modo que movimentos e protestos fora das instituições podem passar a ser parte da nova normalidade política. 

Luta armada versus luta pacífica:

A questão da violência é o tema que o pensamento político dominante (tão viciado no estudo dos sistemas eleitorais) evitou a todo o custo ao longo do século passado. No entanto, os protagonistas das lutas no terreno debateram-se continuamente com ele. Obviamente, nem toda a violência é revolucionária. Ao longo do século, quem mais recorreu a ela foram os contra-revolucionários, os nazis, os fascistas, os colonialistas, os fundamentalistas de todas as confissões e os próprios estalinistas após a perversão da revolução que empreenderam. Mas no campo revolucionário as divisões foram acesas: entre os marxistas e maoístas indianos e Gandhi; entre Martin Luther King Jr. e Malcom X; entre diferentes movimentos de libertação do colonialismo europeu e Frantz Fanon; entre movimentos independentistas na Europa (País Basco, Irlanda do Norte) e movimentos revolucionários da América Latina. 

Também aqui – e pese embora a continuidade da luta armada no delta do Niger e nas zonas rurais da Índia dominadas pelos naxalitas (maoístas) – a ideia da violência revolucionária e da luta armada tem perdido legitimidade, de que é eloquente demonstração as negociações de paz em curso na Colômbia. Mas há dois elementos perturbadores de que quero dar conta. Em muitos países onde a violência política terminou com negociações de paz, a violência voltou (muitas vezes contra líderes políticos e de movimentos sociais) sob a forma de violência despolitizada ou criminalidade comum. El Salvador e Honduras são casos paradigmáticos e a Colômbia pode vir a sê-lo. Por outro lado, a luta armada foi deslegitimada porque falhara muitas vezes nos seus objetivos e porque se acreditou que estes seriam mais eficazmente atingidos por via pacífica e democrática. E se a crise da democracia se aprofundar?
Um dos revolucionários que mais admiro e que pagou com a vida a sua dedicação à revolução socialista, o Padre Camilo Torres, da Colômbia, doutorado em sociologia pela Universidade de Lovaina, respondeu assim em 1965 à pergunta de um jornalista sobre a legitimidade da luta armada: “Os fins não justificam os meios. No entanto, na ação concreta, muitos meios começam a ser impraticáveis. De acordo com a moral tradicional da Igreja, a luta armada é permitida nas seguintes condições: 1) terem-se esgotado os meios pacíficos; 2) existir uma probabilidade bastante alta de ter êxito; 3) que os males resultantes dessa luta não sejam piores que a situação que se quer remediar; 4) que haja um grupo de pessoas com critérios ilustrados e corretos sobre o cumprimento das condições anteriores”. 

A um pacifista como eu, que sempre lutou pela radicalização da democracia como via não violenta para construir uma sociedade mais justa, causa arrepios pensar se em muitos países os padrões de convivência pacífica e democrática não estarão a degradar-se a tal ponto que as quatro condições do Padre Camilo Torres possam ter resposta positiva. 
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 * Boaventura de Sousa Santos é doutor em sociologia do direito pela Universidade de Yale, professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, diretor dos Centro de Estudos Sociais e do Centro de Documentação 25 de Abril, e Coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa - todos da Universidade de Coimbra. Sua trajetória recente é marcada pela proximidade com os movimentos organizadores e participantes do Fórum Social Mundial e pela participação na coordenação de uma obra coletiva de pesquisa denominada Reinventar a Emancipação Social: Para Novos Manifestos.
Fonte:  http://outraspalavras.net/capa/boaventura-reexamina-as-formas-de-luta/ 27/09/2017
 
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A mãe de todas as perguntas


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Nossa cultura, impregnada de psicologia pop, pergunta obsessivamente: Você é feliz? Mas é como se existisse um único enredo bom, um só script satisfatório.
Filhos e clichês da identidade feminina
Rebecca Solnit
Há alguns anos, dei uma palestra sobre Virginia Woolf. No mo­mento das perguntas, o assunto que pareceu despertar mais interesse entre o público era se Woolf não deve­ria ter tido filhos. Atenciosa, respondi que ela, ao que consta, pensou em ter filhos no começo do casamento, de­pois de ver a alegria da irmã, Vanessa Bell, com os seus. Mas, com o tempo, ela passou a considerar a maternidade uma ideia imprudente, talvez devido a sua instabilidade psíquica. Ou talvez, sugeri, Woolf quisesse ser escritora e dedicar sua vida à arte, o que fez com extraordinário sucesso. Durante a apre­sentação, eu havia citado de maneira positiva passagens sobre a necessidade de matar “o Anjo do Lar”, a voz inte­rior que instrui muitas mulheres a se sacrificar como servas da vida domés­tica e do ego masculino. Fiquei sur­presa que o conselho de asfixiar o espírito da feminilidade convencional suscitasse essa conversa.

O que eu devia ter dito àquela pla­teia era que especular sobre o status reprodutor de Woolf constituía um desvio absurdo e enfadonho das mag­níficas questões presentes em sua obra. (Creio que a certa altura falei “Foda-se essa merda”, passando o sentido geral da coisa e encerrando o assunto.) Afi­nal, filhos muita gente faz, mas Ao Farol e As Ondas só uma pessoa fez, e era por causa disso que estávamos de­batendo Woolf.

