quarta-feira, 31 de maio de 2023

Formas de se viver o cristianismo hoje

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Os grandes analistas da história nos confirmaram que já há um século vivemos uma fase nova do espírito de nossa cultura. É a fase da secularização. Com isso se quer significar que o eixo estruturador da sociedade moderna não reside mais no mundo religioso, mas na autonomia das realidades terrestres, no mundo secular. Daí falar-se em secularização. Isso não significa negar Deus, mas apenas que Ele não representa mais o fator de coesão social.Em seu lugar entra a razão, os direitos humanos, o processo de desenvolvimento científico que se traduz numa operação técnica, produtora de bens materiais e o contrato social.

Não cabe aqui discutir os avatares desse processo. Cabe assinalar as transformações que trouxe para o campo religioso, nomeadamente, pelo cristianismo de versão romano-católica.

Havia um descompasso enorme entre os valores da modernidade secularizada (democracia, direitos humanos,liberdade de consciência, diálogo entre as igrejas e religiões etc) e o catolicismo tradicional. Essa desconexão foi superada pelo Concílio Vaticano II (1962-1965) no  qual a Igreja hierárquica procurou acertar o passo que veio sob o nome de aggiornamento, pôr em dia o caminhar da Igreja com o caminhar do mundo moderno.

O transfundo de todos os textos conciliares era o mundo desenvolvido moderno. Na América Latina, nas várias conferências episcopais, se procurou assumir as visões do Vaticano II no contexto do mundo subdesenvolvido, coisa praticamente ausente nos textos conciliares. Daí nasceu uma leitura libertadora, pois se entendeu o subdesenvolvimento como desenvolvimento da pobreza e da miséria, portanto, da opressão que demanda libertação. Aqui se encontram as raízes da Teologia da Libertação que tem por base a prática das Igrejas, empenhadas na superação da pobreza e da miséria, a partir dos valores da prática de Jesus e dos profetas.

O processo de secularização trouxe à luz algumas formas de se viver a mensagem cristã no continente latino-americano e brasileiro.

A primeira é o cristianismo oficial e tradicional. É aquele trazido no contexto da colonização e significou um transplante do cristianismo europeu, vigente até os dias de hoje: com sua doutrina, seus dogmas,seus sacramentos, ritos, santos e santas e festas. A referência maior é a missa e a adesão irrestrita aos ensinamentos oficiais do magistério. Dos mais de 70% de católicos, são apenas 5% que frequentam as missa.

Há uma forma que chamaríamos de um cristianismo cultural, que desde a colonização impregnou a sociedade. As pessoas respiram o cristianismo cujo eixo central são os valores humanísticos de respeito aos direitos humanos,de cuidado dos pobres, mesmo sob a forma de assistencialismo e paternalismo, a aceitação da democracia e a convivência pacífica com outras igrejas ou caminhos espirituais. Não negam o valor da Igreja mas ela não é uma referência existencial. Seja porque não renovou substancialmente sua estrutura clerical-hierárquica, com parca participação dos leigos nas decisões pastorais: sua linguagem doutrinária e seus símbolos herdados do passado.

Há um outro tipo de cristianismo de compromisso. Trata-se de pessoas que, ligadas à Igreja hierárquica, assumem a sua fé em suas expressões sociais e políticas. A referência maior não é a Igreja institucional mas a categoria do Jesus histórico, do Reino de Deus. O Reino não é um espaço físico nem se assemelha aos reis deste mundo. É uma metáfora para uma revolução absoluta que implica novas relações individuais – a conversão -sociais- relação de fraternidade, ecológicas -guardar e cuidar do Jardim do Éden, vale dizer da Terra viva e por fim, uma nova relação religiosa – uma total abertura a Deus, tido como Abba-paizinho querido, cheio de amor e misericórdia. Estes cristãos criaram seus movimentos como a JUC, a JEC, o Movimento Fé e Política, a Economia de Francisco e Clara e outros.O Reino se realiza em todos lugares onde se vivem os valores presentes na tradição de Jesus. O Espírito Santo chega antes do missionário.

Há uma outra forma de se viver o Cristianismo, sem se referir conscientemente a ele, um cristianismo secularizado. Trata-se de pessoas que podem se qualificar como  agnósticas ou como ateias ou simplesmente sem se auto-definir. Mas seguem um caminho ético de centralidade ao amor, de fidelidade à verdade, de respeito a todas as pessoas sem discriminação, preocupação para com os empobrecidos e de cuidado com o Criado e outros valores humanísticos.

Ora, estes valores são os conteúdos da pregação do Jesus histórico. Como se lê nos quatro evangelhos, ele sempre esteve ao lado da vida e daqueles que menos vida têm, curando-os, compadecendo-se deles, tomando partido das mulheres, contra a tradição extremamente patriarcal da época, e convocando para uma abertura irrestrita a todos, chegando a afirmar que “quem vem a mim eu não mandarei embora”(Jo 6,37). No evangelho de São Mateus (25,41-46) que podemos denominar como o evangelho dos ateus se diz que quem “atendeu a um faminto ou sedento, peregrino ou enfermo ou na cadeia….foi a mim que o fizeste”(v.45).

Portando, para viver o cristianismo é preciso viver o amor, ter compaixão e sentir a dor outro. Quem não vive estes valores, por mais piedoso que seja, está longe do Cristo e suas preces não chegam a Deus.

São João em suas epístolas enfatiza:”Deus é amor e quem permanece no amor, permanece em Deus e Deus nele”(1Jo 4,16). Num outro lugar afirma: “quem pratica o bem é de Deus”(3Jo 1,11). Quem tem o amor tem tudo e seu caminho  aponta para a Deus em sua natureza íntima.

Aqui se realiza o que dizia,o grande teólogo alemão que participou da resistência ao nazismo e de um atentado frustrado a Hitler, Dietrich Bonhöffer,enforcado a 29 de abril de 1945: “viver como se Deus não existisse”( etsi Deus non daretur). Mas viver aquele modo de vida no amor e na fidelidade à vida, à semelhança do Justo e Santo de Nazaré.

Talvez hoje a grande maioria no nosso país e no mundo inteiro vive esse tipo de vida que, no dialeto cristão, chamaríamos de um cristianismo anônimo e secularizado. O importante não é o nome mas o tipo de vida que se vive, no amor, na compaixão e na abertura a todos.Estimo que esta foi a vontade originária de Jesus de Nazaré,morto e ressuscitado, pois ele veio antes de tudo a nos ensinar a viver.

*Leonardo Boff escreveu O Cristianismo mínimo, Vozes 2011; Saudade de Deus: a força dos pequenos, Vozes 2012; A amorosidade de Deus-Abba e Jesus de Nazaré, Vozes 2023.

Imagem da Intenet

Fonte:https://leonardoboff.org/2023/05/30/formas-de-se-viver-o-cristianismo-hoje/

Maduro e o script.

Por José Horta Manzano*

MADURO 

by Patrick Chappate (1964-), desenhista suíço

…O tema de convidar (ou não) Maduro há de ter sido objeto de discussão no Itamaraty e na Presidência. Se não o convidasse, o Brasil daria a impressão de não ter relações fluidas com toda a vizinhança. Não era o que Brasília queria…

A reunião de dirigentes sul-americanos desta terça-feira em Brasília está dando que falar. Já li um punhado de análises que especulam qual seria o objetivo de juntar em torno da mesa uma dezena de figurões de nosso subcontinente.

 Como está – um conciliábulo de um único dia sem pauta específica – lembra um grupo de vizinhos reunidos para se conhecerem melhor, em torno de uma mesinha de centro com café e bolo. Vão conversar do quê? Se nada ficou combinado antes, só pode sair fofoca.

 Há quem acredite que é isso mesmo: uma confraternização entre coproprietários, celebrada no apartamento mais espaçoso do prédio, sem maiores pretensões. Quem ganha é o ego do proprietário dessa cobertura, orgulhoso de mostrar sua estupenda vivenda aos vizinhos.

 Já outros veem na reunião uma estratégia do governo Lula para proclamar ao mundo que o Brasil voltou – no sentido de potência regional. Para melhor representar seu papel de chefe, está mostrando que tem trânsito livre e que conversa com todos os países das redondezas.

 Há quem veja um plano ainda mais ousado. Lula estaria afirmando ao mundo que é o Brasil quem manda no pedaço, antes que intrusos como China e Rússia façam por aqui o têm feito na África, ao implantar feudos e colônias.

 Quanto a mim, penso que há razão em todos os argumentos citados. Creio que a cúpula tenha sido bolada com múltiplas finalidades. Não deixa de ser confraternização entre vizinhos. Mas é também afirmação da influência do Brasil no seu entorno. E ainda mostra os músculos, no esforço de barrar veleidades de neocolonialismo chinês e russo.

