sexta-feira, 29 de setembro de 2023

Qual é o futuro da indústria de luxo, segundo o filósofo Gilles Lipovetsky, que estuda a moda “A moda para os intelectuais é o diabo”, diz o francês, que participou de evento em São Paulo

 Por Maria da Paz Trefaut, para o Valor — São Paulo

 Gilles Lipovetsky: “A moda para os intelectuais é o diabo” — Foto: Ana Paula Paiva/Valor

Gilles Lipovetsky: “A moda para os intelectuais é o diabo” — Foto: Ana Paula Paiva/Valor

 

Certos intelectuais nutrem certo desprezo pelo mundo da moda. No entanto, o filósofo francês Gilles Lipovetsky resolveu estudar a moda e o mercado de luxo. Com vários livros publicados e traduzidos em mais de 20 países sobre temas diversos como a era do vazio e a hipermodernidade, ele causou controvérsia ao lançar, em 1987, “O império do efêmero - A moda e seu destino nas sociedades modernas” (Companhia de Bolso).

Na semana passada, Lipovetsky foi a estrela do evento France Excellence América Latina, no hotel Rosewood, em São Paulo, que teve como tema “A tradição da inovação” e foi organizado pela Atout France, agência que atua para o turismo na França. O mercado global de luxo atingiu o valor de 345 bilhões em 2022, segundo a Bain & Company. É natural que a França, terceira economia da Europa, veja no Brasil um parceiro essencial para consumir seus produtos.

Apesar de toda essa aura que cerca o mundo do luxo, Lipovetsky passou uma mensagem clara. “Para se reinventar, a indústria do luxo precisa se engajar na transição ecológica e parar com o desperdício”, disse. “Essa será a inovação maior, uma transformação estrutural e cultural que representa uma mudança de paradigma. Até agora o luxo ignorou o futuro. Chegou a hora de incorporar a ética do futuro.”

Laurence Picot é roteirista do filme “A Invenção do Luxo à Francesa” — Foto: Ana Paula Paiva/Valor

Laurence Picot é roteirista do filme “A Invenção do Luxo à Francesa” — Foto: Ana Paula Paiva/Valor

O evento trafegou por várias áreas, do turismo à beleza. Houve espaço para reflexões sobre a “construção de marcas icônicas”, as “experiências de viagens de alto luxo” e sobre moda e esporte, já que Paris vai sediar os Jogos Olímpicos de 2024. As conversas se deram em clima informal e uma das convidadas foi a jornalista e escritora Laurence Picot que, há 20 anos, pesquisa a indústria francesa de luxo e é roteirista do filme “A Invenção do Luxo à Francesa”, que está no Canal Arte1.

O filme usa corretamente a palavra invenção no título e prova que, ao diferentemente do que se pensa sobre a ancestralidade do luxo francês, a indústria foi, na realidade, um investimento de Estado conquistado à custa de espionagem, cópias descaradas e comportamentos pouco éticos. A criação dessa indústria ocorreu no reinado do absolutista Luís XIV, o “Rei Sol”, que assumiu o trono em 1643 e o ocupou até a morte, em 1715.

O artífice da mudança foi o Ministro da Economia e Finanças Jean-Baptiste Colbert, que percebeu o desequilíbrio na balança comercial causado pelas vultosas importações feitas pela aristocracia. Na época, a nobreza importava espelhos da Itália, têxteis da Holanda e rendas inglesas. Era, portanto, urgente que a França começasse a fabricar o luxo que consumia em demasia para deixar o dinheiro em casa.

“Depois do século XIX o luxo entrou na era moderna, em seguida na hipermodernidade, no mundo globalizado, e hoje usa a inteligência artificial”, disse Lipovetsky. “O segredo dessa permanência talvez seja ter conseguido se constituir como um mercado acessível e, ao mesmo tempo, inacessível.”

Hoje, há várias formas luxo para diferentes públicos e idades. O inacessível sobrevive no universo da alta costura, mas há o intermediário, o prêt-à-porter, que se traduz na moda de grifes de renome. E o luxo mais acessível é aquele dos perfumes e pequenos acessórios como lenços e chaveiros. “Não é um falso luxo, é o luxo contemporâneo. Mas para que uma marca mantenha sua essência é preciso manter a qualidade independentemente do preço”, disse o filósofo. E exemplificou: “Um chaveiro com o monograma da Louis Vuitton é uma inovação do luxo da nossa época, um ‘neo-luxo’ que permite a extensão do domínio das marcas e que não diminuiu sua sedução; pelo contrário, as tornou mais desejáveis.”

Para que essa transformação tenha ocorrido, há uma estratégia de comunicação poderosa que adentra o mundo da cultura pop, utiliza a imagem de estrelas de Hollywood e até de rappers transgressores que se tornaram garotos propaganda de marcas que, agora, ocupam espaço até em displays colocados em aeroportos. Vale tudo na conquista de novas gerações.