Perguntas daquele tipo me eram bem familiares. Dez anos antes, duran­te uma conversa que deveria girar em torno de um livro meu sobre política, um entrevistador britânico insistiu que, em vez de falar sobre os frutos da mi­nha mente, deveríamos falar sobre os frutos do meu ventre – ou a falta deles. Ele me perguntava obstinadamente por que eu não tinha filhos. E não se dava por satisfeito com nada que eu dissesse. Parecia defender que eu deve­ria ter filhos, que era incompreensível que eu não tivesse, e assim tínhamos que ficar falando sobre os filhos que eu não fiz, em vez de falar sobre os livros que eu havia feito.

Quando saí dali, minha assessora de imprensa escocesa – uma moça miú­da, de 20 e poucos anos, com sapati­lhas cor-de-rosa e um belo anel de noivado – estava espumando de raiva. E esbravejou: “Ele nunca perguntaria isso a um homem.” Tinha razão. (Hoje em dia, uso esse argumento para re­bater alguns entrevistadores: “Você perguntaria isso a um homem?”) Per­guntas como essa parecem nascer da ideia de que não existem mulheres – esses 49% da espécie humana com necessidades tão variadas e desejos tão misteriosos quanto os outros 51% –, mas apenas a mulher, aquela que deve casar, ter filhos, permitir que os homens entrem e os bebês saiam, como um elevador da humanidade. Essas questões, na essência, não são pergun­tas e sim declarações que afirmam que nós, com a veleidade de nos ima­ginarmos como indivíduos, definindo nosso próprio curso, estamos erradas. O cérebro é um fenômeno individual que gera as mais variadas criações; o útero gera apenas um tipo de criação.

Quanto a mim, não tenho filhos por diversas razões: lido muito bem com os anticoncepcionais; a despeito de gostar de crianças e adorar ser tia, também aprecio a solidão; fui criada por gente bruta e infeliz e não quis re­produzir essa forma de criação nem criar seres humanos que pudessem sentir por mim aquilo que às vezes eu sentia por meus pais; o planeta não tem condições de sustentar mais gente do Primeiro Mundo, e o futuro é mui­to incerto; e eu realmente queria es­crever livros, vocação que, tal como a exerço, exige muito. Não sou dogmáti­ca contra ter filhos. Poderia ter tido em outras circunstâncias e estaria bem – como estou agora.

Há pessoas que, embora queiram ter filhos, não os têm por várias razões – pessoais, médicas, emocionais, fi­nanceiras, profissionais; outras não querem, e ninguém tem nada a ver com isso. Só porque é uma pergunta passível de resposta não significa que a pessoa tenha obrigação de respondê­la ou que ela deva ser feita. A pergunta que o entrevistador me fez foi inde­cente, pois pressupunha que as mu­lheres deveriam ter filhos e que as atividades reprodutoras de uma mu­lher eram um assunto naturalmente público. Sobretudo, a pergunta pres­supunha que, para as mulheres, só existia uma maneira certa de viver.

Mas mesmo dizer que só existe uma maneira certa de viver pode ser uma for­mulação demasiado otimista, visto que as mães também são sistematicamente consideradas relapsas. A mãe pode ser tratada como criminosa se deixar o fi­lho sozinho por cinco minutos, mes­mo que o pai da criança a tenha deixado sozinha por vários anos. Al­gumas mulheres me disseram que, depois de terem tido filhos, passaram a ser tratadas como seres apáticos desprovidos de inteligência, que não merecem consideração. Muitas ti­veram de ouvir que não podem ser levadas a sério como profissionais porque em algum momento vão en­gravidar. E muitas mães que de fato se saem bem no exercício da profissão são suspeitas de estar negligenciando alguém. Não existe uma resposta sa­tisfatória para a pergunta “Como é ser mulher”; o truque talvez esteja em sa­ber repelir o questionamento.

Falamos sobre questões abertas, mas também há as fechadas, aquelas para as quais só há uma resposta certa, pelo menos no que concerne a quem pergunta. São indagações que nos forçam a concordar com elas ou que nos ferem quando delas divergi­mos; que trazem suas próprias respos­tas e cujo objetivo é coagir e punir. Uma das minhas metas na vida é me tornar bem rabínica, conseguir res­ponder perguntas fechadas com per­guntas abertas, ter autoridade interna para frear a aproximação de intrusos e pelo menos me lembrar de questionar: “Por que você está perguntando isso?” Descobri que essa é sempre uma boa resposta para uma questão antipática, e as perguntas fechadas costumam ser antipáticas. Mas, no dia do meu inter­rogatório sobre filhos, fui tomada de surpresa (e estava com um sério jet lag) e só fiquei pensando: Por que é tão previsível que façam essas pergun­tas tão infames?

Talvez parte do problema seja ter­mos aprendido a questionar as coisas erradas sobre nós mesmos. Nossa cul­tura está impregnada de uma espécie de psicologia pop que pergunta obses­sivamente: Você é feliz? E pergunta­mos isso num reflexo tão condicionado que parece a coisa mais natural do mundo querer que um farmacêutico numa máquina do tempo vá entregar um lote de tranquilizantes e antipsicó­ticos em Bloomsbury, o bastante para a vida toda, pois assim seria possível reo­rientar uma incomparável estilista lite­rária feminista para a produção de uma ninhada de bebês Woolf.