 A ideia é boa. Dá alívio ver que o Itamaraty está revivendo, depois de ter passado encolhido durante o calamitoso quadriênio bolsonárico. Dá satisfação perceber que ainda há cabeças pensantes nos altos círculos da República, inteligências geopolíticas que tinham sido caladas na gestão anterior.

 Até aqui, tudo são flores. Agora é que vem a hora de a onça beber água, ou seja, o momento em que, ao entrar em campo, a teoria vira prática.

 O tema de convidar (ou não) Maduro há de ter sido objeto de discussão no Itamaraty e na Presidência. Se não o convidasse, o Brasil daria a impressão de não ter relações fluidas com toda a vizinhança. Não era o que Brasília queria. Se o convidasse, o Brasil mostraria que fala com todo o mundo, regimes de esquerda e de direita, ainda que a Venezuela, no conceito planetário, seja vista como ditadura.

 Já conhecemos o fim da história: Caracas foi convidada. Só que o comitê de organização do encontro teve a ideia bizarra de tirar Señor Maduro da naftalina e fazê-lo vir um dia antes dos demais. O resultado foi que o ditador venezuelano, sozinho, único sobre o palco, abafou e foi o centro das atenções, com todos os holofotes sobre sua cabeça. Observado pela mídia estrangeira, foi a vedete do dia.

 Na verdade, a presença de Maduro esvaziou a importância da reunião. A meu ver, apartar Maduro dos demais dirigentes não foi boa ideia. No final, passou a imagem de que o Brasil tem especial apreço pela ditadura do vizinho. O amparo dado ao autocrata vizinho é tão grande, que ele teve direito a uma homenagem exclusiva de um dia inteiro.

 Como nada é perfeito, o comitê de organização se esqueceu de recomendar a Lula da Silva que não saísse do script e que não soltasse frases de improviso. O ímpeto de estrela de nosso presidente foi mais forte. Não se ateve ao discurso preparado, mas deu opiniões desastrosas em assunto sério e ultrassensível.

…Está faltando quem lhe mostre que, se continuar a tirar pitacos do bolso da camisa, Lula vai continuar arruinando os melhores planos da diplomacia brasileira…

Deu a entender que, se a Venezuela está no buraco é por culpa das sanções econômicas dos EUA. (O argumento é falso, visto que o país já estava de pires na mão nos tempos de Hugo Chávez, quando não havia sanção nenhuma.)

 Sugeriu ao ditador que inventasse uma narrativa que seja só dele e que sirva de contra-argumento para combater a difusão da informação sobre a verdadeira realidade da Venezuela.

 Não deu um pio sobre presos políticos, oposição perseguida, imprensa calada à força, fome generalizada, milhões de cidadãos que têm fugido do país nos últimos anos.

 Quem teve a ideia da cúpula não deve ter apreciado nadinha essas incômodas entorses ao roteiro traçado. Esses deslizes acabaram desvirtuando a causa e mostrando um Brasil conivente com o pior regime da América do Sul na atualidade.

 Ninguém é incontrolável. Deve ser difícil refrear os ímpetos do antigo sindicalista que virou presidente, mas impossível não é. Está faltando quem lhe mostre que, se continuar a tirar pitacos do bolso da camisa, Lula vai continuar arruinando os melhores planos da diplomacia brasileira.

 Já fez isso no G7, está fazendo agora e vai continuar a fazer.

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JOSÉ HORTA MANZANO – Escritor, analista e cronista. Mantém o blog Brasil de Longe. Analisa as coisas de nosso país em diversos ângulos,  dependendo da inspiração do momento; pode tratar de política, línguas, história, música, geografia, atualidade e notícias do dia a dia. Colabora no caderno Opinião, do Correio Braziliense. Vive na Suíça, e há 45 anos mora no continente europeu. A comparação entre os fatos de lá e os daqui é uma de suas especialidades.

Fonte: https://www.chumbogordo.com.br/429508-maduro-e-o-script-por-jose-horta-manzano/?utm_source=mailpoet&utm_medium=email&utm_campaign=CHUMBO+GORDO+-+Newsletter

A minha vida daria um livro

| 30 Mai 2023

Estantes de livros. Foto © José Alves Jana.

“Nunca digam a um escritor que a vossa vida daria um livro.” Foto © José Alves Jana.

 

“A minha vida daria um livro” é a mais cómica das frases que se pode dirigir a um escritor.

Há dias, apanhei o Uber de Copacabana para a Barra Da Tijuca – para quem não conhece o percurso, posso esclarecer que demora, dependendo do trânsito, aproximadamente uma hora.

O condutor, para quebrar o silêncio da demorada viagem, perguntou que exposição ou filme eu ia ver à Cidade das Artes; respondi-lhe que ia para a apresentação do meu livro na biblioteca do recinto.

Depois de alguns comentários de admiração, perguntou-me se não queria escrever um livro sobre a sua vida.

Começou por me contar episódios da infância no México, da dificuldade que foi chegar ao Brasil e lutar para não morrer de fome, ou cair na vida do crime. Ouvi-o.

Quando, finalmente, parámos na Cidade Das Artes e saí do veículo despedindo-me, o senhor insistiu para que trocássemos números de telemóvel, e para que eu “pensasse bem”, que a sua vida daria um best-seller. Agradeci, sorri e fechei a porta.

Quem nunca disse “a minha vida daria um livro”? Os escritores e os leitores. Esses sabem que nenhuma vida, por mais esplendorosa que seja, se assemelha à literatura. E é para isso que existem os livros, para colorir o cinza.

Os escritores escrevem porque não lhes basta a sua própria história, porque cada um, por si só, é tão pouco comparado à imaginação de um mundo inteiro; os leitores leem porque a realidade não provoca o sonho, e viver sem sonhar é estar morto.

As vidas não dão livros, as vidas são esqueletos que a literatura vai pondo de pé página após página, nutrindo até ao fixar da carne e à formação de um corpo orgânico.

Todas as vidas dariam um livro se cobertas de imaginação para além do óbvio; a vida é superficial e finita, a literatura é profunda e permanente. Nenhuma biografia acontece sem ficção.

Nunca digam a um psicólogo que daria um bom psicólogo só porque gosta de conversar. Nunca digam que podiam ter sido médicos só porque conhecem as bulas de cor. Nunca digam a um advogado que daria um bom advogado só porque grita a favor dos injustiçados. E, acima de tudo, nunca digam a um escritor que a vossa vida daria um livro: correm o risco de cair em presunção e pôr a nu a ignorância literária.

A vida é para viver… a imaginação é para escrever.

*Ana Sofia Brito começou a trabalhar aos 16 anos em teatro e espetáculos de rua; depois de dois anos na Universidade de Coimbra, estudou teatro, teatro físico e circo em Barcelona, Lisboa e Rio de Janeiro, onde actualmente estuda Letras.

Fonte:  https://setemargens.com/a-minha-vida-daria-um-livro/?utm_term=A+historia+do+convite+recusado+pelo+padre+Carreira+para+reitor+de+Fatima%2C+em+documentos+ineditos&utm_campaign=Sete+Margens&utm_source=e-goi&utm_medium=email

terça-feira, 30 de maio de 2023

A DIFÍCIL ARTE DE ADMIRAR

Por Eugénio Lisboa*

Foto média de admirar o nascer do sol na praia de uma mulher levantando as mãos na vista traseira 

 Foto da Internet

Aquele que deseja a rosa deve respeitar o seu espinho

André Gide 

A admiração é algo de nobre, mas esconde compartimentos sombrios. Num deles, habitam, encafuados, a inveja e o ciúme, que precedem a frustração e o rancor. A admiração pode ser ou parecer que é motor de arranque para uma emulação construtiva. 

É, por exemplo, o caso do grito dado muito cedo por Victor Hugo: “Quero ser Chateaubriand ou nada!” Isso levou-o aos píncaros de ser Victor Hugo, o maior poeta da língua francesa. 

Mas o querer ser alguém que se admira pode implicar uma alquimia produtora de vinagre ou mesmo de veneno. Admirar está cheio de armadilhas. A pior é a do amor supostamente não correspondido.

O “Quero ser Chateaubriand ou nada” descamba, não raro, no ódio vesgo a Chateaubriand. Não foi o caso de Hugo, ou o de Barrès ou o de Montherlant, que terão tido esse sonho: porque, tinham eles próprios, génio de sobra. Mas foi, no século passado, nos anos trinta, quarenta, cinquenta, o caso do “Eu quero ser Régio”, anseio de tantos jovens que, depois, não se cansaram de denegri-lo, de persegui-lo, de odiá-lo… de invejá-lo, tanto mais e tanto mais zangadamente, quanto mais ele se mostrava insubornável e admiravelmente independente. 

