O historiador Marco Bartoli, um dos maiores especialistas na vida e obra de São Francisco e Santa Clara de Assis, esteve no Brasil em agosto para uma série de conferências para os membros da Ordem dos Frades Menores, por ocasião dos 800 anos de dois marcos da vida franciscana: a aprovação do Regra de São Francisco pelo Papa Honório III; e a realização do primeiro presépio da história, quando, no Natal de 1223, na cidade de Greccio, na Itália, São Francisco organizou uma encenação da natividade de Jesus, que, aos poucos, foi propagada em todo o mundo.
Professor associado de História Medieval na Livre Universidade de Maria Santíssima Assunta (Lumsa), em Roma, professor de História do Franciscanismo na Pontifícia Universidade Antonianum e membro do comitê científico da Sociedade Internacional de Estudos Franciscanos de Assis, Bartoli é conhecido, sobretudo, por sua biografia de Clara de Assis (1989) e pelas edições críticas de textos sobre o Santo de Assis.
Em entrevista ao O SÃO PAULO, o historiador, que também é membro da comunidade católica Sant’Egídio, cuja espiritualidade e missão se inspira em São Francisco, falou sobre aspectos da espiritualidade franciscana que ajudam a compreender como o frade de uma das primeiras ordens mendicantes revolucionou a Igreja e a sociedade com o testemunho da radicalidade do Evangelho.
O SÃO PAULO – Quando despertou o interesse do senhor pelo estudo de São Francisco e Santa Clara de Assis?
Marco Bartoli – Desde muito jovem, eu participei dos primeiros anos da comunidade de Sant’Egídio, isto é, um movimento que nasceu em 1968, logo depois do Concílio Vaticano II, cujo propósito era viver o Evangelho e criar uma amizade com os mais pobres. Então, Francisco se tornou imediatamente um modelo importante, seja pela escuta e vivência do Evangelho, seja pela amizade com os pobres. Depois, quando cheguei à universidade, em Roma, havia um grande historiador chamado Raoul Manselli (1917-1984), que estudava São Francisco. Então, pedi-lhe que eu pudesse fazer a minha tese sobre Santa Clara. Foi aí que tudo começou.
Quais são aspectos que o senhor considera essenciais para quem deseja conhecer em profundidade São Francisco?
Há muitos aspectos interessantes. Mas penso que um chama a atenção: é quando, por exemplo, Francisco disse que tudo começou para ele no encontro com os leprosos, ao afirmar: ‘Foi o Senhor que me conduziu para o meio deles’. Só que isso ele constatou apenas no fim de sua vida, quando escreveu o seu testamento. Quando era jovem, ainda não compreendia a ação de Deus. Ele disse que após ter cuidado, agir com misericórdia com esses leprosos, o que lhe parecia amargo tornou-se doce para o corpo e para a alma. Antes, havia uma simples presença no meio deles, quando fazia algo de bom, como se a misericórdia não fosse um sentimento, mas algo prático. Depois, com o tempo, tomou consciência de que era o Senhor que o conduzia. Isso nos faz pensar que, tantas vezes, nós pensamos que primeiro precisamos nos tornar bons cristãos para depois fazer o bem aos outros. Nem sempre é assim. Com Francisco, penso que foi o contrário: fazer o bem o conduziu a perceber o sentimento de Deus. Dizemos que a caridade precedeu a fé.
Qual foi o papel de Santa Clara no franciscanismo?
Antes de tudo, precisamos dizer que Clara sobreviveu 27 anos após a morte de Francisco. Anos nos quais não foi fácil manter-se fiel ao espírito original da obra de Francisco. Clara, portanto, foi a maior amiga de toda a primeira geração de frades franciscanos. É dela a origem de tantos relatos que hoje consideramos importantes para conhecermos Francisco. Por exemplo, quem contou a história do “cântico do irmão sol” foi ela, pois isso aconteceu no convento de São Damião [onde ela vivia]. Se nós conhecemos Francisco hoje é graças a Clara. Normalmente se pensa o contrário, que para conhecê-la é preciso conhecer Francisco. No entanto, historicamente, foi Clara que nos transmitiu a memória de Francisco.