As perguntas sobre a felicidade ge­ralmente pressupõem que sabemos como deve ser uma vida feliz. Muitas vezes se descreve a felicidade como o resultado de uma longa fieira de coi­sas – casamento, prole, bens próprios, experiências eróticas –, embora baste um milionésimo de segundo para nos lembrarmos de um monte de gente que tem tudo isso e mesmo as­sim é infeliz.

Recebemos fórmulas padronizadas a torto e a direito, mas essas fórmulas cos­tumam falhar. Apesar disso, elas não param de chegar. E chegam, e chegam. Convertem-se em prisões e castigos; a prisão imaginária acorrenta muita gen­te na prisão de uma vida que segue as receitas à risca, e mesmo assim é tre­mendamente infeliz.

Talvez o problema seja literário: re­cebemos um roteiro único sobre o que é ter uma boa vida, ainda que não sejam poucos aqueles que sigam o script fielmente e mesmo assim têm uma vida ruim. Falamos como se existisse um único enredo bom e um único fi­nal feliz, embora as inúmeras formas que uma vida pode assumir floresçam – e murchem – ao nosso redor.

Mesmo os que vivem a melhor ver­são do roteiro familiar nem sempre têm a felicidade como recompensa. Não é algo necessariamente ruim. Co­nheço uma mulher que viveu um ca­samento de muito amor por setenta anos. Sua vida é cheia de sentido, e ela vive de acordo com seus princípios; é amada e respeitada pelos seus descen­dentes. Mas eu não diria que ela é fe­liz; sua compaixão pelos vulneráveis e a preocupação com o futuro lhe dão uma visão sombria do mundo. Para descrever o que ela experimenta, em vez de felicidade, precisamos de uma linguagem melhor. Existem critérios totalmente diferentes para uma boa vida, que podem ser mais importantes para alguns – amar e ser amado, ter satisfação, honra, sentido, profundida­de, engajamento, esperança.

Parte de meu empenho como es­critora tem sido encontrar formas de valorizar o que é impalpável e subestimado, em descrever sombras e ma­tizes de significado, em celebrar a vida pública e a vida solitária, em encontrar – na expressão de John Berger – “outra maneira de contar”, o que também explica por que é tão desalentador esse repisar constante das mesmas velhas maneiras de contar.

A conservadora “defesa do casa­mento”, que na verdade não passa de uma defesa do velho esquema hierár­quico que era o casamento convencio­nal antes que as feministas começassem a transformá-lo, infelizmente não é monopólio dos conservadores. Muita gente em nossa sociedade se aferra à piedosa crença de que, para os filhos, a família heteronormativa apresenta uma aura mágica maravilhosa, o que leva muitos casais a se manter em ca­samentos infelizes, destrutivos para todos os que estão por perto. Conhe­ço gente que hesitou por muito tem­po antes de sair de um casamento pavoroso, porque a velha fórmula in­siste que uma situação que é terrível para um ou para os dois genitores será, de alguma maneira, benéfica para os filhos. Mesmo mulheres com maridos violentamente abusivos são, com frequência, pressionadas a con­tinuar em situações tidas como tão maravilhosas que tais detalhes nem vêm ao caso. A forma prevalece sobre o conteúdo. No entanto, tenho visto a alegria do divórcio e as inúmeras formas que podem ser assumidas por fa­mílias felizes, cada vez mais variadas, desde um genitor só e um filho só até incontáveis configurações de múlti­plos lares e famílias ampliadas.

Depois que escrevi um livro sobre mim e minha mãe, que se casou com um profissional liberal muito bruto, teve quatro filhos e vivia nervosa de raiva e infelicidade, uma entrevistado­ra me emboscou ao perguntar se era por causa do meu pai violento que eu não conseguira encontrar um compa­nheiro. A pergunta vinha carregada de pressupostos espantosos sobre o que eu queria fazer com minha vida e o direito da entrevistadora de nela se in­trometer. O livro The Faraway Nearby [O Próximo Distante] discorria de ma­neira serena e indireta, eu pensava, sobre minha longa jornada rumo a uma vida de fato agradável, e era uma tentativa de dar conta da fúria da mi­nha mãe, inclusive falando de sua ori­gem estar no fato de ela ter ficado presa a expectativas e papéis femini­nos convencionais.

Tenho feito da minha vida o que de­cidi fazer, e não era isso que minha mãe ou a entrevistadora imaginavam. Decidi escrever livros, estar cercada por gente inteligente e generosa e ter gran­des aventuras. Algumas dessas aventu­ras incluem homens – casos passageiros, grandes paixões e relações duradouras – e incluem também desertos distantes, mares árticos, cumes de montanhas, levantes e desastres, exploração de ideias, arquivos, registros e vidas.