Essa repaginação não deixa de parecer um paradoxo. “Antes as marcas de luxo cultuavam a discrição”, lembra Lipovetsky. “Passamos da poesia discreta à superexposição. Não há mais marcas de luxo sem um trabalho de comunicação global. O estado hipermoderno do luxo se concretiza com a multiplicação de lojas Louis Vuitton, Dior, Hermès.” Nesse processo, as marcas contratam vedetes da arquitetura como Renzo Piano e Frank Gehry para projetar flagstores impactantes, mas, por outro lado, vendem até na web. “Há algo menos glamouroso do que a web?”, pergunta o filósofo. “Mesmo assim, para se ter uma ideia, a Hermès investe 10% de sua comunicação na internet”.

Depois da palestra, Lipovetsky conversou com o Valor e recapitulou as dificuldades que enfrentou na academia. “A moda para os intelectuais é o diabo”, afirmou. “Nos anos 1980 eu era completamente ignorante a respeito desse tema. Sou oriundo de um meio popular onde não se falava nem de costura, nem de moda, muito menos de luxo. E era uma época contestatária, marxista.”

Ao escrever um artigo sobre a vestimenta, o filósofo partiu da observação de que havia signos que os ricos usavam para se distinguir e que as pessoas mais modestas copiavam. Quando isso ocorria, imediatamente os ricos mudavam a indumentária. Esse movimento é assim até hoje. Mas não explica o nascimento da moda na Idade Média. “Se a rivalidade entre os grupos sociais era milenar, por que não havia moda em Roma e nas sociedades primitivas? O que aconteceu no século XIV, no Ocidente, para os aristocratas embarcarem nessa nova folia de troca de vestimentas? Aí me dei conta de que não havia nenhum estudo a respeito do assunto em termos de reflexão”. Por quê? “Porque os intelectuais costumam pensar: A moda, imagina, isso é coisa para mulheres, é uma pequena coisa sem importância. Vamos falar da guerra, da política, da religião, de coisas relevantes. Além do mais, a moda é conformista... ditada por tendências, o que é contrário à liberdade, à singularidade.”

Essa visão é falsa, afirma. “Precisei me debruçar sobre a questão desde a base e percebi que o problema é muito mais complicado, que a moda demanda uma explicação muito complexa e que ela significa, em primeiro lugar, uma ruptura com a tradição. Era preciso que o modelo tradicional perdesse seu valor, o que demanda uma revolução civilizatória enorme. Em segundo lugar, não é verdade que a moda é totalmente conformista. Por um lado é, mas sempre houve uma pequena parte de individualidade na moda.”

Lipovetsky compara a moda ao momento em que as mulheres começaram a dançar sozinhas. “Elas não queriam mais depender de um convite masculino. E a liberdade também esteve presente na moda. O minimalismo é uma moda para as mulheres e não para o olhar masculino. Nele, veste-se de maneira simples, elegante, nada sexy, e as mulheres que adotam esse estilo não querem parecer uma presa sexual. Com relação à moda tradicional, o minimalismo é uma grande mudança. Porque a moda sempre pareceu um teatro. Portanto, há mudanças grandes na lógica da moda que não são compatíveis com o conformismo.”

As mulheres adoram a moda por quê? ele pergunta e reponde: “Porque era o único domínio em que podiam ter um pouco de liberdade, de aventura. Aventuras sexuais, não podiam ter, aventuras políticas, também não. O que lhes restava? Cuidar das crianças, da casa... O escape era se vestir, trocar de look. A moda era o único lugar onde podiam se divertir. Acho que subestimamos isso. A moda tem um lado emancipatório. Onde não há moda é perigoso. Para as mulheres é horrível.”

Ele também percebeu que um mundo sem moda seria menos divertido. Sim, ela tem aspectos negativos, mas também positivos. “A moda é uma invenção de uma civilização. Os ocidentais criaram a racionalidade científica e a superficialidade. Inventaram essas duas coisas ao mesmo tempo. Os ocidentais iniciaram uma guerra contra a tradição, e a ciência é contra a tradição, busca a verdade, muda o tempo todo, é o contrário da terra plana.”

“Na ciência discute-se tudo. E na moda é parecido”, diz o filósofo. “A gente copia, sim, mas também inventa o tempo todo. De alguma forma, a ciência e a moda são expressões de um mundo que não é mais regido por Deus nem pelos ancestrais. As pessoas fazem o próprio mundo, diferente do que receberam do passado”.