Que os novos acrescentadores de poesia ou de ficção se crispassem e o farpeassem – merece uma certa compreensão e atenuante: os que lavram o mesmo território, tendem a não se verem com particular carinho uns aos outros. Cocteau, com a finíssima perspicácia que o caracterizava, observou que os deuses, ao correrem nas suas carroças, fazem tanta poeira para os lados, que se não conseguem ver uns aos outros.

Claudel não via Gide, Gide não via Proust, Tolstoi não via Shakespeare e o sereno, ponderado e objectivo Martin du Gard não via Balzac (este, felizmente, viu Stendhal). 

Isto diz respeito aos que metem a mão na massa, isto é, aos criadores de arte. Mas que, por essa mesma altura, críticos, ensaístas encartados, professores, gente a quem compete outra objectividade, outra capacidade de perspectiva, gente que devia ver-se como verdadeiros guardiães do património, que gente desta sacudisse para o caixote do lixo uma grande e invulgar figura como o autor de MAS DEUS É GRANDE, de O PRÍNCIPE COM ORELHAS DE BURRO, de A CHAGA DO LADO, de JACOB E O ANJO, de HISTÓRIAS DE MULHERES, de A VELHA CASA, de EM TORNO DA EXPRESSÃO ARTÍSTICA, de ENSAIOS DE INTERPRETAÇÃO CRÍTICA, que um autor de uma obra vasta e de invulgar quilate fosse assim levianamente descartado, como imprestável, pergunto: que país é este? Que clercs são estes? Somos assim tão ricos que possamos dar-nos ao luxo de desprezar pepitas destas? 

Dizia Malraux que “uma das mais altas qualidades de um homem que não é um animal é ser capaz de admirar”. Infelizmente, entre nós, a capacidade de admirar merece sério escrutínio: quem se admira, como se admira por que se admira e por que se deixa de admirar, para passar a desprezar e atacar. Observava um não muito conhecido escritor francês que “há no homem, quase sempre, duas vozes que falam simultaneamente: a admiração e a inveja”. À mínima suspeita de amor mal correspondido, a primeira torna-se na segunda, com particular rancor incluído…

Vi isso acontecer, em muitos casos, com o grande escritor de Vila do Conde e de Portalegre. Jovens escritores, ambiciosos e gulosos de glória, cedo concluíam que o sóbrio e muito ocupado escritor, professor, jornalista, colecionador de antiguidades e cuidadoso e muito requisitado epistológrafo, além de assíduo frequentador de salas de cinema, não tinha disponível, para eles e para a promoção deles, todo o tempo e energia a que se julgavam com direito: receita infalível para o amor se transformar em azedume de má catadura. 

Vi, quando, na casa do escritor, em Vila do Conde, passei a pente fino as cartas que religiosamente guardara, a adulação ali manuscrita pela mão de jovens e empertigados autores que, depois, se passaram, com armas e bagagens, par o outro lado: o do denegrimento. A admiração que visa ser escada de acesso a uma promoção do admirador não traz felicidade. Os poetas, às vezes, dizem-no melhor e de maneira mais curta: “O segredo da felicidade reside em admirar sem desejar” (Carl Sandburg, poeta americano). 
 
*Escritor. Ensaista português.
Fonte:  https://dererummundi.blogspot.com/ 30/05/2023

Ciência e Religião: A perspectiva de um físico

| 27 Mai 2023

Ciência, Bosão de Higgs

Santo Agostinho: “Se há alguma coisa sobre a qual você tem ‘uma opinião firme’, 

então pode ter a certeza de que isso não é Deus”  Foto: Bosão de Higgs © Mundo da Educação

 

Carlos Fiolhais é físico e professor jubilado da Universidade de Coimbra; este texto corresponde à intervenção numa conferência no Seminário de Angra, em 2021, agora publicada na revista Fórum Teológico, do mesmo Seminário; o texto, aqui publicado com permissão do autor, está também disponível no blogue de Carlos Fiolhais.

O Ser Supremo não é uma hipótese científica

Num passo do seu livro A Noite do Confessor [1], o padre checo Tomáš Halík, teólogo, filósofo e sociólogo, conta a história de um físico, católico e simpático, que foi convidado por um grupo de padres a fazer uma palestra sobre Física Moderna num retiro clerical, na qual deveria contar as últimas descobertas da ciência a respeito do Cosmos, designadamente o Big Bang e a Física de Partículas, que inclui o bosão de Higgs, também chamada “partícula de Deus”. Halík conta que os seus colegas sacerdotes estavam à espera de que o físico lhes dissesse alguma coisa que os ajudasse na sua fé. Mas eles ficaram no final da palestra muito desconsolados, por não terem experimentado qualquer reforço da crença. O físico também ficou desconsolado por não ter correspondido às expectativas: não tinha conseguido transmitir nada de relevante para a fé deles.

Quem estava equivocado, diz Halík, eram os padres – eles nunca poderiam, numa palestra dada por um físico, mesmo católico e simpático, aprender algo que fosse fazer qualquer diferença na sua crença em Deus. E afirma de um modo muito claro: “O pedido feito pelos sacerdotes de uma prova minúscula [de que Deus existe] não indica apenas uma incompetência possivelmente desculpável, mas também, de forma mais deprimente, uma incompetência teológica bastante menos desculpável e, em particular, uma fé fraca e doentia.” Julgo que estas palavras de um teólogo contemporâneo ajudam a clarificar a relação entre ciência e religião.

Halík cita Santo Agostinho: “Se há alguma coisa sobre a qual você tem ‘uma opinião firme’, então pode ter a certeza de que isso não é Deus” [2]. Porque sou físico, várias vezes me têm feito a pergunta, designadamente em encontros ligados à Igreja, sobre o que existia antes do Big Bang. Dou sempre a mesma resposta:  “Não sei.” E acrescento: “não faço a mínima ideia do que é que havia antes, se é que de todo se pode falar de um antes.” Não sei e, se bem percebo, nunca ninguém virá a saber. Houve no início uma concentração tão grande de energia que não haverá meio nenhum de ter acesso a qualquer tipo de informação sobre o tempo mais primitivo de todos e, por maioria de razão, ao eventual tempo antes desse tempo primitivo sobre o qual alguns falam. Claro que se pode colocar a questão de saber o que existiria antes: podemos colocar as perguntas todas, mas não temos, na ciência, de responder a todas elas. O Génesis contém um relato mítico da Criação e, quando surgiu a teoria do Big Bang, não admira que tivesse havido uma tentativa por parte da Igreja de colar essa teoria ao relato bíblico. Não faltou mesmo quem, nos círculos mais altos da Igreja, afirmasse, com alguma satisfação: “Ora aqui está, finalmente, a prova científica do Génesis.” Contudo, a teoria do Big Bang não constitui uma prova científica do Génesis. Quem pensa assim ainda vive nos tempos pré‑galilaicos. É um erro tanto científico como teológico misturar dessa maneira ciência e religião. O padre e físico belga Georges Lemaître, contemporâneo do famoso físico suíço e norte‑americano Albert Einstein, tentou dissuadir o Papa Pio XII de prosseguir no mesmo registo após ele ter afirmado em 1952: “Parece que a ciência moderna, remontando a milhões de séculos, foi bem‑sucedida em testemunhar o Fiat Lux primordial, quando, juntamente com a matéria, explode do nada um mar de luz e radiação, quando as partículas dos elementos químicos se separam e reúnem em milhões de galáxias. (…) A ciência moderna… seguiu o curso e a direção dos acontecimentos cósmicos, e tal como indicou o seu desfecho fatal, também indicou o seu início no tempo num período de há cerca de cinco mil milhões de anos, confirmando com a concretização de provas físicas a contingência do Universo e a dedução bem fundamentada que, por essa altura, o cosmos surgiu das mãos do Criador. Por isso, a Criação ocorreu no tempo, e, por isso, existe um Criador.” [3] Lemaître respondeu “Nunca será possível reduzir o Ser Supremo a uma hipótese científica.” [4] E o certo é que o Papa passou a ser mais contido a esse respeito.