As receitas da sociedade para a rea­lização pessoal parecem gerar grande infelicidade, tanto nas pessoas que são estigmatizadas por­que não podem ou não querem adotá­las como naquelas que as adotam, mas não encontram a felicidade. Cla­ro que existem pessoas com vidas bem convencionais que são muito felizes. Conheço algumas, assim como co­nheço muitos monges, padres e frei­ras no celibato e sem filhos, gays divorciados e todo o leque de entre­meio. No verão passado, minha amiga Emma entrou na igreja acompanhada do pai, e o marido dele foi logo atrás acompanhando a mãe de Emma; os quatro, mais o novo marido dela, formam uma família excepcional­mente amorosa e unida, que luta pela justiça em suas atividades po­líticas. Neste verão, nos dois casa­mentos a que fui havia dois noivos e nenhuma noiva; no primeiro deles, um dos noivos chorou porque passa­ra a maior parte da vida privado do direito de casar e nunca pensou que veria seu próprio casamento.

Apesar disso, as mesmas e velhas perguntas continuam rondando – ain­da que pareçam mais uma espécie de sis­tema coercitivo do que questões de fato. Na visão de mundo tradicional, a feli­cidade é algo essencialmente parti cular e egoísta. As pessoas sensatas buscam seu interesse particular e, quando se saem bem, supõe-se que sejam felizes. A própria definição do que significa ser humano é estreita, e o altruísmo, o idealismo e a vida pública (exceto como fama, prestígio ou sucesso material) não têm muito lugar na lista de dese­jos. Raramente surge a ideia de buscar significado na vida; as atividades corriqueiras não só são tidas como in­trinsecamente significativas, mas são tratadas como as únicas opções dota­das de significado.

Uma das razões pelas quais as pes­soas se prendem à maternidade como elemento essencial da identidade femi­nina é a crença de que são os filhos que permitem consumar a capacidade de amar. Mas há tantas coisas a amar além da prole, tantas coisas que precisam de amor, tantas outras tarefas no mundo que cabem ao amor…

São muitas as pessoas que questio­nam as escolhas dos que não têm fi­lhos, tidos como egoístas por recusar os sacrifícios que acompanham o papel de genitor; elas se esquecem de que, para quem ama intensamente os filhos, talvez sobre menos amor pelo resto do mundo. Christina Lupton, escritora que também é mãe, apresen­tou recentemente algumas coisas que teve de abandonar quando estava to­mada pelas exigentes tarefas da mater­nidade, entre elas:

Todas as maneiras de cuidar do mundo que não são tão facilmente va­lidadas quanto cuidar dos filhos, mas que são, da mesma forma, fundamen­talmente necessárias para que os filhos cresçam bem. Refiro-me aqui à escrita, à criação, à política e ao ativismo; à leitura, ao discurso público, aos protes­tos, ao ensino, à realização de filmes… As coisas que mais valorizo e das quais acredito que virá qualquer melhoria na condição humana são, em sua maio­ria, brutalmente incompatíveis com o trabalho concreto e imaginativo de cuidar dos filhos.

Uma das coisas fascinantes na sú­bita aparição de Edward Snowden, alguns anos atrás, foi a incapaci­dade de muita gente em entender como um rapaz podia abrir mão da receita da felicidade – salário alto, em­prego estável, casa no Havaí – para se tornar o foragido mais procurado do planeta. Ao que parece, a premissa dessas pessoas é que, como todos são egoístas, Snowden só poderia estar fa­zendo aquilo por ser interesseiro e que­rer atenção ou dinheiro.

Na primeira onda de comentários, Jeffrey Toobin, o especialista jurídico daNew Yorker, escreveu que Snowden era “um narcisista enfatuado que mere­ce ir para a cadeia”. Outro especialista anunciou: “Eu acho que o que temos em Edward Snowden é apenas um jo­vem narcisista que pensa que é mais inteligente do que todos nós.” Outros imaginaram que ele estava revelando os segredos do governo americano a soldo de um país inimigo.

Snowden parecia um sujeito de ou­tro século. Em seus contatos iniciais com o jornalista Glenn Greenwald, ele se nomeava Cincinnatus – o estadista romano que agia em prol da sociedade, sem procurar se promover. Era sinal de que Snowden formara seus ideais e modelos longe das fórmulas padroni­zadas de felicidade. Outras épocas e outras culturas costumavam fazerper­guntasdiferentes das que fazemos ago­ra: O que de mais significativo você pode fazer com sua vida? Qual é sua contribuição para o mundo ou para sua comunidade? Você vive de acordo com os seus princípios? Qual será seu legado? O que significa sua vida? Tal­vez nossa obsessão com a felicidade seja uma maneira de não responder a essas outras perguntas, uma maneira de ignorar a amplitude que as nossas vidas podem ter, o resultado que o nosso trabalho pode trazer, a abrangência que o nosso amor pode alcançar.
 Resultado de imagem para A Mãe de Todas as Perguntas,
Há um paradoxo no cerne da ques­tão da felicidade. Há alguns anos, Todd Kashdan, professor de psicologia na Universidade George Mason, di­vulgou estudos concluindo que as pes­soas que julgam importante ser feliz são as que têm maior probabilidade de se deprimir: “Organizar a vida tentan­do ser mais feliz, fazer da felicidade o objetivo primeiro da vida atrapalha a pessoa ser de fato feliz.”
Finalmente tive meu momento rabí­nico na Inglaterra. Depois de superar o jet lag, fui entrevistada ao vivo por uma mulher com uma entonação compassi­va e elegante. “Então”, ela disse, num trinado, “você foi ferida pela humani­dade e se refugiou nas paisagens da natureza.” A conotação era óbvia: eu, um excepcional e deplorável exemplar, estava ali em exposição, uma estranha no ninho. Virei para o público e per­guntei: “Algum de vocês já foi ferido pela humanidade?” Riram comigo; na­quele momento, percebemos que todos tínhamos nossas esquisitices, estáva­mos todos no mesmo barco, e que é para isso mesmo – para cuidar das nos­sas feridas, ao mesmo tempo aprenden­do a não ferir os outros – que estamos aqui. E também pelo amor, que vem sob inúmeras formas e pode ser dirigi­do a inúmeras coisas. Há muitas per­guntas na vida que valem a pena fazer, mas talvez, se formos sábios, nós possa­mos entender que nem toda pergunta precisa de resposta.
–
Trecho do livro A Mãe de Todas as Perguntas, a ser lançado este mês pela Companhia das Letras. 
IMAGEM: RICHARD RUSSELL
Fonte:  http://piaui.folha.uol.com.br/wp-content/uploads/2017/08/131_questoescontemporaneas.jpg - Acesso 27/09/2017
Postado por Zelmar Guiotto às 15:18 Nenhum comentário:

