16 Set 2023
|“As raízes da cultura estão naquelas obras chamadas clássicas,
obras cuja mensagem se não esgotou e permanecem fontes vivas do progresso humano.”
(epígrafe das edições da Fundação Calouste Gulbenkian)
Camilo Pessanha “é o fruto mais valioso do simbolismo português”
(Jacinto Prado Coelho)
A Noir, E Blanc, I Rouge, U Vert, O Bleu
(A Preto, E Branco, I Vermelho, U Verde, O Azul)
Assim começa o célebre poema de Arthur Rimbaud (1854-1891) que se declarava voyant (vidente, visionário), pois buscava e descrevia o desconhecido para lá das percepções humanas.
A palavra torna-se um símbolo, transfigurando-se o seu sentido. No caso do verso referido, associa-se uma vogal a uma cor.
É a busca do irreal, do imaginário, do transcendente, através de um olhar interior.
La musique avant toute chose (a música antes de tudo)
É também assim que o poeta Paul Verlaine (1844-1896),
personalidade dramática e companheiro desafortunado de Rimbaud, define
na sua Arte Poética esta tendência na poesia. A sua obra é uma grande referência na poética de Camilo Pessanha.
“Clepsidra” ou “a ténue música da alma”
Licenciado em Direito, Camilo Pessanha (1867-1926) parte para Macau,
onde é professor do liceu e colega do escritor Wenceslau de Morais “que
trocou a sua alma de ocidental pela alma japonesa”.
Pessanha também ficou fascinado com o Oriente, neste caso com a China. Faleceu em Macau.
Influenciado pelos poetas simbolistas franceses já referidos e pelo filósofo alemão Schopenhauer, considera que o mundo é ilusão e dor.
A vida do homem é semelhante ao curso de um rio simbolizando a passagem inexorável do tempo. Este tema está patente em Ricardo Reis, um dos heterónimos de Pessoa, em particular no poema: “Vem sentar-te, comigo, Lídia…” Na verdade, Fernando Pessoa considera Pessanha um dos melhores poetas da nossa literatura. Ora esta imagem é também frequente nos poemas de Camilo Pessanha, reunidos com o título de Clepsidra (ed. Relógio d’Água).
Outra imagem relacionada com o fluir do tempo e da água, é o rosto ou as mãos de Ofélia – arquétipo feminino, transparecendo o cadáver no espelho das águas que correm.
8. «Paisagens de Inverno», soneto II.
Há diversas referências à estação do ano, através de frases
exclamativas, interrogativas e sincopadas que se repetem, numa entoação
musical melancólica e perturbadora.
Álgido inverno! Oblíquo o sol, gelado… / o sol, e as águas límpidas do rio. // Águas claras do rio! Águas do rio! / Fugindo sob o meu olhar cansado, / Para onde me levais, meus vãos cuidados? // Aonde vais, meu coração vazio? // Ficai, cabelos dela, flutuando, / E debaixo das águas fugidias, / Os seus olhos abertos cismando… // Onde ides a correr, melancolias? / – E, refractadas, longamente ondeando, / As suas mãos translúcidas e frias….
Um estado de espírito invocando a saudade, o absurdo da vida correndo para o mistério da morte:
… olhos abertos… mãos translúcidas e frias… Para onde?… Aonde vais? … Onde ides a correr, melancolias…?.
Esta ideia de uma duração lenta, contínua, ao ritmo das águas – é intensificada pelos sons nasais, presentes nas formas verbais no gerúndio (ondeando, cismando, flutuando) e o advérbio de modo longamente ondeando.
31. «Violoncelo»
Neste poema, o som grave, magoado do violoncelo «chora», através da frase imperativa:
Chorai arcadas / Do violoncelo!
Todo o poema fortemente rimático é uma simbiose musical e sinestésica do som plangente do violoncelo em consonância com as águas tumultuosas do rio e as arcadas das pontes que o atravessam, numa série de associações trágicas de naufrágios, barcos despedaçados, acompanhando as cerdas do arco do violoncelo que se partem, juntamente com as arcadas e sonhos perturbadores – …convulsionadas, / Pontes aladas / De pesadelo…
… Por baixo passam, / Se despedaçam, / No rio, os barcos. // Fundas, soluçam / Caudais de choro… / Que ruínas, (ouçam) / … «Que sorvedouro!… //
Num crescendo trágico, surge a morte, os naufrágios associados ao frio, ao gelo:
Urnas quebradas! / Blocos de gelo… / – Chorai arcadas, / Despedaçadas, / Do violoncelo.
18. (sem título)
A relação mãe / filho foi violada, quebrada. Determinados símbolos,
representando essa comunhão inextinguível dos dois seres, foram
destruídos:
… meus lençóis de linho… meus tão castos lençóis – rasgados; as flores do jardim, …altos girassóis – arrancados e lançados no caminho; a mesa do lar, quebrada: … a mesa de eu cear – tábua tosca de pinho; assim como a lenha – o fogo, unidade e aconchego do lar – espalhada. Finalmente, o arquétipo do vinho, poderoso sinal do sangue que une o filho à mãe, entornado.
Referência à condição do poeta ser «filho natural», repudiada pela sociedade?
Ó minha pobre mãe!… não te ergas mais na cova. / Olha a noite, olha o vento. Em ruína a casa nova… / Dos meus ossos o lume a extinguir-se breve. // Não venhas mais ao lar… / Alma da minha mãe… Não andes mais à neve, // De noite a mendigar às portas dos casais.
A mãe, já morta, continua presente e não tem descanso. Daí as frases negativas, enfáticas, no modo imperativo. Implorativa, a imagem da mãe perdura para além da morte comungando, o drama sem fim, com o filho que também espera em breve morrer:
Dos meus ossos o lume a extinguir-se em breve.
Finalmente, regresso ao início de «Clepsidra». Nada foi posto ao acaso nesta obra original, escrita simultaneamente pelo intelecto e por uma sensibilidade apurada. O sujeito poético define-se e essa identidade é semelhante à da sua Pátria – um desterrado voluntário, como sucede com muitos portugueses:
«II. Inscrição»
1. Eu vi a luz em um país perdido. / A minha alma é lânguida e
inerme. / Oh! Quem pudesse deslizar sem ruído! / No chão sumir-se, como
faz um verme…
Caracteriza-se a «alma» portuguesa, a passividade do carácter de um povo. E desejar ser um verme, algo obscuro, próximo da terra, é querer a morte e a Luz do infinito.
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Comentário fundamentado, em geral, nas seguintes obras:
Dicionário de Literatura, dirigido pelo Professor Jacinto do Prado Coelho, e
Clepsidra, Camilo Pessanha.
Fonte: https://setemargens.com/pessanha-o-fruto-mais-valioso-do-simbolismo-portugues/?utm_term=FEEDBLOCK%3Ahttps%3A%2F%2Fsetemargens.com%2Fefeed%3Degoi_rssfeed_xKnmS3HTbxoNOuINFEEDITEMS%3Acount%3D1FEEDITEM%3ATITLEENDFEEDITEMSENDFEEDBLOCK&utm_campaign=Sete+Margens&utm_source=e-goi&utm_medium=email
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