A existência de Deus não é do domínio da ciência

A Criação de Adão, por Miguel Angelo, é um dos pontos alto da Capela Sistina. Foto © Ricardo Perna

“O cerne da religião é a fé, que é um mistério sem explicação.” Gravura: A Criação de Adão, por Miguel Angelo, Capela Sistina. Foto © Ricardo Perna

 

Na relação entre ciência e religião tem havido um grande quid pro quo relativamente à questão da causalidade. Na procura, motivada por uma formação estritamente determinista, de uma cadeia de causas e efeitos, não falta quem pretenda remontar tudo às causas primeiras: é, por isso, frequente ouvir dizer‑se que a “causa primeira” é Deus. Contudo, por esse caminho alegadamente lógico, não se consegue provar a existência de Deus, pela simples razão de que a fé está para além da razão. Têm sido ensaiadas, ao longo do tempo, numerosas maneiras para provar a existência de Deus através de argumentos do tipo lógico‑filosófico ou mesmo científico. Pode dar‑se um curso inteiro sobre a história das “provas da existência de Deus” e a conclusão é – pelo menos até agora, não sendo previsível qualquer alteração –, que não se pode provar essa existência. Nem a inexistência, acrescente‑se desde já. A existência de Deus não é, pura e simplesmente, uma questão do domínio da ciência. Deus não aparece no fundo de um telescópio, de um microscópio ou de um acelerador de partículas. Não serão argumentos da Física ou, mais em geral, da ciência que irão permitir que alguém ganhe fé ou, em oposição, perca a fé que tinha.

O cerne da religião é a fé, que é um mistério sem explicação. Santo Agostinho dizia: “Se compreendeis, não é Deus.” [5] Deus está “para lá” de tudo e de todos, está para lá daquilo que é normal e compreensível. A fé religiosa vai para lá daquilo que compreendemos.

Se usamos palavras diferentes, «ciência» e «religião», é porque são atividades diferentes, afirmação sobre a qual não haverá discussão: os seus objetivos são diferentes e os seus métodos são diferentes. A ciência procura descobrir o mundo natural, estando o ser humano obviamente incluído nesse mundo. A religião, por seu lado, vai além desse mundo. Mas, se concordamos que existem diferenças substantivas entre ciência e religião, podemos também acrescentar que têm algo em comum, o que significa que são possíveis pontes entre elas. E, na minha visão, o que têm em comum é maior do que normalmente se julga, uma vez que elas são muitas vezes dadas como antagónicas. Se considerarmos que não ocupam o mesmo território, então há espaço para as duas, podendo as duas dialogar percorrendo as referidas pontes. Começo com o mais essencial, que é óbvio: ambas são dimensões do ser humano, correspondem a necessidades do homem. O homem precisa da ciência, uma actividade realizada pelo ser humano em benefício dos seres humanos: o seu resultado pertence – ou deve pertencer – a todos os seres humanos. Apesar de ser realizada apenas por uma pequena parte da Humanidade, a ciência é de toda a Humanidade. Por sua vez, a religião também é uma atitude humana, que foi e é assumida pelo ser humano e que também assenta na partilha pelos humanos. Ela baseia‑se na formação de uma comunidade – aliás, religião significa etimologicamente “ligação”. Então, ambas as actividades são do homem e para o homem.

Mas há um segundo denominador comum: ambas tentam fornecer sentido ao ser humano. Trata‑se de sentidos diferentes, bem entendido. Dito de uma outra maneira: ambas tentam penetrar em mistérios, embora sejam obviamente mistérios diferentes, uns mais profundos do que os outros. Somos todos seres humanos à procura… Ciência e religião são expressões da incompletude do ser humano, um ser que é, pela sua própria natureza, inquieto, desassossegado, desejoso  de “mais além”. E, como esse anseio é comum, ele realiza‑se em comunidade, em partilha, ou, se quisermos usar um termo do léxico religioso, em comunhão.

O físico austríaco Erwin Schrödinger, um dos autores da teoria quântica, escreveu que toda a ciência é uma resposta ao imperativo que estava colocada diante do templo de Apolo em Delfos, na Antiga Grécia: gnothi seauton, conhece‑te a ti mesmo6. Quem somos nós? Que mundo é este onde somos? As respostas a estas questões têm sido procuradas e transmitidas em comunidade.

Do ponto de vista histórico, não há dúvida de que a religião precedeu a ciência. A ciência moderna, que usa o método experimental baseado na observação, na experiência e na razão matemática, surgiu só nos séculos XVI e XVII. Com certeza que a ciência é filha da curiosidade e que a curiosidade existe desde que o homem existe à superfície do planeta: em formas embrionárias e rudimentares, é bastante mais antiga do que a ciência moderna. É bem conhecida a história infeliz do físico italiano Galileu Galilei, no início do século XVII, uma história que marcou durante muito tempo as relações entre ciência e religião. A ciência aparece hoje, muitas vezes, em oposição à religião muito por causa desse caso.

Procura de sentido

“A busca de sentido, o decifrar do mistério, dava‑se antes do sábio italiano num território que estava inteiramente unificado e não compartimentado como está hoje. Ciência e religião confundiam‑se em larga medida.” Pintura: Galileu diante do Santo Oficio; Sec. XIX de Joseph Nicolas Robert Fleury

 

O que é que aconteceu no tempo de Galileu? A busca de sentido, o decifrar do mistério, dava‑se antes do sábio italiano num território que estava inteiramente unificado e não compartimentado como está hoje. Ciência e religião confundiam‑se em larga medida. O sentido só podia ser um e o mesmo, sendo dado pelas autoridades da Igreja. São Tomás de Aquino tinha feito a “quadratura do círculo” ao cristianizar a filosofia de Aristóteles e as ideias sobre o mundo estavam bem arrumadas. Com Galileu deu‑se uma disputa de território. Ele procurou, usando o método científico que ele próprio desenvolveu, um sentido para o mundo material, que era diverso daquele do que então era corrente. Mas o mundo encontrava‑se descrito nas Sagradas Escrituras. No Antigo Testamento está escrito, numa passagem muito clara, que o Sol anda à volta da Terra. Há um milagre, o milagre de Josué, que consiste na imobilização, por vontade de Deus, do Sol numa batalha travada pelo povo judeu [7]. Quando Galileu veio dizer, corroborando Copérnico, um astrónomo que tinha feito votos religiosos e que de resto dedicou a sua obra maior ao papa Paulo III, [8] que a realidade é precisamente ao contrário, ou seja, que a Terra anda à volta do Sol, enquanto o Sol permanece imóvel, ele estava a afirmar a existência de uma espécie de milagre permanente, ou melhor, que afinal não tinha havido aquele milagre. Quer dizer, o mundo não era como estava nas Escrituras. Mas quem era Galileu para ler as Escrituras melhor do que os altos dignitários de um tribunal eclesiástico?

Ocorreu então uma rutura. Não significa isto que, anteriormente, não tivessem já ressaltado diferenças entre a Bíblia e as observações empíricas. Por exemplo, já se sabia, na época de Galileu, que a Terra era redonda. No entanto, há passagens bíblicas que apontam para uma Terra plana. No século XVII era bem conhecida a estrutura do cosmos apresentada na Divina Comédia de Dante na qual o Céu ficava por cima e o Inferno no interior da Terra: mas esta era esférica! Portanto, acreditava‑se não só que a Terra era esférica, mas também que o lugar final dos pecadores se situava no centro dessa esfera9. No entanto, a questão de a Terra ser ou não esférica  nunca tinha suscitado qualquer polémica. Em contraste, a tese do movimento relativo do Sol e da Terra constituiu no tempo de Galileu um aceso pomo de discórdia.

A questão era, afinal, de autoridade: quem é que podia fazer as interpretações correctas, ou verdadeiras, do texto bíblico? A resposta da Igreja era muito clara: Galileu não tinha o direito de dizer as coisas da Bíblia de uma maneira diferente daquela que estava na letra do texto sagrado. Já tinha sido advertido pelo tribunal eclesiástico, num primeiro julgamento em 1621, de que não podia ensinar as ideias de Copérnico. E, em 1633, após ter desrespeitado essa determinação,10 acabou por ser condenado a prisão domiciliária. Galileu negou as suas convicções, uma posição compreensível num humano que teme pela vida. Passados 359  anos ele foi, como se sabe, reabilitado pelo Papa João Paulo II [11]: a respeito do movimento da Terra, a razão assistia a Galileu e a Bíblia não podia ser levada à letra em matérias científicas, até porque não é um livro de ciência.

Hoje é muito claro para nós aquilo que já era claro nessa época para Galileu. Galileu não só era católico como era também um homem de profunda fé; curiosamente, a fé dele não foi abalada pelas provações a que foi submetido no Tribunal do Santo Ofício. Teve uma fé suficientemente forte para resistir àquela dolorosa experiência, uma vez que ciência e religião estavam muito bem arrumadas na cabeça dele. Galileu dizia que a Bíblia, ou melhor, o Espírito Santo ensina «como é que se vai para o Céu, mas não ensina como é que vai o céu». E essa interpretação de Galileu é também a nossa interpretação hoje: é também a interpretação da Igreja.