Rubens Ricupero: 'Ninguém quer sair na foto com o Brasil', que lança livros

MUNDO - Rodrigo Ricupero, ex Ministro da Fazenda de FHC e ex Embaixador do Brasil nos EUA que esta lançando novo livro. 20/09/2017 - Foto - Marlene Bergamo/Folhapress - 017 -
  Marlene Bergamo/Folhapress
O ex-ministro e ex-embaixador Rubens Recupero é entrevistado pela Folha em seu apartamento.

Diplomacia não faz milagre. Hoje em dia, a imagem que o Brasil tem no exterior corresponde à realidade: um país com uma corrupção terrível, um presidente com uma segunda denúncia 
e a crise mais grave da história.
"Ninguém quer sair na foto com o Brasil", diz o embaixador Rubens Ricupero, 80, ex-ministro da Fazenda e do Meio Ambiente, que lança na semana que vem "A diplomacia na construção do Brasil - 1750-2016", uma abrangente 
história da política externa brasileira.





Na obra, Ricupero, que foi secretário-geral da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (UNCTAD), retrata como a diplomacia, e não o poder militar ou econômico, asseguraram ao Brasil suas fronteiras atuais.

A Diplomacia na Construção do Brasil
Rubens Ricupero
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Ele analisa a influência dos EUA na política externa brasileira —"Eles não executaram (o golpe militar), mas foram os mandantes". Reserva críticas para a política externa "ideologizada" do PT, mas também faz elogios. 

"Por que todo mundo queria estar com o Lula? O Lula era um vitorioso. Além do sucesso econômico e político, ele tinha o êxito moral, o combate à miséria e à injustiça. Hoje, deve ter muito pouca gente querendo sair na foto com o Temer. Ninguém pode imaginar que o Itamaraty vai alavancar o Brasil se o país não acabar com a corrupção, voltar a crescer e combater a miséria." 

Abaixo, trechos da entrevista que ele concedeu à Folha.

* 

Folha - O sr. testemunhou vários momentos importantes da história brasileira, relatados no seu livro. Pode contar algum?
Rubens Ricupero - Tem o encontro do Robert Kennedy com o ex-presidente João Goulart, em 1962. Era 17 de dezembro e eu era terceiro-secretário, um cargo bem baixo no Itamaraty. Brasília estava vazia e eu era o único diplomata respondendo pelo Itamaraty. O Robert Kennedy ia chegar e pediram para recebê-lo, em nome do governo brasileiro. 

Podia parecer até uma ofensa, o terceiro secretário recebendo, e eu expliquei ao Lincoln Gordon (embaixador dos EUA na época) que eu era o único ali. Eu apertei a mão do Robert Kennedy. 

No dia seguinte, às 11h, ele foi recebido pelo Goulart, no Alvorada. Eu fui, mas não entrei. Na sala estavam apenas Goulart, um intérprete do departamento de Estado, Kennedy e Lincoln Gordon.
Goulart não quis testemunhas porque provavelmente antecipava que ia ser uma conversa muito forte e não queria que ninguém ouvisse o que ele ia dizer. 

Em 2014, foi revelado um memorando sobre o encontro, escrito por Gordon. Kennedy teria dito a Goulart: "Não temos problemas com independência na política brasileira, mas de fato objetamos a que essa independência se torne sistematicamente antiamericana, opondo-se a políticas e interesses americanos de modo regular". 

Mais assombroso ainda, na primeira conversa que John Kennedy gravou no Salão Oval da Casa Branca, em julho de 1962, Goulart só estava no poder há 9 meses e os americanos já estavam convencidos de que era preciso levar os militares a dar um golpe no Brasil. 

Eles reconheciam que os militares não queriam fazer isso, tanto que Gordon diz ser preciso "reforçar a espinha dorsal dos militares". Ainda falta escrever o livro sobre o papel dos americanos no golpe.
Não acho que eles deram o golpe, mas não tenho dúvida de que eles induziram e foram os primeiros a organizar. É como num homicídio, que tem o mandante e o executante. Os americanos não executaram (o golpe), mas foram os mandantes. Mesmo assim, estou convencido de que o Goulart caiu por culpa dele, quando ele recuperou os poderes e apostou na radicalização. Não havia ambiente para isso. 