Ao ser perguntado sobre temas atuais como trabalho escravo, hiperconsumo, queima de sobra de coleções no deserto de Atacama, Lipovetsky afirma que denunciar tudo isso é “um imperativo existencial”. E que a saída está em todos os atores. Na indústria, num estado com leis rigorosas, nos consumidores, mas, essencialmente, num investimento maciço na pesquisa para encontrar novos materiais e tecnologias que respeitem o ambiente. “É preciso caminhar no sentido da transição ecológica. É uma revolução planetária. Não basta a tomada de consciência, deve se traduzir em atos.”

“Acho que o século XXI precisa se voltar para a escola”, diz Lipovetsky. É ali que se formam os cidadãos, os homens completos. Consumir demais é sinal de uma existência pobre. Vamos investir na cultura, no saber, na arte. A educação tem um poder infinito.”

Fonte: https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2023/09/27/qual-e-o-futuro-da-industria-de-luxo-segundo-o-filosofo-gilles-lipovetsky-que-estuda-a-moda.ghtml

 

Escrevo para me consolar dos traumas de infância e para transformar as dores de amor em royalti

 Martha Medeiros*

Gilmar Fraga / Agencia RBS 

Escrevo para uma única pessoa: você, que ao me ler estará sozinho também (mesmo cercado de gente) e em silêncio

É uma aventura constante revelar para mim mesma o que permanece desconhecido em mim


Escrevo para dar exclusividade à minha solidão. Para não parecer tão esquisita como pareceria se fosse uma solitária que não escreve. Escrevo para não desperdiçar a minha sinceridade. Sozinhos, somos mais sinceros do que quando socializamos.

Escrevo para ficar quieta por mais tempo. Para não falar sobre a vida dos outros — escrever sobre eles dá menos problema. Escrevo porque não sei tocar guitarra, porque não aprendi a esculpir em madeira, porque meus glúteos são muito largos para o balé. Escrevo porque teria dificuldade de decorar o texto para uma peça, porque só sei desenhar uma casinha — e mal.

Escrevo porque a literatura é uma arte discreta. Escrevo porque não existe horário para começar, nem terminar, nem dia útil, nem dia inútil, nem ônibus para pegar, nem parada para descer, nem apito de fábrica, nem gerente, nem chefe (nem carteira assinada também, é o ônus).

Escrevo porque gosto muito de ficar em casa. Nunca escrevo em quartos de hotéis, em trens, em espaços de coworking. Escrevo porque ninguém me acusa de estar me escondendo, mesmo que eu esteja.

Escrevo porque dizem que a maioria dos homens não suporta mulheres que escrevem. Abençoo esta triagem. Só os corajosos me atraem.

Escrevo para me relacionar melhor com a morte. A morte não traz benefícios para quem fabrica guarda-chuvas, atende em consultórios ou limpa vidraças. Mas ela costuma ser generosa com escritores: inspira e, se você for uma Clarice Lispector, eterniza.

Escrevo porque não é um trabalho de equipe. Escrevo para uma única pessoa: você, que ao me ler estará sozinho também (mesmo cercado de gente) e em silêncio. Prefiro relações a dois. Escrevo para dar voz às minhas feras, bruxas, demônios. Escrevo porque posso ser malvada, traidora, desaforada, matar e morrer — e acordar ilesa na segunda-feira.

Escrevo para me consolar dos traumas de infância e para transformar as dores de amor em royalties — é uma compensação justa. Escrevo porque escrever ativa a esperança. A esperança de ser lida, compreendida e amada. E a esperança de que meu texto sirva para fazer alguém se sentir menos estranho para si mesmo. Escrevo porque, se eu parecer louca, ninguém vai dar muita atenção. Periga até eu ganhar um prêmio.

Escrevo porque enquanto estou escrevendo, estou lembrando. Escrevo porque nunca sei sobre o que irei escrever. É uma aventura constante revelar para mim mesma o que permanece desconhecido em mim.

Em meu primeiro livro, ainda muito jovem, publiquei um verso que dizia: quanto mais escrava, mais escrevo. O tempo passou, me libertei de quase tudo o que me oprimia e devo isso a todos os livros que li, e aos meus. É por ela, a liberdade, que escrevo.

* Escritora, aforista e poetisa brasileira. É conhecida como uma das melhores cronistas brasileiras. Entre suas obras mais conhecidas estão Divã, Doidas e Santas e Feliz Por Nada.

Fonte:  https://gauchazh.clicrbs.com.br/donna/colunistas/martha-medeiros/noticia/2023/09/escrevo-para-me-consolar-dos-traumas-de-infancia-e-para-transformar-as-dores-de-amor-em-royalties-cln3g36ak0044015ncgv9wmom.html

quinta-feira, 28 de setembro de 2023

O peso dos nossos dias

 Bruno Nogueira*

 Juan Cavia

Os nossos dias não são o que nós queremos que eles sejam, mas são nossos. Com culpa, com luto, com alegria, com tudo e com nada. Fugir deles é a pior coisa que podemos tentar fazer, porque eles têm pernas longas e hão-de correr até nos conseguirem apanhar e levar de volta.