No seu livro Breve História da Alma,[12] o cardeal italiano Gianfranco Ravasi, que dirige o Conselho Pontifício da   Cultura do Vaticano, escreveu que a principal questão era a de saber quem é que diz o quê sobre o quê. Escreve Ravasi:

«Tinha razão Galileu – que, neste caso, se revelava melhor teólogo do que os seus opositores teólogos –, quando escrevia ao abade beneditino Benedetto Castelli palavras esclarecedoras (que depois haveria de repetir à grã‑duquesa Cristina de Lorena): “A autoridade do Espírito Santo teve em mira persuadir os homens sobre aquelas verdades que, sendo necessárias à sua salvação e superando todo o humano discurso, não podiam por outra ciência nem por outro meio ser conhecidas a não ser por boca do mesmo Espírito Santo”. «

Quer dizer, há certas coisas que se podem estudar, através de determinado método, usando por exemplo um telescópio, e há outras que tem de ser o próprio Espírito Santo a falar no interior de cada um. E, para Galileu, as duas abordagens podiam coexistir perfeitamente, sem azo a quaisquer dúvidas [13]. Para os seus juízes, elas não podiam coexistir. A questão está hoje bem resolvida. Por exemplo, em 2009, nos 400 anos das primeiras observações do céu por Galileu, o Vaticano organizou uma grande exposição sobre Galileu [14].

O físico inglês Isaac Newton, o anglicano profundamente teísta que sucedeu a Galileu, não colocava em questão que Deus tivesse criado todo o mundo num momento inicial: todo o mundo era inequivocamente obra de Deus. Mas dizia mais: que Deus, continuando presente na atualidade, poderia intervir, fazendo milagres. E era mesmo necessário que interviesse, não apenas em assuntos humanos, mas também em assuntos astronómicos, como, por exemplo, alterando o movimento das estrelas. Se a força de gravitação universal atrai todas as estrelas umas para as outras, a certa altura elas deveriam chocar umas com as outras. O que é poderia impedir esses choques? Pois apenas uma intervenção divina.  Portanto, os milagres não só eram permitidos, como eram necessários, no entender de Newton. O sábio passou de resto uma boa parte da sua vida a fazer interpretações da Bíblia, que deixou na gaveta (uma atitude prudente, pois muitas dessas posições eram heterodoxas).

Algumas ideias newtonianas originaram uma grande polémica. O físico e filósofo alemão Gottfried Leibniz, um dos opositores de Newton, afirmou que a referida posição newtoniana não fazia sentido. Ele não podia conceber a existência de um Deus que corrige continuamente a sua obra, um Deus que, no início, não criou o mundo de maneira perfeita e que tinha, por isso, de vir arranjar alguma coisa quando era preciso [15]. Para Leibniz, Deus tinha de ter criado um mundo perfeito, só lhe restando descansar eternamente na contemplação da Sua obra. Não tinha de fazer mais nada, pois, na Criação, tinha ficado tudo feito. Ao que Newton respondeu, por interposta pessoa, de uma maneira que coloco em linguagem coloquial: “Mas isso é uma heresia! Então está a dizer que Deus não faz actualmente absolutamente nada? Que Deus não está presente no mundo e é, portanto, inútil?” Esta foi uma das maiores discussões filosóficas do século XVII. Nessa época, a distinção entre ciência e religião, que estava bem organizada na mente de Galileu, não tinha ainda sido interiorizada por muitos dos seus seguidores. Havia, entre os cientistas, usando a retórica da ciência, disputas teológicas sobre o papel de Deus no mundo. A separação que hoje existe entre ciência e religião estava por surgir.

Teoria da Evolução

Darwin

“No século XIX, deflagrou uma outra grande questão, que veio reavivar o debate ciência‑religião: a teoria da evolução de Darwin.” Foto: Darwin

 

No século XIX, deflagrou uma outra grande questão, que veio reavivar o debate ciência‑religião: a teoria da evolução de Darwin. De certo modo, o debate anterior tinha sido decidido no sentido indicado por Leibniz: a organização do mundo dispensava a intervenção constante de Deus, os tais milagres de que Newton falava não eram precisos, pois o Demiurgo  tinha criado uma obra perfeita. O astrónomo francês Pierre de Laplace disse a Napoleão quando ele lhe perguntou por Deus: “Sir, não tive necessidade dessa hipótese.” O mundo seria uma máquina perfeita, um relógio mecânico, e, quando muito, precisaria de Deus apenas no papel do relojoeiro construtor do mecanismo. Esta visão em que a ciência prevalecia sobre a religião na descrição e interpretação do mundo, que marcou todo o Século das Luzes, foi bastante abalada com o debate sobre a evolução das espécies, incluindo nestas o ser humano.

A origem da Origem das Espécies do naturalista inglês Charles Darwin [16], sendo complexa, pode colocar‑se de um modo simples: Depois de ter realizado a sua viagem à volta do mundo a bordo do Beagle, Darwin chegou à conclusão de que todo o variado e exuberante mundo vivo, existente ou já desaparecido, podia ser visto metaforicamente como uma grande árvore: há um tronco comum, uns ramos maiores, outros mais pequenos, não passando a nossa espécie de um pequeno ramo, relativamente recente, dessa árvore. Existiram ramos dessa árvore anteriores aos que vemos atualmente. Darwin, que passou pela ilha Terceira, nos Açores, no seu regresso a Inglaterra, não sabia nada de ADN, nem de genoma, que conhecemos hoje e cujas raízes de devem a um trabalho durante muito tempo ignorado de um frade agostiniano (o checo Gregor Mendel, no mosteiro de Brno), mas percebeu, com uma intuição admirável, que existia uma unidade fundamental no mundo vivo, uma unidade que hoje está bem comprovada pela genética. A teoria da evolução, que hoje, nos seus traços gerais, não oferece dúvidas (existem muitas dúvidas apenas em aspectos particulares), gerou calorosos debates logo que emergiu, por parecer colidir com posições religiosas. Qual seria o papel de Deus na criação do homem se este era descendente de espécies anteriores? Darwin era uma pessoa com uma formação religiosa: estudou Teologia em Cambridge, tendo faltado pouco para ser ordenado pastor! Não tendo ele querido intervir neste debate, que foi muito vivo no seio da Igreja Anglicana, teve pessoas que o fizeram por ele, como o naturalista inglês Thomas Huxley. É conhecida a famosa controvérsia em Oxford entre Huxley, que foi chamado “cão de guarda” de Darwin, e um famoso bispo anglicano, Samuel Wilberforce, na qual, a dada altura, este pergunta: “O senhor acha que descende do macaco? Então, se descende do macaco, acha que é pelo lado do seu avô ou pelo lado da sua avó?” [17] A resposta de Huxley ficou famosa: “Se a questão é descender do macaco ou de uma pessoa que até tem bastantes dotes intelectuais, mas que se serve desse género de argumentos para distorcer, num assomo de autoridade, o que é, ou não, matéria de verdade numa discussão livre, então eu prefiro descender do macaco.”

A discussão à volta da evolução persiste até aos dias de hoje, de forma muito nítida nalguns segmentos do protestantismo, principalmente em certas regiões mais conservadoras dos Estados Unidos. Mas há nesse país uma posição mais difusa que não se inclina para o naturalismo darwinista: quando se pergunta a um cidadão comum desse país se a teoria da evolução explica a origem do homem, ele responderá negativamente por razões de ordem religiosa. Para o homem comum, o homem é obra de Deus: se houve evolução, tratou‑se de uma evolução sempre com acompanhamento divino. O embate entre ciência e religião a propósito da evolução evoluiu, mas não muito: ainda hoje suscita dúvidas em muitas mentes.

Apesar disso, o século XIX parece‑nos hoje distante. Foi nesse século que surgiram o positivismo e o cientismo, que foram por muita gente vistos, com alguma ingenuidade, como o triunfo da ciência sobre a religião. De facto, hoje ninguém leva a sério nem o positivismo nem o cientismo. A ciência triunfou, de facto, mas a religião continua a ter um papel assaz relevante no mundo. Apesar do crescimento da secularização nas sociedades ocidentais, é enorme a influência  das Igrejas no mundo de hoje. A maior parte da população mundial é religiosa: embora exista uma pluralidade de religiões, o fenómeno religioso é verdadeiramente universal

Tendo falado de tensões históricas entre ciência e religião, devo acrescentar, para que fique claro, que as duas podem não só coexistir como até entender‑se. Os casos de Galileu, de Newton e de tantos outros (incluindo físicos do século XX como os alemães Max Planck e Werner Heisenberg [18]) mostram que é possível uma coexistência pacífica entre as duas dimensões humanas. Devia ser pacífica. Tem de ser pacífica, num mundo onde a nossa vida é largamente dominada pela ciência e onde a nossa acção é fortemente dominada pela crença.

