Foto: Nelson Jr./SCO/STF - 09.11.2022Lula, então presidente eleito, entre os ministros (da esq. para a dir.) Cármen Lúcia, Gilmar Mendes e Rosa Weber, na sede do Supremo Tribunal Federal
Lula defende que posicionamentos individuais de ministros sejam sigilosos. Professores de direito falam ao ‘Nexo’ sobre o procedimento brasileiro e os diferentes sistemas ao redor do mundo
Na visão de Luiz Inácio Lula da Silva, uma solução para a “animosidade” de setores da sociedade em relação ao Supremo seria o tribunal proferir decisões colegiadas sem que os posicionamentos individuais dos ministros pudessem ser conhecidos. O presidente não falou em proposta efetiva para promover a mudança, mas lançou o assunto no debate público durante sua live semanal nesta terça-feira (5).
Estimulada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, a agressividade contra integrantes da corte tem exigido das autoridades medidas extras de segurança. Em outros campos sociais, porém, as críticas a ministros — como as que se multiplicaram contra os votos de Cristiano Zanin em seu primeiro mês no tribunal — têm sido feitas no âmbito de um debate democrático.
“Se pudesse dar um conselho, a sociedade não tem que saber como vota um ministro da Suprema Corte. [...] Votou a maioria, não precisa ninguém saber. Porque aí cada um que perde fica com raiva, cada um que ganha fica feliz. [...] Do jeito que vai, daqui a pouco um ministro da Suprema Corte não pode mais sair na rua”
Neste texto, o Nexo traz o que professores de direito especialistas no tema da deliberação em tribunais constitucionais afirmam sobre o modelo adotado pelo Supremo, as diferenças em relação a tribunais estrangeiros e as formas de desgaste público dos ministros.
O Brasil no mundo
Os modelos de deliberação dos tribunais variam ao redor do mundo. Professor titular de direito constitucional da USP (Universidade de São Paulo), Virgílio Afonso da Silva afirmou ao Nexo que “em alguns países não há nem placar, só uma decisão única; em outros, há um placar, mas sem nomes; em outros, por fim, há a assinatura de quem concorda com a tese vencedora e os nomes de quem discordou, com ou sem a publicação de uma opinião minoritária”. “E às vezes o tribunal decide como entende melhor em cada contexto”, disse ele.
Como regra geral no Supremo brasileiro, as decisões são fruto de um placar, mas cada um dos 11 ministros redige os fundamentos de seu voto. As sessões de julgamento são abertas ao público e, desde a criação da TV Justiça, em 2002, o que acontece no plenário e nas turmas (grupos de cinco ministros) é televisionado.
Modelo equivalente ao do Brasil, em que se dá grande peso às decisões de cada ministro, é adotado no México e no Reino Unido, mas ainda é minoritário no mundo, segundo Thomas Bustamante, professor da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).
Já na Itália, de acordo com o professor, o tribunal constitucional profere decisões colegiadas sem sequer informar o placar da votação dentro do plenário. A sociedade fica sem conhecer o que pensa cada magistrado.
“Mas a grande maioria dos sistemas jurídicos adota sistemas intermediários”, entre os modelos brasileiro e italiano, disse Bustamante ao Nexo.
Em parte dos países europeus e nos Estados Unidos, ele afirmou, os juízes que integram a corrente majoritária do plenário assinam todos um mesmo voto, cuja redação é negociada por eles. Os da corrente minoritária elaboram outro voto. Ressalvas a esses posicionamentos podem ser feitas em decisões apartadas.
Ou seja, na maioria dos países, segundo Bustamante, a sociedade fica sabendo se um juiz foi a favor ou contra determinada questão, mas o voto vencedor é redigido em conjunto, de forma que as fundamentações apresentadas ao final da deliberação são consensuais.
Uma vantagem desse modelo, na visão de Bustamante, é que o voto coletivo exige maior objetividade dos juízes, que assim ficam mais restritos a considerações jurídicas, e não políticas.
“Nosso modelo tem decisões muito longas, cheias de retórica que às vezes não é juridicamente fundamentada: os ministros por vezes citam filósofos, poetas, e fazem um argumento para produzir doutrina [criação de teses acadêmicas], e não para decidir casos”, disse Bustamante.
A sugestão de Lula
Lula defendeu um modelo de deliberação não apenas em conjunto, mas no qual não se sabe o posicionamento de cada juiz, como ocorre na Itália.
Na visão de Afonso da Silva, a sugestão “foi feita por motivos equivocados (proteger um indicado seu), mas ela é mesmo assim pertinente”.
“Ao contrário do que muitos têm dito, não há nada de antidemocrático na proposta: boa parte dos supremos tribunais e tribunais constitucionais de países democráticos funciona exatamente assim, sem deliberação pública”, afirmou Afonso da Silva.