É curiosa esta ideia de os dias da semana terem pesos e medidas diferentes. Vistos ao longe até parecem ser feitos da mesma matéria, mas aquilo que provocam em cada um de nós varia consoante a nossa história e a nossa disposição. Acrescentamos quilos aos que nos cansam, e tiramos peso aos que nos fazem falta, num ajuste de contas diário que nos serve sobretudo a nós. Os dias da semana têm bagagens diferentes e personalidades fortes, e a chegada de cada um deles pode provocar uma espécie de baque, como se nos apanhassem de surpresa todas as semanas. Tratamos os dias consoante o que eles nos dão, num desafiante leilão diário. Gostamos das terças porque temos uma combinação que adoramos, das quartas porque sim, das quintas porque praticamos o desporto que gostamos, e por aí fora. Mas essas âncoras não são garantia de um dia bom, porque o que ele tem lá dentro pode até ter coisas previsíveis, mas pelo meio há outras que desequilibram a ordem que dávamos como certa. A sexta-feira é o dia que tem melhor reputação, porque é o dia que devolve o descanso a quem o perdeu nos outros dias. Anuncia um fim-de-semana onde podemos reivindicar os horários que bem entendermos. Mas mesmo assim há quem baralhe o jogo e trabalhe ao fim de semana, e veja afinal na semana o descanso que a maior parte das pessoas não consegue lá encontrar. São os mesmos dias, mas só para quem os trata pelo nome, e não por aquilo de que são feitos.

Num canto nublado e triste está o domingo, e que leva com o peso de todos os outros que se acham melhores e mais leves. O domingo tem 24 horas, mas há quem lhe dê menos. É o dia que dizem não servir para nada, que está só a fazer-se de sonso até vir a segunda-feira, o dia em que começa tudo outra vez. A má fama do domingo não é culpa dele, é nossa. Ele oferece-se para que o aproveitemos com a mesma fome que tivemos pelo sábado, mas nós não vamos em cantigas. Gastamos os domingos com a dor antecipada daquilo que vamos penar durante a semana, e quando damos por isso já é segunda. E o domingo, coitado, lá tem de nos dar colo e fazer-se de mau da fita para que tenhamos um saco de pancada onde descarregar as culpas. Às vezes, dentro de um dia, pode estar uma semana inteira. Há dias que duram até hoje em mim, e outros que foram tão vazios que ia jurar que tinham sido só metade. Dias que são feitos para ficarmos presos ao que eles nos puseram à frente, a tentarmos deslindar que fios são aqueles que se embaraçam todos uns nos outros até serem só um novelo onde não se encontra o princípio nem o fim. Tentar passar por ele sem lhe dar a atenção merecida é só uma provocação até que comece a crescer e fique de um tamanho que nos faz frente. No meio desse novelo, às vezes aparece um outro pequenino e complexo, e que foi quem fez o maior às escondidas. Esse novelo pequeno e complexo chama-se culpa. A culpa aparece disfarçada ao domingo, porque se quer infiltrar onde há fendas. Começa a espalhar-se silenciosamente para que possa fazer o seu trabalho sem ser notada, até se esticar para lá do tamanho que nós suportamos. A culpa é a nossa fraqueza vista de frente. É o resultado do que fizemos - ou deixámos por fazer -, e que não nos dá descanso. Imagino que seja isso, enlouquecer. A cabeça sempre à procura de uma janela para poder respirar um bocadinho, e as portadas a fecharem-se de par em par, até que se tenha mais tempo e foco para olhar para os problemas que lá estão dentro. A culpa pode matar quem a tem, e quem está à frente de quem a tem. É uma arma de arremesso que dispara para nós e faz ricochete nos outros. Um dia inteiro que nos rouba a felicidade dos dias que lutaram tanto para o ser. Enlouquecer também deve ser isso, não termos por onde fugir de nós. Os dias estão cheios de muitas coisas que falam línguas diferentes. Quando alguém nasce, esse dia fica feliz para sempre, numa festa anual que nos relembra da nossa pequenez, por ser indiferente para quem não sabe o que está ali a acontecer. Mas quando morre uma pessoa de quem gostamos, morre também o dia em que ela morreu. O dia veste-se de luto todos os anos; e assim vão sobrando cada vez menos que estejam livres de memória. Os nossos dias nem sempre são o que nós queremos que eles sejam, mas são nossos. Com culpa, com luto, com alegria, com tudo e com nada. Fugir deles é a pior coisa que podemos tentar fazer, porque eles têm pernas longas e hão-de correr até nos conseguirem apanhar e levar de volta.

