Por Tim Brinkhof.*
No final dos anos 90 e início dos anos 2000, os economistas chilenos Sergio de Castro e Ernesto Fontaine viajaram pelo mundo a explicar como as suas políticas económicas neoliberais ajudaram a escrever o que é frequentemente descrito como uma das maiores histórias de sucesso político da América do Sul. A história é a seguinte.
Após o início da Guerra Fria, o governo dos EUA facilitou uma parceria entre a Universidade de Chicago e a Pontificia Universidad Católica de Chile, em Santiago. Ao expor estudantes como Fontaine e De Castro à visão do mundo favorável ao mercado do famoso corpo docente de Chicago – incluindo Milton Friedman e Arnold Harberger – Washington esperava conduzir o Chile do comunismo para o capitalismo.
Esta parceria surgiu num momento oportuno para ambas as partes. Enquanto a primeira geração de "Chicago Boys" – como ficaram conhecidos os chilenos que visitaram o Hyde Park – adaptava o currículo da Católica ao modelo americano, a economia chilena estava a desmoronar-se.
Um cocktail de controlo de preços, nacionalizações e impressão de moeda servido pelo presidente socialista Salvador Allende resultou numa queda de 35% dos salários e numa taxa de inflação de 700%, números que forçaram o General Augusto Pinochet a dar um inesperado, mas bem sucedido, golpe de Estado.
Recrutados pela recém-formada junta militar, os Chicago Boys foram incumbidos de desfazer os danos causados por Allende. Aplicando o que tinham aprendido no estrangeiro, liberalizaram os preços e as taxas de juro, reprivatizaram as empresas públicas, desregulamentaram o sistema bancário e reduziram as tarifas de importação.
Os resultados, dizem eles, falam por si. Apesar dos contratempos, o Chile saiu da experiência como a nação mais rica de toda a América do Sul. Verdadeiro “tigre latino-americano”, tinha o PIB per capita mais elevado e a taxa de pobreza mais baixa, para além de melhores indicadores de saúde, educação e esperança de vida.
As acusações de que o crescimento económico do Chile se baseia no “pecado original”, no apoio a uma ditadura que executou cerca de 2.279 pessoas em apenas dezassete anos, fuzilou líderes da oposição e atirou os seus cadáveres para o Oceano Pacífico, não reconheceriam que as reformas profundas e drásticas dos Chicago Boys não poderiam ter sido implementadas numa sociedade livre. Independentemente da sua origem, o seu sistema neoliberal revelou-se tão eficaz que os estadistas democraticamente eleitos que sucederam a Pinochet não só o mantiveram, como o alargaram.
“Os nossos Chicago Boys”, disse George Shultz, ex-secretário de Estado e reitor da Booth School of Business da UChicago, numa entrevista, em 2020, “produziram a única economia realmente boa na América Latina na década de 1980; foi sensacional”.
Esta história de sucesso, que se arrastava há décadas, sofreu uma reviravolta inesperada, em 2019, quando manifestações violentas desencadeadas pelo aumento de 30 pesos (0,40 dólares) na tarifa do metro de Santiago exigiram o fim dos abusos das empresas, do ensino com fins lucrativos e das pensões baixas, problemas de que os manifestantes, através de slogans e graffitis, atribuíam ao neoliberalismo e aos Chicago Boys.
Os protestos em massa surpreenderam muitos políticos e homens de negócios, que se interrogavam sobre a possibilidade de uma agitação civil num país que, segundo as medidas tradicionais, tinha registado um crescimento económico tão extraordinário durante um período de tempo tão longo. Houve rumores de que os agitadores teriam sido enviados por Cuba e pela Venezuela.
Sebastián Edwards, um economista chileno que visitou Santiago durante as manifestações de 2019, procurou respostas noutros lugares. O seu livro “The Chile Project: The Story of the Chicago Boys and the Downfall of Neoliberalism” argumenta que os ricos do Chile ignoraram durante muito tempo os avisos de que a sua prosperidade foi construída não apenas sobre o pecado, mas sobre “um barril de pólvora social”.