É São Paulo que fala do “escândalo” da fé [19]. A fé, de algum modo, é um escândalo, no sentido em que alguns a têm e outros a não têm. São Paulo não a tinha e passou a tê‑la. Santo Agostinho não a tinha e passou a tê‑la. Claro que a existência de fé tem muito que ver com o ambiente e com a educação, mas conhecemos muitos contraexemplos: gente que ganhou fé em ambiente hostil a ela ou que a perdeu em ambiente favorável. O Padre Halík converteu‑se em jovem num ambiente marcado pelo ateísmo comunista. A ciência pode ser feita por crentes, como o Padre Lemaître, ou por não crentes, alguns declaradamente ateus, como o biólogo inglês Richard Dawkins. O conjunto de objectivos que a ciência persegue e o conjunto de metodologias que usa são hoje completamente independentes da religião. Podemos, como fez o biólogo norte‑americano Stephen Jay Gould, falar de “dois magistérios que não se sobrepõem”.[20]

Há hoje bastantes cientistas agnósticos e ateus, mas também há, na população em geral, pessoas com dúvidas sobre Deus ou que negam a sua existência. Alguns ateus exprimem o seu ateísmo de forma exagerada, como por exemplo Dawkins [ 21]. Ele ajudou a promover um anúncio do Movimento Ateísta nos autocarros no Reino Unido que apregoava: “Provavelmente Deus não existe. Deixa de te preocupar e vive a tua vida!” [22] Esse movimento contra a religião já foi chamado “cruzada”, um nome curioso… Para Dawkins a religião não só é inútil, m[as] também é prejudicial. O discurso dele parece‑me demasiado radical, embora ache interessante ler os seus escritos.

A Graça não será inata, mas é inerente ao indivíduo que a possui, no sentido de que este responde a uma voz interior que o apela. Na estrada de Damasco, Saulo passou a Paulo ao ouvir o chamamento de Deus: “Saulo, Saulo, porque me persegues?”[23] A fé não é definitiva: há pessoas que a perderam, como é o caso de Darwin. A fé do autor da teoria da evolução foi‑se erodindo de uma forma lenta e gradual, não querendo ele causar escândalo com essa sua transição interior. Apenas exprimiu as suas dúvidas numas notas autobiográficas que escondeu numa gaveta e que só foram publicadas postumamente [24]. A sua mulher, que era bastante religiosa, terá sentido a certa altura que o marido já não era o mesmo. Quando se apercebeu das dúvidas do marido, ficou perplexa. Ela tinha jurado ficar com ele até que a morte os separasse, mas queria decerto permanecer unida a ele também após a morte.

O que é acreditar ou não acreditar? Uma pessoa acredita sempre em qualquer coisa. Há a crença em Deus e há, com certeza, outros tipos de crença, que podem mesmo recorrer à palavra “fé”. É evidente que toda a gente acredita nalguma  Ciência e Religião coisa. Pode‑se não acreditar no transcendente divino, mas toda a gente tem crenças mais ou menos arreigadas, acredita nalguma coisa. Um cientista acredita, por exemplo, no primado da realidade: ao estudar um certo aspecto, necessariamente limitado, começa por acreditar numa hipótese, mas essa crença inicial pode, quando confrontada com a realidade, revelar‑se injustificada após a aplicação do método científico, a combinação de observação, experiência e razão matemática. Por seu lado, uma pessoa religiosa, que até pode ser cientista, poderá aduzir alguma razão ou razões para a sua fé, pois esta não é completamente irracional.

Sobre a crença e a descrença, o padre Halík diz em O Tempo das Igrejas Vazias [25] que a distinção não é fácil, “pois a ‘fé’ e a ‘dúvida’ estão entrelaçadas de uma maneira complexa nas atitudes e nas mentes de muitas pessoas de hoje.” Tendo a concordar: quem é crente, terá sempre alguma descrença, e quem é descrente, terá sempre alguma crença. Segundo ele, “entre a fé e o cepticismo pode haver uma valiosa ‘permuta de dons’ ”. E, mais adiante, no mesmo livro, sustenta que há um fundo de espiritualidade na população do seu país: “A sociedade checa é fortemente ‘desigreijada,’ mas não é ateísta. O maior número de pessoas que não pertencem à Igreja são os “apateístas” (pessoas indiferentes à religião como a imaginam ou como a conheceram) e ainda os ‘buscadores espirituais’, os que creem ‘à sua maneira’” [26].

O livro Existe Deus? Um confronto sobre verdade, fé e ateísmo [27] contém um diálogo muito interessante entre um filósofo italiano ateu, o italiano Paolo Flores d`Arcais, e um eminente teólogo católico, o cardeal alemão Joseph Ratzinger, antes de se tornar Papa sob o nome de Bento XVI, no qual, a certa altura, o moderador pergunta a d’Arcais: “Então, você não acredita em nada?” E o filósofo responde: “Quanto à pergunta que me fez – ‘será possível viver sem fé?’ – falta apenas pormo‑nos de acordo sobre a palavra fé. Se, por fé, se entender qualquer paixão existencial profunda por alguns valores, que justamente façam da existência própria algo de sensato, e da nossa relação com os outros algo de significativo, não, não se pode viver sem fé; mas esta seria, na realidade, uma definição de fé incrivelmente genérica.” Com certeza que os seres humanos partilham valores humanos. Toda a gente partilha valores, embora não necessariamente coincidentes, sobre o bem e o mal, o justo e o injusto, etc. Para mim, essa destrinça não é exclusiva de nenhuma religião. Julgo que apartar a ética da religião é um passo no bom sentido. A religião pode dar contributos para a ética, mas não pode ser a única fonte dela.

Albert Einstein disse isso mesmo de uma forma muito clara: “Não há nada de divino na moralidade; é uma questão puramente humana” [28]. Ele considerava‑se uma pessoa religiosa, mas não no sentido de acreditar num Deus pessoal, no Deus do Antigo Testamento, o Deus dos judeus e dos cristãos, o Deus que se revela aos homens e que fala com os homens, o Deus cujo filho morreu na cruz [29]. Para Einstein, o “Deus pessoal” não fazia sentido, mas já fazia sentido considerar transcendente a harmonia do mundo, expressa nas leis fundamentais da Física. É, convenhamos, uma visão um pouco panteísta, na linha de Bento Espinosa, o judeu herético holandês de origem portuguesa. Einstein tinha uma tal ligação interior a essa harmonia do mundo, que a considerava algo de religioso. Era o “Mistério”, com maiúsculas. E Einstein não se importava de descrever a reverência que sentia perante esse Mistério como uma forma de religião.  Forçoso é reconhecer que essa ligação ao transcendente pode não ser acessível a toda a gente. É como se Einstein fosse crente de uma Igreja com um só membro que era apenas ele próprio e isso não é, de facto, uma religião. Um Deus pessoal é bem mais acessível à maioria das pessoas. Para quem não conseguisse aceder a esta ligação profunda entre o cérebro e a harmonia do mundo físico, Einstein considerava útil a ligação a alguma das religiões, digamos “convencionais”, do leque das várias religiões professadas e ensinadas. O sábio nasceu, na Alemanha, de uma família judaica, mas aprendeu também o catecismo católico. Contudo, na adolescência, largou as formas convencionais de religião: nunca entrou, por exemplo, numa sinagoga para rezar. Ele reconhecia que a religião, no sentido comum do termo, era algo de natural no ser humano, algo útil na organização social, mas não sentia necessidade dela.

Julgo que Einstein teria estado de acordo com Paolo Flores d’Arcais quando ele afirmou no seu diálogo com Ratzinger: “Se, por fé, se entender uma crença religiosa, respondo tranquilamente que sim, é possível viver sem fé; a fé não é necessária para dar sentido à própria existência. Pode‑se conferir sentido à existência de muitas formas.”[30]

É interessante a resposta de Ratzinger: “Creio que pode haver convicções fundamentais sobre os valores que dão sentido à vida e que tornam possível uma convivência digna neste mundo. E aqui podemos militar juntos. Eu diria: lutar contra a intolerância, contra todo o tipo de fanatismo, que sempre retornam. E também o compromisso a favor da dignidade do homem, em prol da liberdade, da generosidade para com os pobres, para com os necessitados.” [31]

Num mundo em que ciência e religião estão separadas, por que razão o diálogo entre as duas é não apenas útil, mas também necessário? Estou em crer que cientistas e teólogos– ambos seres humanos, que vivem em sociedade – ganham em saírem das respetivas esferas e de se interrogarem sobre aquilo que, da sua própria experiência, pode e deve ser partilhado pelos outros. Não é difícil encontrar valores comuns: tolerância, liberdade, dignidade, generosidade.