O peso dos nossos dias pode assustar muito, mas a falta deles é bem pior. Se eu tivesse um diário, todos os dias partilhava com ele a sorte que tinha. Começava assim:

“Querido diário,
hoje, por sorte, o dia voltou a acontecer.”

Texto escrito segundo o anterior acordo ortográfico

*Humorista português

Fonte:  https://www.sabado.pt/opiniao/cronistas/bruno-nogueira/detalhe/o-peso-dos-nossos-dias?&utm_source=Newsletter&utm_campaign=Editorial_S%c3%a1bado_EdicaoManha+-+Alive&utm_medium=email&sfmc_segment=Alive&sfmc_term=Alive##utm##

quarta-feira, 27 de setembro de 2023

A insustentável leveza do se

Por Daniel Afonso da Silva,  
 
 Morre Milan Kundera, autor de 'A Insustentável Leveza de Ser'
 
O anúncio da morte de Milan Kundera, no último dia 11 de julho de 2023, causou estupefação em todos aqueles que, em algum momento da existência, ressentiram o êxtase, fugidio ou demorado, provocado pela sua A insustentável leveza do ser. Como Monalisa, Pietá, Ilíada, Fausto, Irmãos Karamazov, Dom Quixote ou Dom Casmurro, essa obra seminal parecia emergir de um ser ausente, transcendente, imortal. De um agente eterno, onisciente, onipresente. Feito um Funes, completamente memorioso, tipo dos tipos de Jorge Luis Borges.

A surpresa, portanto, da morte física de Milan Kundera, portador dessa alma inolvidável, provocou sentimentos contraditórios em todos aqueles que alargaram a sua impressão da vida através de suas miradas. Sendo que uma delas diz respeito ao maior debate de nossos dias que segue sendo o ocaso do Ocidente.

O ocaso do Ocidente teve os seus sintomas mais eloquentes diagnosticados pelo incontornável Sigmund Freud em sua alusão ao mal-estar da civilização e ao futuro dessa ilusão, tem quase um século. Antes de Freud, Nietzsche, em Gaia, já dizia que Deus estava morto e Fiódor Dostoiévski, em todas as partes, já evocava que, “Se Deus está morto, tudo é permitido”. O custo dessa permissividade oriunda da ausência de Deus, todos sabem, ajudou a protagonizar a hecatombe de 1914-1918, quando a razão venceu o medo e os ocidentais simularam um Hades terreno. Feito um Apocalipse. Feito em miniatura. Feito sob medida pelo Ocidente.

Um pouco depois dessa tragédia total indescritível, Oswald Spengler popularizou o seu entendimento sobre o inevitável declínio desse Ocidente que produziu 1914-1918. Ao mesmo tempo, Erich Auerbach, autor de Mimesis, imortalizou a sua compreensão sobre um tipo de civilização, que se ajoelhou em trincheiras e que ia desaparecendo.

Os totalitarismos dos anos seguintes, a Segunda Guerra Mundial, a Shoah, o never more onusiano, o multiculturalismo e o identitarismo decorrentes do mal-estar das descolonizações tornaram esse debate imensamente sofisticado sobre o Ocidente um artefato quase leviano. Quase ninguém seguiu considerando o Ocidente um assunto digno de reflexão demorada.

Somado a isso, o fim das certezas marinado na bien-pensance do pós-modernismo dos anos de 1970 passou a alimentar o relativismo de full contact onde, literalmente, tudo começou a poder e valer. Consequentemente, subitamente, nos anos de 1980-1990 e no século XXI afora, como queriam os rapazes e as moças baby boomers soixante-huitard, virou, no Ocidente, “proibido proibir”.

Onde tudo se pode, tudo vale e nada se pode proibir, claramente, tudo deixa de ter sentido. Desaparece a leveza. Tudo vira sustentável. Mesmo que demasiado pesado. Muitos validam. Poucos reprovam. Mas, de fato, nenhum ser suporta.

Tudo isso tem feito o discurso da ausência de hierarquia retornar como perversidade autoritária tipo faroeste onde os fracos não têm vez. Nunca se denunciou nem se processou, arbitrariamente, tanto desde então. Nunca se vivenciou tantas evidentes injustiças. George Orwell já havia antecipado tudo isso. Quando tudo se pode e vale e nada se pode proibir, vive-se, em verdade, num império de pulsões, ilusões e desatinos. Namora-se 1984.

Pois em 1983, dois anos depois de receber a cidadania francesa para viver formalmente o Ocidente, Milan Kundera, originalmente checo, apresentou a sua impressão sobre essa situação periclitante do Ocidente em seu intrigante “Un Occident Kidnappé ou la tragédie de l’Europe centrale”, publicado no número 27, de Le Debat, de Pierre Nora. Esse texto formidável, somente agora, 40 anos depois, traduzido para a língua portuguesa e em vias de publicação pela Companhia das Letras, merece a integral atenção de todas a gerações que seguem vivas e ativas nesta quadra da história que sobreviveu ao fim da história.