Ele ressaltou, porém, que a diminuição da “animosidade” de setores da sociedade em relação aos ministros, como disse Lula, não deve ser o objetivo mais relevante para uma mudança no processo decisório. “Ela pode ser um efeito colateral bem-vindo, mas não é o objetivo; o objetivo deve ser fortalecer a instituição e melhorar a qualidade da deliberação”, disse Afonso da Silva.
Já Bustamante, embora não veja “tanto problema, do ponto de vista da legitimidade, num modelo intermediário”, considera que a proposta do presidente foi “péssima”, porque “retira a responsabilidade do juiz”, num modelo “obscuro”.
Essa ausência de responsabilização individual, segundo ele, compromete a legitimidade da corte, que, não sendo eleita como o Congresso, justifica seu poder para tratar de questões políticas a partir do fato de que suas decisões são justificadas e podem ser escrutinadas pela sociedade.
“Sempre que há uma questão política controvertida sendo decidida por uma corte constitucional, e não por um parlamento eleito, se tem uma perda em termos de participação democrática — perda essa que deve ser compensada por uma análise mais reflexiva, mais profunda, mais pública”, afirmou Bustamante.
Para ele, “admitir um modelo intermediário, talvez para diminuir um pouco essa pressão sobre o indivíduo, talvez fosse justificável”. “Agora, da maneira como Lula falou, achei que foi um pouco irresponsável e que revela um desconhecimento sobre como a corte constitucional funciona, sobre que tipos de controle existem sobre o julgamento dela”, disse o professor da UFMG.
Ele destacou que o modelo brasileiro “tem levado a um ganho em termos de publicidade das decisões e de um maior controle social sobre a corte”, uma vez que permite à sociedade cobrar coerência nos posicionamentos de cada ministro.
“Zanin tem que aguentar o rojão em relação ao que ele decide. Tem que prestar contas à sociedade das decisões que toma. Tem que decidir tecnicamente, e as opções morais e avaliativas que julga, nos casos de indeterminação da lei, têm que ser claras, porque a única maneira que um juiz tem de justificar suas decisões é demonstrar coerência entre suas atitudes”
Vale pensar em mudanças?
Afonso da Silva afirma que tem defendido uma mudança no modelo de deliberação do Supremo há quase 20 anos. Ele chamou atenção para o televisionamento dos julgamentos. “Não há deliberação sincera feita ao vivo diante das câmeras”, afirmou.
Segundo ele, “transparência, no processo decisório de um tribunal, é transparência dos argumentos, não câmera de TV na sala de julgamento”.
“Quem quer fortalecer a instituição e uma deliberação judicial sólida, não midiática, prefere deliberação reservada e uma boa decisão coletiva final, assinada por todos os integrantes. Se houver divergência, é possível também publicá-las”
Para Bustamante, mais do que os processos de deliberação colegiada, “os problemas [de legitimidade] do Supremo Tribunal Federal brasileiro refletem problemas mais amplos da nossa cultura jurídica”. Ele critica, por exemplo, métodos argumentativos como aquele que costuma ser adotado por Luís Roberto Barroso. Segundo o professor da UFMG, o ministro “apela muito a sentimentos sociais” quando fundamenta suas decisões.
Isso desgasta a legitimidade do Supremo, ao confundir a lógica de atuação da corte, que tem como função a proteção da Constituição — por vezes contra a vontade da maioria da população —, com a lógica de atuação do Congresso, que representa os sentimentos sociais majoritários, afirmou Bustamante.
“Perde-se a racionalidade própria do direito”, disse o professor. Nesse sentido, segundo ele, fundamentações do tipo “podem descambar para um populismo judicial, como vimos na época da Lava Jato”.
Presença excessiva dos ministros na imprensa e uma agenda “com um monte de palestras e um monte de discursos fora do Judiciário” podem agravar um direcionamento populista do tribunal, afirmou Bustamante.
Como alterar o modelo
A Constituição determina que “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade”, com algumas exceções.
Por conta desse dispositivo, professores de direito constitucional defenderam após a fala de Lula que a redação atual da Constituição não permite uma alteração do modelo de deliberação do Supremo nos moldes propostos pelo presidente. Uma emenda à Constituição seria então necessária para que a mudança acontecesse.
De acordo com os dois professores ouvidos pelo Nexo, no entanto, as regras constitucionais exigem publicidade e fundamentação, mas não especificam de que forma isso deve ocorrer. Para eles, portanto, o modelo de deliberação brasileiro pode mudar sem que a Constituição seja violada, bastando uma alteração no regimento do tribunal.
Ministro da Justiça e ex-juiz federal, Flávio Dino disse nesta terça (5) que o debate sobre sigilo no Supremo “é válido”, ainda que não seja “para amanhã”, após ser perguntado por jornalistas sobre a fala de Lula.
Fonte: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2023/09/05/Qual-o-melhor-modelo-para-o-Supremo-apresentar-seus-votos
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