sexta-feira, 1 de setembro de 2023

A solidão escolhida

Por  Bruno Nogueira*

 

Juan Cavia

 

O perigo da solidão é ficarmos reféns dela, como se de repente as pessoas que nos rodeiam fossem gladiadores que nos querem tirar o que demorámos tanto tempo a encontrar. Mas é preciso saber ir lá e voltar.

GOSTAVA DE ME CONHECER melhor. Não sei se terei tempo, coragem, força de vontade, mas tenho pena de tudo o que não for capaz de descobrir.

É uma viagem tumultuosa, mas acredito que seja também uma imunidade que se vai ganhando contra as adversidades dos dias, uma tentativa ambiciosa de saber com o que contar, nos dias em que tudo o resto parece falhar.

É cada vez mais difícil encontrar um espaço seguro onde uma pessoa possa dizer que gosta de estar sozinha, sem surgir logo quem receba isso como uma afronta. Como se a solidão fosse amarga, e não pudesse ser antes um trunfo que se faz valer por si só. Mas quando estamos a dizer que gostamos de estar sozinhos, não estamos a falar dos outros, estamos a falar de nós; e é aí que começa o desencontro.

Há uma diferença substancial entre dizermos que gostamos de estar sozinhos, e dizermos que não gostamos de estar com pessoas. Gostar de estar sozinho é saber que aquilo que fica quando toda a gente se vai embora é um sítio seguro e tranquilo, onde nos sentimos bem. Por outro lado, não gostar de estar com pessoas implica que depois de toda a gente ir embora não se goste necessariamente da pessoa com quem ficamos. Uma ideia debruça-se sobre os outros, enquanto a outra se debruça sobre nós.

A solidão tem má reputação, mas não é por culpa dela, coitada; está destinada a ser uma coisa taciturna para quem ainda não descobriu a deslumbrante fortaleza que lá há.

Ela - a solidão - não se incomoda com rótulos, e faz-se sedutora para quem lhe souber dar a volta. Quem não sabe o que fazer com a solidão tem um prejuízo terrível, porque deposita a esperança de encontrar nos outros o que não encontra em si, e não há território mais solitário do que esse.

Se partilharmos em voz alta que gostamos da solidão assustamos quem nos ouve, como se tivéssemos acabado de confessar uma doença prolongada que nos vai engolir. Mas o que preocupa essas pessoas é o medo de não saberem o que fazer com um insulamento que lhes parece tão assustador. São contas de cabeça de quem julga que a solidão escolhida é feita da mesma matéria que a solidão imposta; há uma diferença enorme entre as duas, como em tudo o que separa a escolha da imposição.
Gostar de estar sozinho não implica que não se goste de estar com pessoas; estar sozinho pode até ser a melhor maneira de dar valor a quem nos rodeia. É fazer com que cada vez que se investe na companhia de alguém, essa pessoa saiba que era mesmo com ela que queríamos estar. É um gesto de amor para com o outro, que resulta de um profundo bem-estar connosco. Quando estamos sozinhos não temos por onde fugir, temos de resolver os vários estados de espírito que nos vão aparecendo, sem contar com os outros para nos salvar de nós. Pode trazer muitos fantasmas, mas fugir deles pode trazer ainda mais. Pode - e deve - ser turbulento, como se fôssemos um clima incerto que vamos descobrindo e aprendendo a aceitar como sendo nosso. Querer uma solidão sempre feliz é pedir que ela faça mais do que lhe compete, e se lhe pedem isso ela mostra-se bruta.

Sempre que encontramos alguém apaziguado com a sua solidão, encontramos alguém que descobriu um tesouro silencioso. Descobriu que tem dentro dele inúmeras hipóteses, e já sabe o suficiente para não estar disposto a renunciar a nenhuma delas.

O perigo da solidão é ficarmos reféns dela, como se de repente as pessoas que nos rodeiam fossem gladiadores que nos querem tirar o que demorámos tanto tempo a encontrar. Mas é preciso saber ir lá e voltar, para acreditar que depois de lhe sabermos os contornos, ela já não nos foge.

Esta semana andava a ver entrevistas de uma escritora que gosto, a Alexandra Fuller. É uma escritora britânica/zimbabuense que escreve sobretudo sobre a sua vida - e da sua família - em África. Já viu muito, já sofreu muito, e já descobriu muito sobre ela e sobre os outros. A certa altura, no fim da entrevista, o jornalista pergunta-lhe: "se houvesse uma grande verdade que nos quisesse deixar, qual seria?", e ela, ao fim de algum tempo a pensar na resposta que melhor preencheria aquele espaço tão exigente que o interlocutor ali tinha criado, respondeu o seguinte: "O meu pai um dia levou-me até ao rio Zambeze, e da quinta dele - onde ele irá morrer um dia - consegue ver o Zimbabwe, onde estão enterrados 3 dos meus irmãos, e onde ele lutou numa guerra injusta durante 10 anos. E então ele disse-me: ‘O caminho acertado é aquele que se faz sozinho. E se eu te dissesse que há pessoas que morrem nessa viagem, e que não voltam dela, que vai ser solitária, e que te vão dizer que és louca, talvez não tivesses coragem de fazê-la. Portanto, não vou dizer-te essas coisas’". 

*Humorista. 

 Fonte: https://www.sabado.pt/opiniao/cronistas/bruno-nogueira/detalhe/a-solidao-escolhida

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