O mal-estar geral do Ocidente, na impressão de Milan Kundera, decorria e decorre, ainda hoje, do mal-estar dos ocidentais com a sua fé em Cristo. Cristo e a cristandade sempre foram e serão a unidade universal dessa civilização.

Desde a decapitação do monarca francês, continua o literato, que o fetiche da razão virou uma tremenda ilusão. Le Dieu chaché [o Deus escondido] como cimento da civilização ocidental migrou para a cultura – daí a profusão da produção artística europeia extraordinária e expressivamente rica do Iluminismo às guerras totais de 1914 a 1945 –, mas depois de 1945 esse Deus, unidade universal, foi transferido da cultura para a democracia. Uma democracia de auspícios liberais norte-americanos, protagonizada pelo american way of life e imposta ao Ocidente e ao mundo inteiro como valor universal.

Dito de outra maneira, a europeização do mundo iniciada em 1492 foi se transformando em americanização do Ocidente depois de 1776 e ocidentalização americanizada do planeta depois de 1945. A dita interdependência complexa entendida como globalização após 1970 e intensificada após 1990 nada mais tem sido que o prolongamento dessa ocidentalização americanizada.

Ainda em 1983, Milan Kundera já antevia que o fim da história e a irresistibilidade da democracia liberal não passariam de quimera. O mundo, mesmo o ocidental, depois de 1989-1991, seguia amplo e vasto. Amplo e vasto mundo que não tardaria a vivenciar eventos imponderáveis. Sendo o principal, a revanche dos povos retirados da história.

A revanche desses povos começou sorrateira. Quem sabe já anunciada pelo Haiti dos tempos de Toussaint Louverture no início do século XIX.  Quem sabe massificada pela aceleração da descolonização da África nos anos de 1960-1970. Mas o fato foi que essa revanche chegou ao seu zênite e se instalou no tempo após o 11 de setembro de 2001.

O simbolismo do 9/11 reabilitou, no Ocidente, o sentimento de necessidade de união absoluta envolta em alguma transcendência. Uma transcendência sem Deus nem cultura geral e somente com lampejos de democracia. Vale lembrar que o presidente George W. Bush chegou a afirmar que a sua guerra contra o terror era uma guerra santa e justa para a manutenção da sobrevivência da democracia e do Ocidente.

Em nome desse “Deus escondido” transfigurado em democracia como valor universal, não só os Estados Unidos, mas parte relevante dos países europeus ressignificou a sua batalha eterna e sem perdão no Oriente Médio e na África. Conseguintemente, a integralidade do Oriente Médio e da África ingressou numa redefinição, sem volta, de suas bases de referências ocidentais.

Nunca, desde o século XV, os valores fundamentais do Ocidente passaram a ser tão contestados nessas regiões, assim como nunca, desde tempos imemoriais, esses povos não ocidentais desejaram tanto um lugar ao sol diferente dos prometidos por agentes de Paris, Londres, Berlim, Bruxelas ou Washington.

De tanto se contestar a universalidade desses valores ocidentais pretendidos como universais, até os mais convencidos ocidentais, europeus e norte-americanos, começaram duvidar da superioridade de seus valores. Deus já vinha morto havia muito e nem a cultura no século XX nem a democracia no século XXI foram capazes de suplantar a sua completude. O mantra do “consumo, logo existo” das sociedades globalizadas encontrou um ponto de não retorno na crise financeira mundial de 2008. A eleição ou a presença marcante de senhores e senhoras abertamente estranhos, quando não contrários, ao cotidiano de realidades democráticas nos Estados Unidos e na Europa evidenciou que a democracia amarga o seu momento de post-truth. A horizontalidade animada pelo identitarismo de mistura com o wokismo apenas alimenta, hoje em dia, essa inquestionável anomia societal onde ninguém se respeita nem se compreende.

Tudo isso no Ocidente. Tudo isso de um século, o XX, a outro, o XXI.

A nova fase da tensão russo-ucraniana tem reanimado o debate sobre tudo isso. A Ucrânia foi impelida a desejar sonhar ilusões francesas, inglesas e norte-americanas em lugar de seguir se iludindo com as suas próprias ilusões eslavas. A reação da Rússia do presidente Putin vem produzindo essa tragédia planetária que inclusive os mais indiferentes já parecem notar e anotar.

Não vale mais a pena se rememorar a inacreditável humilhação que os ocidentais cometeram ante os russos depois da implosão do bloco soviético em 1989-1991. Ninguém no Ocidente parece disposto a reconhecer a sua parte de responsabilidade nesse conflito mais que odioso que irradia externalidades negativas para o mundo inteiro e já arruinou, fisicamente, a vida de mais de 200 mil ucranianos e, indiretamente, outras centenas de milhares de europeus, africanos e médio-orientais.