Ciência e Religião a mesma casa comum

Ciência, Fé

“A ciência fornece aos humanos conhecimentos, mas não fornece os valores humanos. Quando entramos na questão dos valores, da ética, com certeza que a religião tem contribuições a dar.” Gravura © Wikimedia Commons

 

As contribuições da ciência a respeito do mundo natural são muito úteis, por vezes mesmo indispensáveis, como vemos com a pandemia que nos aflige. Se estamos a falar de problemas de base científica – por exemplo, hoje colocam‑se as questões da manipulação genética, da inteligência artificial, das alterações climáticas, etc. –, a ciência faz afirmações relevantes, diz como se faz ou como se pode fazer. Não compete aos cientistas, ou pelo menos não compete só a eles (sendo cientistas, são também cidadãos), dizer o que se deve fazer com as possibilidades que a ciência oferece. “Saber é poder” – disse o jurista e filósofo inglês Francis Bacon, {32] contemporâneo de Galileu –, mas julgo que seria perigoso entregar o governo aos cientistas. A ciência fornece aos humanos conhecimentos, mas não fornece os valores humanos. Quando entramos na questão dos valores, da ética, com certeza que a religião tem contribuições a dar. Os teólogos, as pessoas que estudam religião e que tentam interpretá‑la, têm coisas a dizer sobre a Humanidade que vão além do domínio estrito da sua religião. E a questão das orientações a dar à nossa vida conjunta é algo que nos deve envolver a todos. Se ciência e religião são características do ser humano, que podem surgir na mesma pessoa (já referi o Padre Georges Lemaître, um dos autores da teoria do Big Bang, mas posso acrescentar o jesuíta italiano Guy Consolgmano, director do Observatório Astronómico do Vaticano, [33] entre outros), a conjugação das duas pode ser por vezes necessária, designadamente quando é o futuro do ser humano que está em causa. E dou um exemplo actual: a sobrevivência da espécie humana num planeta ameaçado pelas alterações climáticas. Constituímos a maior ameaça para a Terra, que é como quem diz para nós próprios. Hoje, quando estamos a discutir essa ameaça, as contribuições da Igreja Católica, transmitidas, entre outros sítios, pela encíclica Laudato Sì, [34] do Papa Francisco, revelam‑se preciosas. Escreveu o Papa nesse documento: “Lanço um convite urgente a renovar o diálogo sobre a maneira como estamos a construir o futuro do planeta. Precisamos de um debate que nos una a todos, porque o desafio ambiental, que vivemos, e as suas raízes humanas dizem respeito e têm impacto sobre todos nós”. A Terra, vista ao longe, é um “ponto azul‑claro” – mas é nesse ponto onde se criaram extraordinárias teorias científicas, portentosas filosofias, espantosas obras de arte e onde também se travaram horríveis guerras mundiais. Vista ao longe, nada disso se vê! Somos todos habitantes deste minúsculo ponto. De um ponto de vista cósmico, o nosso planeta não passa de um pontinho. Podemos comparar a Terra no espaço com as ilhas açorianas, muito pequenas no vasto mar atlântico, embora se trate de uma metáfora com as suas limitações…

Qual é o futuro da Terra? Todos os habitantes da Terra têm responsabilidade nesse futuro. Somos, tanto quanto sabemos, a única parte do mundo que percebe o vasto mundo no qual se situa a Terra. Não sabemos se há vida inteligente noutros lados, nem sequer sabemos se há vida tout court noutros lados. Mas nós, embora por vezes não pareça, somos inteligentes. A nossa espécie chama‑se Homo sapiens. Percebemos muitas coisas: percebemos, por exemplo, qual é a relação entre o Sol e a Terra e, nos seus traços gerais, como ocorreu a origem das espécies. Queremos perceber mais. E queremos viver melhor, o que significa desde logo viver em paz e fraternidade. Não só para a nossa sobrevivência colectiva, mas para uma vida decente em conjunto, ciência e religião têm de falar uma com a outra.

Carl Sagan foi o astrofísico norte‑americano que cunhou a expressão “o ponto azul‑claro” [35] para designar a Terra vista ao longe. Ele gostava de ouvir os outros e de falar com os outros. Por isso, mesmo sendo agnóstico, procurou líderes religiosos para falar sobre o futuro da Terra, na altura ameaçada por um holocausto nuclear, por se viver em plena guerra fria. Ele dizia que todos somos precisos, no que toca ao futuro da espécie e do planeta. Hoje estamos perante uma crise global, a da pandemia, mas há outra maior, a das alterações climáticas, à qual temos de responder em conjunto. A nossa compreensão e a nossa acção poder‑nos‑ão valer uma vida futura com qualidade se soubermos reagir solidariamente, se formos movidos por valores comuns.

O bem e o amor são, decerto, valores comuns, que nos podem unir. A relação com o próximo é uma relação que tem de ser construída dia a dia com base nesses valores. Sagan disse: “Se um ser humano discorda de vós, deixem‑no viver. Nos cem mil milhões de galáxias, não encontrarão outro”.36 E eu poderia acrescentar, parafraseando‑o, com uma inspiração obviamente cristã: “Ama o teu próximo. Num raio de muitos anos‑luz não encontrarás outro.” [36]

 

Referências:

[1] Tomáš Halík, A Noite do Confessor. Lisboa 2014, p. 109 e ss.
[2] Idem, p. 127.
[3] Pio XII, «The Proofs for the Existence of God in the Light of Modern Natural Science» (1951): https://inters.org/pius‑xii‑speech- 1952- proofs‑god.
[4] P.-de Felipe – P. Bourdon – E. P. & Riaza, (2015). «Georges Lemaître’s 1936 Lecture on Science and Faith», in Science & Christian Belief 27 (2015) 154-179. Ver meu artigo “O eclipse, Einstein e Deus” no portal Ponto SJ , https://pontosj.pt/opiniao/o- ‑eclipse‑einstein‑e‑deus/.
[5] Tomáš Halík, ibidem, p. 112.
[6] Erwin Schroedinger, A Natureza e os Gregos e Ciência e Humanismo.Lisboa 1999, p. 99. Cf. Carlos Fiolhais, «Ciência e humanismo: avisão da ciência de Erwin Schrödinger”», in Biblos, Nova série, (2015) 127-151 (http://hdl.handle.net/10316/40714).
[7] Jos. 10,12.
[8]  Nicolau Copérnico, Da Revolução dos Orbes Celestes, Lisboa 20143.
[9]  Steven Weinberg, «Without God», New York Review of Books, 25/09/2008, https://www.nybooks.com/articles/2008/09/25/withoutgod/
[10]  Galileu Galilei, Diálogo dos Grandes Sistemas (Primeira Jornada), Lisboa 1979.
[11]  https://apnews.com/article/0f3faa3ef29f5784d137a0d8c399e29e 
[12] Gianfranco Ravasi, Breve História da Alma, Lisboa 2011, p. 228.
[13] Galileu Galilei, Ciência e Fé, 2.ª ed., Rio de Janeiro 2009.
[14] Ileana Chinnici (ed.), Astrum 2008, Vaticano 2009.
[15] Alexandre Koyré, Do mundo fechado ao Universo infinito, Lisboa 2001, Cap. XI: «O deus da Semana e o Deus do Sabá»
[16] Charles Darwin, A Origem das Espécies. Lisboa 2011.
[17] https://en.wikipedia.org/wiki/1860_Oxford_evolution_debate 
[18] Carlos Fiolhais, «A Ciência e o Divino», in Anselmo Borges (coord.), Deus ainda tem futuro?, Lisboa 2014, 53-70. http://hdl.handle.net/10316/41138.
[19] 1 Cor. 1, 23.
[20] Stephen Jay Gould, Rocks of Ages: Science and Religion in the Fullness of Life, New York 2002.
[21] Richard Dawkins, A Desilusão de Deus, Lisboa 2018.
[22] https://en.wikipedia.org/wiki/Atheist_Bus_Campaign  
[23] Act. 9, 4.
[24] Charles Darwin, Autobiografia, Lisboa 2004.
[25] Tomáš Halík, O Tempo das Igrejas Vazias, Lisboa 2021, p. 18.
[26] Idem, p. 19.
[27] Joseph Ratzinger – P. Flores d’Arcais, Existe Deus? Um confronto sobre verdade, fé e ateísmo, Lisboa 2009, p. 22.
[28] Albert Einstein, Citações de Albert Einstein. A Coletânea Definitiva, Lisboa 2018, p. 338.
[29] Max Jammer, Einstein e a Religião. Rio de Janeiro 2000. Cf. Carlos Fiolhais, «Einstein e a Religião», in Estudos, Nova série, 4 (2005) 323-329.
[30] Joseph Ratzinger – P. Flores d’Arcais, ibidem.
[31] Idem, p. 24
[32] Carlos Fiolhais, «Saber e poder ou a modernidade de Sir Francis Bacon», Actas dos 2.ºs Cursos Internacionais de Verão de Cascais (1996). Cascais 1997, vol. 2, 155-172, http://hdl.handle.net/10316/40922
[33] Guy Consolmagno, A Mecânica de Deus, Mem Martins 2009.
[34] Papa Francisco, Laudato Sì, Lisboa 2015.
[35] Carl Sagan, O Ponto Azul‑claro, Lisboa 2011.
[36] Carl Sagan, Cosmos, Lisboa 2001, p. 339. Cf. Carlos Fiolhais, «Em busca de sentido: Ciência e Religião», in Secretariado Diocesano de Evangelização e Catequese de Coimbra, Em busca de um sentido: ateísmo e crença na construção da pessoa que ama, Coimbra 2011, http://hdl.handle.n