Edwards estudou na Universidade do Chile, que rejeitou a associação que a UChicago estendera à Católica. Ativista estudantil filiado no Partido Socialista do Chile de Allende, emigrou para os Estados Unidos após a subida ao poder de Pinochet. Embora tenha feito amizade com Harberger na UChicago, nunca foi considerado um membro dos Chicago Boys.
The Chile Project acompanha os Chicago Boys desde a sua formação em Hyde Park até ao seu emprego no governo chileno. Os ensinamentos de Harberger, Friedman, Gary Becker e Theodore Schultz incutiram-lhes uma dedicação a economias abertas e largamente desreguladas. Em vez de reduzir a desigualdade, foram ensinados a aliviar a pobreza extrema com programas sociais. A primeira, segundo o Chicago Boy Rolf Lüders, diretor do conglomerado Grupo Banco Hipotecário do Chile, era simplesmente “um problema de inveja”.
Os Chicago Boys entraram na esfera política quando De Castro, o seu membro mais antigo, foi nomeado conselheiro do Ministro da Economia Rodolfo Gonzalez após o golpe de Pinochet, em 1973. De Castro apresentou um plano de desenvolvimento elaborado por ele e pelos seus colegas. Apelidado de El Ladrillo devido à sua dimensão, a sua linguagem era a da liberalização do comércio e do planeamento descentralizado.
Em retrospetiva, Edwards não se impressiona com o desenvolvimento económico supostamente sem precedentes que teve lugar durante a ditadura, uma época em que os benefícios do aumento do PIB foram atenuados pelo desemprego e pela inflação, e a diminuição da pobreza foi compensada pelo aumento da igualdade. Uma grande parte de “The Chile Project” é dedicada a reconhecer os erros e os sacrifícios cometidos durante este período, que são frequentemente ignorados.
Por exemplo, em 1975, a inflação persistente – 350% ao ano – obrigou Pinochet a aceitar o conselho de Milton Friedman de aplicar um “tratamento de choque” que reestabilizaria os preços à custa do aumento (temporário) do desemprego. A retoma, que Milton pensava inicialmente que duraria apenas alguns meses, prolongou-se até meados da década de 1980.
Na mesma altura, o governo chileno permitiu que as taxas de juro, que Allende tinha mantido baixas, subissem, levando os bancos a contrair empréstimos internacionais. Enquanto os Chicago Boys pensavam que os défices resultantes revitalizariam a economia, muitas instituições financeiras – recentemente reprivatizadas – tiveram de ser resgatadas às custas dos contribuintes.
Longe de salvar o Chile, a visão neoliberal do mundo dos Chicago Boys teve de ser modificada para evitar a crise financeira. Enquanto os “dogmáticos” da geração anterior, como De Castro, insistiam numa taxa de câmbio fixa, os pragmáticos ou “flexíveis” da geração mais jovem, como José Piñera e Juan Andrés Fontaine, optaram por taxas flutuantes que, apesar de colidirem com a sua formação na Universidade de Chicago, acabaram por ajudar a economia chilena a retomar o seu rumo.
Em 1988, após 56% dos chilenos terem votado contra a continuação do regime de Pinochet, realizaram-se eleições presidenciais e parlamentares. Nos capítulos sobre a transição da ditadura para a democracia, Edwards desafia a noção de que os líderes subsequentes abraçaram incondicionalmente o sistema neoliberal que herdaram.
Alguns elementos deste sistema foram mantidos. Em resposta à crise financeira russa de 1998, Eduardo Aninat, ministro das Finanças do democrata-cristão Eduardo Frei Ruiz-Tagle, abriu o país aos movimentos internacionais de capitais, remetendo-o para “um mundo do tipo Milton Friedman”, em que o valor da moeda era determinado pela oferta e pela procura, sem intervenção governamental.