Milan Kundera morreu sem ver o fim dessa tragédia mundial de poucos paralelos cujas razões ele conhecia muito bem. Restou ao Papa Francisco, em sua passagem recente pela França, dizer o que diria Milan Kundera sobre motor deste momento de tormentas: “fanatismo da indiferença”.

Sim: o Ocidente, em longa fragmentação e franca decadência, pratica esse fanatismo. As milhares de almas africanas depositadas nas costas italianas nas primeiras semanas deste setembro de 2023 foram recebidas com indiferença integral dos ocidentais. O presidente francês chegou a afirmar que, europeus e norte-americanos, não podem “acolher toda a miséria do mundo”.

Mas, note-se, essa miséria toda foi fabricada longe da África e do Oriente Médio. Ela sengue sendo produto de holocaustos coloniais e pós-coloniais praticados por defensores de valores ocidentais.

As Primaveras Árabes nada mais foram que um autoengano animado nessas paixões. As mesmas paixões que promoveram o regime change na Líbia do coronel Gaddafi e, em decorrência, tornaram o Mediterrâneo o cemitério mais povoado do mundo. A tragédia e as escaramuças no Sahel – Mali, Burkina Faso, Nigéria e, mais recentemente, Gabão – apenas amplificam essa onda de escárnio.

Sim: o “fanatismo da indiferença” mata. Mata, especialmente, a leveza do ser, que deveria ser insustentável.

Bradar pela revitalização dos fundamentos do Ocidente não deveria virar monopólio de extremistas ultraconservadores norte-americanos ou europeus, tampouco de seguidores apaixonados do falecido professor Olavo de Carvalho. O Ocidente, como vaticinava Milan Kundera, precisa ser um bem comum de todo mundo neste mundo. Ocidentais e não ocidentais. Iguais e diferentes.

Um Ocidente sequestrado, esquartejado e enfraquecido só vai fomentar maiores declínios e desmesurados fanatismos de indiferença. Milan Kundera tem razão.

Adeus, Milan Kundera.

Vida longa à sua A insustentável leveza do ser.

* Pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais (Nupri) da USP

Imagem da Interneet

Fonte:  https://jornal.usp.br/artigos/a-insustentavel-leveza-do-ser/

 

terça-feira, 26 de setembro de 2023

Pedir transparência de algoritmos não é o mesmo que regular a IA

 Demi Getschko*

Digitalização. Os algoritmos são uma ajuda ou um perigo?

Não misturemos alhos de bugalhos

O gosto por alho e cebola é pessoal. A cebola é allium cepa, enquanto o alho é allium sativum, ou seja, são “primos”, mas com características tão diversas que é fácil separá-los. E alhos de bugalhos? Ensina a avoenga sabedoria popular que alhos e bugalhos não devem ser confundidos. Nunca vi um bugalho, mas sei que não se deve serví-lo à mesa… Esse prefácio algo caótico visa a apontar riscos na tentiva generalista de rotular (e, em seguida, regular) aplicações e sistemas como sendo de inteligência artificial (IA).

O primeiro ponto a se levar em conta é que sistemas computacionais complexos e especialistas existem aos montes, e antes não ganhavam o epíteto de IA. Algoritmos fixos, fartamente usados em matemática e em computação, raramente se qualificariam. Isso não significa que não haja riscos importantes associados a eles, como, por exemplo, a falta de transparência nos métodos, objetivos e resultados buscados por quem os desenvolveu. Quando o objeto dos algoritmos somos nós mesmos, eles criam, à nossa revelia, uma “classificação” onde somos catalogados segundo critérios que fogem à luz. Mas pedir transparência de algoritmos não é o mesmo que “regular IA”.

Num sobrevoo simples, poderíamos chamar de IA os sistemas que emulam comportamento humano, com sofisticação e dinâmica suficientes para se amoldar a novas e imprevistas situações. O apelo comercial e tecnológico da expressão “IA” faz com que uma barafunda de aplicativos, além dos que, de fato, usam IA, “pulem no mesmo vagão” para ganhar modernidade, visibilidade e poder de mercado.

Quanto à regulação desse “novo mundo”, acompanhemos as diversas iniciativas por ai. A mais recente, a da Espanha, pretende criar uma “agência de supervisão” da IA. Será o momento? Silvio Meira, pesquisador na área, tem alertado para efeitos colaterais de uma eventual regulação açodada, feita sem conhecimento sólido da essência do ente que se quer regular. Dado o valor estratégico e financeiro da IA, freios mal definidos podem manietar a posição do Brasil na área. E não esqueçamos que já há sólida proteção de direitos fundamentais em nossa Constituição. Criar leis muito específicas, tirando vantagem do momento de apreensão em que vivemos, pode ser mais danoso que útil. Formular um marco ético-conceitual parece mais proveitoso. Não misturemos alhos com bugalhos...