Qual foi o impacto de São Francisco no contexto eclesial, social e cultural em que viveu?
A sociedade da Idade Média era cristã. Mas, como disse Tomás de Celano [frade contemporâneo de Francisco e seu primeiro biógrafo], quando fala do presépio de Greccio, Deus estava como que “dormindo” nos corações de tantas pessoas. Francisco, com aquele gesto, despertou Jesus no coração dos homens e das mulheres. Isso eu penso que seja algo incrível e muito importante: dizer que o Evangelho pode despertar Deus nas almas das pessoas. Esta é a revolução franciscana.
O senhor disse que a Comunidade Sant’Egídio se inspira no exemplo de Francisco. Pode falar um pouco sobre esse movimento?
A Comunidade Sant’Egídio nasceu como um pequeno grupo de amigos, que escolheram viver o Evangelho na amizade entre si e com os mais pobres, porque no Evangelho está escrito: “Tudo o que fizerdes a um destes meus irmãos mais pequeninos, é a mim que o fazeis” (cf. Mt 25,34-46). E isso continuamos a buscar. Aqui em São Paulo, existe um pequeno grupo que atua, por exemplo, na Paróquia São Vito Mártir [no Brás]. Lá, os membros da comunidade não apenas realizam um trabalho social, mas buscam fazer amizade com os mais pobres. A entrega de alimentos é como que a chave de entrada para permitir uma verdadeira amizade com as pessoas e fazer renascer nelas a esperança. O mesmo fazem, por exemplo, os nossos irmãos na Ucrânia, onde, apesar da guerra, continuam a apoiar as pessoas em situação de rua, os idosos abandonados e, agora, todas as pessoas que perderam suas casas e não têm para onde ir. A Comunidade Sant’Egídio busca tecer um tecido novo de fraternidade a partir de baixo.
Retomando o exemplo de Francisco nessas e em muitas ações que se ins- piraram nele, qual é a fonte de todo o legado do carisma franciscano?
Dizemos algo gerado no laço entre a oração e a caridade. Uma oração que não tem a caridade se torna uma experiência estética ou psicológica. A caridade permite que se reze por alguém concretamente. Por outro lado, uma caridade sem a oração é simplesmente solidariedade, compromisso social e pode se enfraquecer. Sem a força da oração, o compromisso social se limita aos seus aspectos políticos, ideológicos e, no fim, não leva em conta a vida concreta das pessoas. Nesse sentido, São Francisco era, antes de tudo, um homem de Deus. A primeira coisa que fez após renunciar a todos os seus bens, inclusive suas vestes, diante do bispo, foi sair da sua cidade, na mata, onde encontrou ladrões e quando esses perguntaram quem ele era, Francisco respondeu: “Sou o arauto do grande Rei”. Os ladrões compreenderam que ele era arauto de Deus. Esse é o significado da sua vida e quando escrevia para as diversas pessoas do mundo era sempre para falar o que Deus pedia a cada uma delas. Penso que essa é a força de Francisco até hoje.
Outra coisa é a oração pela paz. Sua força é muito importante porque a guerra começa no coração do homem, assim como a paz também começa no coração. Por isso, é preciso pedir a Deus que toque o coração das pessoas que fazem a guerra. Essa foi a intuição de São João Paulo II quando instituiu o Dia Mundial de Oração pela Paz, em 1986. Mas penso que hoje temos ainda mais necessidade da oração pela paz. E cada um tem a responsabilidade de rezar todos os dias pela paz.
Fonte: https://osaopaulo.org.br/mundo/marco-bartoli-despertar-deus-na-alma-das-pessoas-esta-e-a-revolucao-franciscana/
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