Por quê?
Ele radicalizou em um momento de aguda Guerra Fria em que isso era inconcebível. Do Jacobo Arbenz em 54, na Guatemala, até o Salvador Allende em 73, no Chile, nenhum governo de esquerda na América Latina sobreviveu. O Lula só chegou ao poder porque a Guerra Fria tinha terminado. 

Hoje em dia qual é o tom do relacionamento entre Brasil e EUA?
Os EUA, depois do fim da Guerra Fria e após os ataques de 11 de setembro de 2001, passaram a ter uma agenda internacional em que não há mais espaço para América Latina. 

A pauta americana é dominada hoje por grandes temas de superpotência, como problemas no mar do sul da China e rivalidade estratégica com a Rússia, ou pela islamização da agenda internacional, por conflitos vinculados à radicalização de um de islamismo extremista. 

Uma vez que desapareceu a ameaça comunista, para os americanos, o que se passa aqui pode incomodar um pouco, mas não muito. Até mesmo a Venezuela —eles prefeririam que fosse um país a favor dos EUA, mas podem conviver com isso perfeitamente. 

Hoje em dia, na grande estratégia americana, não há espaço para o Brasil. O Trump até hoje não fez um tuíte especificamente sobre o Brasil —essa é a maior prova da insignificância do Brasil para o governo americano. Aliás, ainda bem, porque em geral, quando Trump põe alguém no Twitter, é para dar uma porrada. 

Hoje nossa política externa para os EUA está mais para política externa independente, dos anos Jânio-João Goulart, ou alinhamento automático?
Hoje temos uma política independente. No discurso do Temer na ONU, que é o do Itamaraty, há defesa do Acordo de Paris e do multilateralismo, dois temas a que Trump se opõe. O Brasil tem o que dizer nessas duas questões. 

O Brasil não é potência nuclear, nem militar convencional, nem econômico-comercial. A única área em que o país é potência é no meio ambiente, porque tem a maior floresta tropical do mundo, se o Temer e a bancada ruralista não destruírem. 

Também na área de negociação agrícola comercial não se pode chegar a um acordo sem o Brasil. A última vez em que quase se chegou a um acordo, em 2002, foi um grande trabalho do (então chanceler) Celso Amorim, com apoio do Lula, um entendimento entre Brasil e UE para resolver um impasse. Mas aí os americanos e indianos torpedearam o acordo.
O Brasil nessas áreas é incontornável, mas com o Trump, como você pode ter um diálogo sobre o acordo de Paris, sobre a retomada da negociação multilateral de comércio agrícola, que é o que interessa ao Brasil? 


Sergio Lima - 27.mai.2010/Folhapress
BRASÍLIA, DF, BRASIL, 27-05-2010, 13h30: Presidente Luiz Inacio Lula da Silva e o primeiro-ministro da Turquia, Recep Tayyip Erdogan no Palacio do Itamaraty, durante declaração a imprensa. (Foto: Sergio Lima/Folhapress, PODER)
O então presidente Luiz Inácio Lula da Silva recebe o hoje presidente da Turquia Recep Tayyip Erdogan             
 
Um dos momentos em que a política externa brasileira esteve mais em evidência foi em 2010, quando o Brasil, ao lado da Turquia, propôs um acordo resolver a questão nuclear do Irã...
 
Eu nunca fui um crítico do esforço que o Lula e o Celso (Amorim) fizeram. Há derrotas que honram mais que certas vitórias, essa é uma delas. Foi uma iniciativa inédita para um país latino-americano tentar chegar a um acordo numa área em que normalmente é privativa das grandes potências. 

Quando se falava em multipolarismo, acreditava-se que as grandes potências nucleares e militares tinham finalmente aceitado que havia espaço para países intermediários como o Brasil, a Turquia, o México, a Índia. 

Que esses países poderiam tentar solucionar um caso como o do Irã. Equivaleria hoje em dia ao caso da Coreia do Norte, se nós tivéssemos alguma influência sobre o governo de lá. O próprio Obama chegou a encorajar o esforço brasileiro por cartas. 

Mas a Hillary (então secretária de Estado Hillary Clinton) era contrária e tanto o Brasil como a Turquia sobrestimaram sua influência sobre os iranianos. Conseguiram que os iranianos mostrassem alguma flexibilidade, mas não o bastante para permitir acordo naquele momento. E os Brics decepcionaram. 

Se é verdade que os Brics constituem um agrupamento importante, como é que se explica que a Rússia e a China tenham se aliado aos americanos votando sanções adicionais ao Irã e arrancando o tapete debaixo dos pés do Brasil e da Turquia. 

Meu livro mostra bem que era prematura essa percepção de que havia espaço para o multipolarismo. Na hora em que houve a prova de fogo, viu-se que as grandes potências não delegavam para ninguém. 

Foi uma tentativa meritória, audaciosa, que longe de desonrar, deu prestígio para o país, que foi aplaudido no mundo inteiro. Perceba que eu não sou sectário. Discordo da política externa dessa época para América Latina, a política paralela do PT, feita por inspiração da ideologia, não pelos interesses do Brasil. 