Criar leis muito específicas, tirando vantagem do momento de apreensão em que vivemos, pode ser mais danoso que útil para a inovação em inteligência artificial

Além dos modelos de programação, IA depende se equipamentos de processamento muito caros e difíceis de obter. Já temos centros de IA no país, e uma boa interlocução com os congêneres internacionais. Melhorar esse diálogo, buscar indicadores e medir os efeitos do uso de IA em diversos setores, parece caminho seguro, e que pode sugerir políticas e leis. Afinal, “o que não pode ser medido, não pode ser gerenciado”...

Nada disso muda o fato de que, com os impactos das tecnologias que rapidamente se expandem, o mundo já é outro. Retomo o brilhante fecho do artigo “O Inexorável”, de Eugênio Bucci, aqui no Estadão: “Olhe com ternura e compaixão para o mundo à sua volta, porque ele vai desaparecer num suspiro”.O gosto por alho e cebola é pessoal. A cebola é allium cepa, enquanto o alho é allium sativum, ou seja, são “primos”, mas com características tão diversas que é fácil separá-los. E alhos de bugalhos? Ensina a avoenga sabedoria popular que alhos e bugalhos não devem ser confundidos. Nunca vi um bugalho, mas sei que não se deve serví-lo à mesa… Esse prefácio algo caótico visa a apontar riscos na tentiva generalista de rotular (e, em seguida, regular) aplicações e sistemas como sendo de IA.

OpenAI é a startup americana que desenvolveu o ChatGPT, robô de bate-papo de inteligência artificial lançado em novembro de 2022
OpenAI é a startup americana que desenvolveu o ChatGPT, robô de bate-papo de inteligência artificial lançado em novembro de 2022 Foto: Michael Dwyer/AP Photo

O primeiro ponto a se levar em conta é que sistemas computacionais complexos e especialistas existem aos montes, e antes não ganhavam o epíteto de IA. Algoritmos fixos, fartamente usados em matemática e em computação, raramente se qualificariam. Isso não significa que não haja riscos importantes associados a eles, como, por exemplo, a falta de transparência nos métodos, objetivos e resultados buscados por quem os desenvolveu. Quando o objeto dos algoritmos somos nós mesmos, o perfil eles produzem serve para criar, à nossa revelia, uma “classificação” onde somos catalogados segundo critérios que fogem à luz. Mas pedir transparência de algoritmos não é o mesmo que “regular IA”.

Num sobrevoo simples, poderíamos chamar de IA sistemas que emulam comportamento humano, com sofisticação e dinâmica suficientes para se amoldar a novas e imprevistas situações. O apelo comercial e tecnológico da expressão “IA” faz com que uma barafunda de aplicativos, além dos que, de fato, usam IA, “pulem no mesmo vagão” para ganhar modernidade, visibilidade e poder de mercado.

Quanto à regulação desse “novo mundo”, acompanhemos as diversas iniciativas por ai. A mais recentem, a da Espanha, pretende criar uma “agência de supervisão” da IA. Será o momento? Silvio Meira, pesquisador na área, tem alertado para efeitos colaterais de uma eventual regulação açodada, feita sem conhecimento sólido da essência do ente que se quer regular. Dado o valor estratégico e financeiro da IA, freios mal definidos podem manietar a posição do Brasil na área. E não esqueçamos que já há sólida proteção de direitos fundamentais em nossa Constituição. Criar leis muito específicas, tirando vantagem do momento de apreensão em que vivemos, pode ser mais danoso que útil. Formular um marco ético-conceitual parece mais proveitoso. Não misturemos alhos com bugalhos...

Além dos modelos de programação, a IA depende de equipamentos de processamento muito caros e difíceis de obter. Já temos centros de IA no País, e uma boa interlocução com os congêneres internacionais. Melhorar esse diálogo, buscar indicadores e medir os efeitos do uso de IA em diversos setores. Parece ser o caminho seguro, e que pode sugerir políticas e leis. Afinal, “o que não pode ser medido não pode ser gerenciado”...

Nada disso muda o fato de que, com os impactos das tecnologias que rapidamente se expandem, o mundo já é outro. Retomo o brilhante fecho do artigo “O Inexorável”, de Eugênio Bucci, aqui no Estadão: “Olhe com ternura e compaixão para o mundo à sua volta, porque ele vai desaparecer num suspiro”.

* É engenheiro eletricista

 Fonte: https://www.estadao.com.br/link/demi-getschko/pedir-transparencia-de-algoritmos-nao-e-o-mesmo-que-regular-a-ia/ - Imagem da Internet