Outros elementos foram descartados. Após o derrube de Pinochet, o Presidente Patricio Aylwin alterou o Plano Laboral, uma lei laboral de 1979, redigida pelo Chicago Boy José Piñera, que regulava e reduzia consideravelmente o poder histórico dos sindicatos, impedindo-os de negociar a nível industrial e nacional, ao mesmo tempo que permitia às empresas impor lockouts e despedir trabalhadores.
Edwards identifica uma série de fontes para a agitação civil que atingiu um ponto de ebulição, em 2019, uma das quais é o Ensino Superior. Descentralizadas e reprivatizadas pelos Chicago Boys, as universidades chilenas deixaram muitos licenciados desempregados e endividados. “Dezenas de jovens, homens e mulheres”, escreve Edwards, sentiram-se enganados e começaram a questionar um sistema que lhes tinha prometido, a eles e às suas famílias, que se trabalhassem arduamente e se se educassem – ou seja, se acumulassem “capital humano” – poderiam progredir e ascender decisivamente às confortáveis fileiras das classes profissionais e de gestão.
Outra fonte de inquietação é a falta de mobilidade ascendente no Chile, especialmente entre as minorias raciais. Edwards refere como Harberger, durante uma visita, em 1955, a um clube de cavalheiros chileno, foi recebido com risos de incredulidade quando lhe perguntou quantos dos seus membros eram inquilinos, trabalhadores agrícolas ao serviço dos proprietários das terras. Quando Harberger fez a mesma pergunta após a viragem do século, recebeu a mesma resposta.
As famílias chilenas que conseguiam escapar à pobreza viviam no medo constante de voltar a cair nela. A incipiente classe média chilena, situada um pouco acima do limiar da pobreza, era tão vasta quanto frágil. Sem direito a programas sociais específicos, o mais pequeno infortúnio – doença ou acidente – podia anular os progressos duramente conquistados.
Todos estes medos, inseguranças e frustrações transformaram-se naquilo a que Edwards e outros comentadores chamam malestar. O mal-estar chileno, que está a germinar pelo menos desde o início dos anos 2000, não tem apenas a ver com a distribuição de rendimentos, mas também com as emoções que lhe estão associadas. Tem a ver com a relação entre trabalhadores e elites, com a vergonha e a humilhação que o capitalismo associa à pobreza. Por esta razão, o conceito de dignidade desempenhou um papel proeminente durante as manifestações de 2019.
As manifestações foram tão persistentes que o governo chileno decidiu alterar profundamente o contrato social do país. Foi convocada uma Convenção para redigir uma nova Constituição que substituísse a que tinha sido criada durante o regime de Pinochet. Atrasada até 2021 devido à pandemia de coronavírus, a Convenção – liderada pelo atual presidente chileno, Gabriel Boric, e composta em grande parte por pessoas de fora da política – produziu um projeto que, se aprovado, teria substituído a infraestrutura neoliberal defendida pelos Chicago Boys por uma ordem social-democrata como as encontradas na Escandinávia e no noroeste da Europa.
Embora este documento tenha sido rejeitado, o apoio necessário para o inscrever na ordem de trabalhos continua a ser indicativo da profunda oposição ao “milagre neoliberal” dos Chicago Boys no Chile.
Agora, uma nova Convenção começou a trabalhar num segundo projeto. Esta convenção, dominada por políticos tradicionais de direita e de extrema-direita, orientada por constitucionalistas conservadores, economistas, advogados e outros tecnocratas, está destinada a produzir uma carta muito menos progressista e certamente muito mais regressiva para o país.
Embora haja um apoio maciço para virar a página da era Pinochet, a esquerda chilena não tem atualmente a unidade e a coordenação necessárias para se opor à direita tão eficazmente como a direita se lhe opôs.
*Tim Brinkhof é um jornalista holandês. Estudou Literatura Comparada na Universidade de Nova Iorque. Escreve para a Vulture, JSTOR Daily e New Lines.
Publicado originalmente na Jacobin (link is external) e republicado na JacobinLat (link is external). Traduzido por António José André para o Esquerda.net.
Fonte: https://www.esquerda.net/artigo/como-os-chicago-boys-quebraram-o-chile/87496 03/09/2023
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