O sr. critica a ideologização do Itamaraty durante o comando de Celso Amorim, e o fato de ele e o então secretário-geral Samuel Pinheiro Guimarães terem se filiado ao PT...
Sim, eu sou uma espécie em extinção, da época em que o diplomata era um servidor que deveria servir imparcialmente o Estado. Fui treinado dessa maneira, hoje o pessoal novo não concorda.
Será que agora não está em curso uma ideologização, só que do lado oposto, contra a ideologia do PT? 

Eu espero que não, me dizem que não houve expurgos. O embaixador do Brasil em Paris, Paulo Cesar de Oliveira Campos, foi indicado pelo Lula e não mexeram nele.
Eles, ao contrário, perseguiram muita gente, embaixadores de grande valor como o Marcos Caramuru, maior expert que tínhamos na China, o Gelson Fonseca Jr, intelectual mais brilhante do Itamaraty, foi embaixador na ONU e terminou a carreira como cônsul-geral no Porto. Como se explica isso, a não ser como perseguição ideológica? 

O Brasil deveria romper com a tradição diplomática brasileira e impor sanções econômicas contra a Venezuela?
Eu não sou favorável às sanções, porque elas normalmente atingem o povo mais sofredor. O que o Brasil deveria fazer, e não está, é ser modelar no acolhimento dos refugiados venezuelanos. Deveria ser um exemplo para o mundo, e está sendo o contrário, os venezuelanos estão aí abandonados, e tem gente propondo que não deem refúgio. A melhor forma de o Brasil atuar seria dar acolhimento a esses refugiados. 

O Brasil pode ser uma potência com relevância internacional?
A política externa é indissociável daquilo que nós somos em política interna e em economia. Tivemos nosso momento mais alto de prestígio na época do Lula, 2009, quando o Brasil conquistou o grau de investimento, a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos. 

No entanto, houve uma percepção externa de que aquilo era irreversível. O próprio Lula semeou a destruição de suas conquistas, ao começar a arruinar as contas públicas, ao aceitar a corrupção —ele não a inventou, mas aceitou e levou a extremos. Ele e a Dilma, no fundo, foram autores de suas próprias ruínas e carregaram o Brasil junto. 


Jim Watson - 14.nov.2008/AFP
ORG XMIT: 112501_0.tif Os presidentes Lula, George W. Bush e o chinês Hu Jintao, que se sentaram lado a lado durante jantar do G20 na Casa Branca. US President George W. Bush (C) toasts Brazilian President Luiz Inacio Lula da Silva (L) and Chinese President Hu Jintao (R) during a dinner for leaders attending the G20 Summit on Financial Markets November 14, 2008 at the White House in Washington, DC. Leaders of the Group of 20 richest economies and emerging economic heavyweights are meeting in Washington to craft a joint strategy to deal with the rapidly spreading global financial crisis. AFP PHOTO/Jim WATSON
Lula participa de brinde com o então presidente dos EUA George W. Bush e o líder chinês Hu Jintao  
 
Qual é a imagem do Brasil no exterior hoje?
Hoje a imagem do Brasil não é nem pessimista, nem otimista, corresponde à realidade: trata-se de um país com uma corrupção terrível, um presidente com uma segunda denúncia, ministros sendo investigados, uma crise que é a mais grave da história. 

As pessoas dizem —por que a diplomacia brasileira não faz isso ou aquilo? Mas como, ninguém quer sair na foto com o Brasil. (Binyamin) Netanyahu veio para região e não se encontrou com o Temer, o vice-presidente americano, Mike Pence, também. 

Por que todo mundo queria estar com o Lula? O Lula era um vitorioso. Além do sucesso econômico e político, ele tinha o êxito moral, o combate à miséria e à injustiça. Quem não queria ficar ao lado do Mandela? Hoje, deve ter muito pouca gente querendo sair na foto com o Temer. Ninguém pode imaginar que o Itamaraty vai alavancar o Brasil se o país não acabar com a corrupção, não voltar a crescer, não combater a miséria. 

A certa altura do livro, o sr. diz que a "Dilma escondia debaixo da autossuficiência e da aspereza no trato com os diplomatas, insegurança nascida da falta de sensibilidade para relacionamento interpessoal."
Ela não tinha autoconfiança. Eu fiquei dez anos na ONU. Em 2003, na reunião do G8 em Evian, o (então secretário-geral da ONU) Kofi Annan me levou como seu principal auxiliar. Nessa reunião, o (então presidente francês Jacques) Chirac tinha convidado o Lula, o líder chinês e o indiano, mas para uma reunião à parte. 

Eu estava lá quando o Lula chegou, e pensei comigo: acho que o Lula vai ficar muito intimidado. Estavam presentes o Chirac, o (ex-presidente americano) George W. Bush, primeiro-ministro inglês Tony Blair, o (ex-chanceler alemão) Gerhard Schroder, (o ex-primeiro ministro italiano Silvio) Berlusconi e (o presidente russo Vladimir) Putin. Todos os grandes do mundo. 

Houve uma sessão em que estavam falando sobre o problema da fome, e o Bush, que é evangélico, fez uma intervenção dizendo que tinha muito a ver com a Bíblia. O Chirac, com aquela arrogância francesa, disse: não tem nada a ver com religião ou a Bíblia. 

Aí o Lula assumiu a defesa do Bush, disse —não senhor, tem tudo a ver, porque a Bíblia isso e aquilo. Ele estava com aquela cara de bravo, falando alto, e todo mundo afinou. Aí eu percebi: para o Lula, aquele pessoal eram os patrões da Fiesp, o líder metalúrgico não pode se intimidar com os patrões da Fiesp. A Dilma não é assim. 

O sr. diz no livro que Dilma foi uma das piores presidentes em termos de vocação para política externa.
Eu não conheço nenhum outro que tenha deixado 40 embaixadores esperando, sem apresentar credenciais. São coisas elementares. Ela não tinha interesse, não valorizava, não se sentia bem. E tinha uma mentalidade de tecnocrata no sentido limitado, a ideia de que as únicas coisas que fazem diferença são as concretas. 

Então tudo o que o Itamaraty fazia, ela mandava rasgar aqueles papéis. O Itamaraty, a não ser que você esteja negociando o fim de uma guerra ou uma fronteira, só lida com o longuíssimo prazo. Por que que o (ex-chanceler José) Serra saiu? Ele é engenheiro, gosta de fazer coisas. 

No Itamaraty, você lida com conceitos. O Lula, que é muito inteligente, percebeu que a política externa era uma tremenda alavanca, inclusive interna, e usou muito. Ela não soube usar. Diplomacia e política são a mesma coisa, Lula era um grande diplomata. 

Como o sr. avalia a política externa hoje?
Estamos em um momento de gradual recuperação, tanto da política e da economia, quanto a política externa. Só vamos ter algo mais determinado depois das eleições. Isto é, se a eleição não "der ruim". Se tivermos um Bolsonaro da vida, é hora de fechar a butique mesmo. 

Há muita tensão entre o ditador norte-coreano Kim Jong Un e o presidente americano, Donald Trump. O mundo pode estar próximo de uma guerra nuclear?
Não. Nós estamos há 72 anos sem uma guerra nuclear, em parte por conta do poder destrutivo das armas nucleares, que atua como deterrence, mas em parte porque a ONU, com todos os defeitos, mostrou que era maleável o bastante para acomodar grandes mudanças. 

O norte-coreano não é louco. Ele conduz uma política muito lógica e racional, pois viu o que aconteceu com o (ex-ditador iraquiano) Saddam Hussein e o (ex-presidente líbio) Muammar Gaddafi, que não tinham armas nucleares. E ele não vai acreditar nos americanos, no que ele tem absoluta razão. 

Mas mesmo se considerarmos que o Kim Jong-un não é maluco, está desenvolvendo instrumento de dissuasão, do outro lado há um ator não necessariamente racional, o Donald Trump...
Trump é autor de "The Art of the Deal", diz que é preciso desestabilizar o adversário e nunca deixar o oponente saber o que a pessoa vai fazer. Os dois são negociadores se ameaçando mutuamente. Não vai acontecer nada. 

O planeta não vai acabar com um apocalipse nuclear, mas pode acabar como diz o verso do T.S. Eliot "not with a bang, with a whimper" (não com um estrondo, com um suspiro). O maior perigo que nós enfrentamos hoje é o aquecimento global. Mas as pessoas não percebem, porque a explosão nuclear é um perigo imediato, enquanto o aquecimento leva 30, 40 anos. Mas já está chegando.

Sergio Lima - 1º.jul.1994/Folhapress
Rubens Ricupero posa ao lado do então presidente Itamar Franco com as novas notas do real, em 1994
Rubens Ricupero posa ao lado do então presidente Itamar Franco com as novas notas do real, em 1994
O sr. conta no livro que, ao ser convidado para o ministério, disse ao presidente Itamar Franco não ser a pessoa mais adequada...
Eu disse a ele: não sou economista profissional, conheço muito pouco do plano, apenas o que a imprensa publicou. Disse que ele deveria convidar alguém que conhecesse profundamente o plano, até sugeri dois nomes, Edmar Bacha e Pedro Malan. 

Ele me respondeu: nós já examinamos todas as opções e o senhor é a única alternativa. Embora a frase fosse um pouco críptica, uma frase em mineirês, eu entendi. Eu trabalhei a vida toda com mineiros, com Afonso Arinos, San Tiago Dantas, Tancredo Neves. O Tancredo dizia que eu era o mais mineiro dos paulistas. Percebi que o Itamar queria dizer que ele queria alguém fora da equipe, que devesse o cargo a ele, e não ao FHC. 

O Itamar costumava dizer muito que eu era o sacerdote do real, em parte porque eu cumpria a função de pregar, na televisão, em parte era para chatear o Fernando Henrique, que ficou mais glorificado pelo real. Não deram muito crédito para o Itamar e ele deveria ter recebido, sem ele, o real não teria existido. Eu disse que era funcionário público, e aceitava. 


+ ERRAMOS: O conteúdo desta página foi alterado para refletir o abaixo
  • 26/09/2017 11h21 Diferentemente do informado, a reunião do G8 em Evian aconteceu em 2003, não em 2012. O texto foi corrigido.
  • FONTE: http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2017/09/1921639-ninguem-quer-sair-na-foto-com-o-brasil-diz-ricupero-que-lanca-livro.shtml 
Postado por Zelmar Guiotto às 11:28 Nenhum comentário:
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