Fonte:  https://setemargens.com/ciencia-e-religiao-a-perspectiva-de-um-fisico/?utm_term=Ci%3F%3Fncia+e+Religi%3F%3Fo%3A+A+perspectiva+de+um+f%3F%3Fsico&utm_campaign=Sete+Margens&utm_source=e-goi&utm_medium=email&doing_wp_cron=1685479925.0774900913238525390625

IA: Toda a subversão será castigada?

 por


 Imagem publicada pela CNN

Há algo de sombrio no uso de bots para o policiamento, para além de suas falhas e racismos. Cria-se novo risco: ao bloquear qualquer possibilidade de transgressão, a justiça reduz-se a uma tirania cega, incapaz de ver as complexidades do mundo

Por Samuel Witteveen Gomez, no CTXT | Tradução: Rôney Rodrigues

Existem supermercados onde as câmeras de segurança apontam por si mesmas quem comete um furto. Utilizando inteligência artificial, essas câmeras são capazes de identificar os gestos e atitudes que costumam acompanhar a subtração de algum produto. Isso acontece em países como Estados Unidos e Japão. Há também estações de trem e metrô, na Catalunha por exemplo, onde câmeras alertam se um passageiro entra sem bilhete.

Além disso, espera-se que cada vez mais veículos incluam sistemas que reduzam automaticamente a velocidade quando o motorista excede o limite permitido. Os algoritmos também são os que muitas vezes se encarregam de detectar e penalizar a fraude fiscal. E um juiz da Colômbia materializou um horizonte com que sonham alguns juristas ao recorrer ao ChatGPT para redigir uma sentença.

Esses exemplos, por mais díspares que possam parecer, apontam para uma mesma tendência: a automatização da lei. Dadas as possibilidades que a tecnologia nos oferece, é tentador investir em sistemas que ajudem a garantir o cumprimento das normas. E se essas ferramentas realmente decolarem, pode chegar o dia em que ninguém, independentemente da situação, poderá furtar, entrar furtivamente no metrô ou pisar fundo demais no acelerador do carro. Mas isso, mais do que o triunfo da lei, pode significar o fim da lei como prática de uma comunidade moral e sua substituição por algo mais parecido com um molde, um túnel, uma tirania cega.

É, ainda, no contexto dos grandes desafios que os Estados enfrentam onde o risco da automação deve ser compreendido. Problemas de grande alcance, como mudanças climáticas, migração, pandemias e ameaças terroristas, muitas vezes encontram sua solução correspondente na boca de políticos e empresários com a promessa de controle que a tecnologia nos oferece. Uma união entre urgência e coerção parece ser o sinal de nosso tempo, uma união, segundo todos dizem, temível.

Tal acúmulo de ameaças justificará para muitos que as autoridades deleguem o controle a sistemas automatizados, possivelmente os únicos capazes de aplicar regulamentos em larga escala. Há, porém, uma diferença intransponível entre o cumprimento de uma lei (por condenação ou por simples submissão) e a impossibilidade de transgredi-la (porque a arquitetura do poder só permite o cumprimento).

O filósofo Maxim Februari explica em seu último livro que as máquinas, ao contrário de nós, não são sujeitos morais que agem por responsabilidade. Por isso, não são capazes de ver e compreender que nós, sobre quem eles decidem, somos de fato seres morais. “As máquinas”, escreve Februari, “não estão nem um pouco preocupadas com a verdade de nós como pessoas, nem se importam em entender, a única coisa que buscam é funcionar: realizar operações”.

Assim, por mais severo que seja um condutor de metrô, ele sempre será infinitamente mais compassivo do que um sistema automatizado. O condutor, diferentemente da máquina, tem a capacidade de entender que existem motivos para entrar furtivamente no metrô, que cada passageiro representa um caso particular. A máquina, por outro lado, não vê pessoas, não vê histórias ou necessidades, só é capaz de detectar aqueles indicadores que tornam possível o seu idêntico funcionamento.

Ramón López de Mántaras, especialista em inteligência artificial do CSIC, denunciou recentemente em um fórum o erro generalizado de atribuir características humanas à tecnologia. “Acreditamos que a IA é virtualmente ilimitada quando, na verdade, é extremamente limitada e, mais importante, não tem nada a ver com a inteligência humana.” Apesar das virtudes e usos dessas ferramentas, Mántaras alerta que a inteligência artificial não é realmente inteligente, mas executa tarefas sem ser capaz de entendê-las. Embora a IA possa certamente ser mais habilidosa do que nós na execução de operações concretas, ela carece do conhecimento complexo do mundo que qualquer pessoa possui.

O mundo funciona em grande parte graças a processos informais, experiências e gestos não quantificáveis. Mesmo a pessoa mais bruta conhece uma imensidão de sentimentos completamente alheios à máquina, sentimentos que informam suas ações a todo momento. Empatia, indignação, dúvida, conflito, flexibilidade, medo, paciência, justiça. Aqueles que, ignorando tudo isso, igualam a máquina ao humano, tomam como critério as capacidades da máquina e desprezam o que distingue o vivo do inerte. A história também nos mostra que ignorar a importância dos processos informais sempre leva ao desastre.

A aplicação mecânica da lei também contradiz os princípios do Estado de direito. O que diferencia um Estado de direito de qualquer modelo autoritário é que o poder está sujeito a garantias. As decisões não dependem simplesmente da autoridade, mas devem ser legítimas e justificáveis. A primazia da lei sobre o poder implica, portanto, a existência de uma comunidade imersa em uma prática constante de apelar, interpelar, decidir e justificar. Desistir dela em busca de uma ordem fechada implica dissolver a comunidade e suspender o direito. Quando falamos de automação, não estamos falando de mera sofisticação, mas de uma forma radicalmente diferente de governança.

A lei é incompatível com o mecânico. Não há lei aplicável a todos os casos porque a norma exige necessariamente, sempre, interpretação e execução. Februari usa a história de dois membros da resistência holandesa na Segunda Guerra Mundial para ilustrar isso. A anedota diz que esses dois partisanos capturaram um membro da SS que se dedicava a deletar outras pessoas em seu povoado. Quando tiveram este homem em seu poder, quiseram matá-lo, mas duvidaram que estivessem fazendo a coisa certa. Então eles foram até o padre e perguntaram se é permitido matar um nazista. O padre respondeu: “Na verdade, não.”

Na breve resposta do padre está contido todo aquele terreno propriamente humano que é incompreensível para as máquinas. Bem, o padre não simplesmente toma o quinto mandamento e os proíbe de matar, mas os informa sobre o conteúdo da lei e acrescenta que o “na realidade”, que é a abertura para a exceção. Entre a lei universal (não matarás) e o caso concreto e premente (enquanto esta pessoa estiver viva trairá outras), cabe aos dois partidários a responsabilidade de decidir da forma mais justa. A lei não pode simplesmente ser aplicada porque deve primeiro passar por essas histórias particulares para se materializar. Isso é o que Franz Rosenzweig quis dizer quando escreveu: “A lei é entregue ao homem, não o homem à lei.”

O problema de deixar as tarefas de governança nas mãos da inteligência artificial não é apenas que ela costuma ser suscetível a vieses e erros. Por mais que o algoritmo seja aperfeiçoado e os dados lapidados, um sistema automatizado jamais igualará a capacidade interpretativa do ser humano. A diferença entre inteligência artificial e humana não é quantitativa, mas qualitativa.

Claro que a tecnologia pode nos auxiliar em tarefas monótonas, por exemplo, na hora de localizar ou organizar informações, e isso pode aliviar os tribunais e agilizar os processos. A decisão de um juiz, por outro lado, não deve ser tomada por um sistema generativo de inteligência artificial (como o ChatGPT) porque por mais jurisprudência que a ferramenta seja capaz de moldar, ela jamais conseguirá entender do que realmente se trata: transmitir a justiça.

O juiz é o elo entre a legislação e o caso concreto e em cada uma de suas decisões deve introduzir um elemento original. Uma norma aplicada automaticamente pode criar a ilusão de equidade, mas na realidade ocorre o oposto: a mesma interpretação é imposta em casos diferentes. A justiça requer uma consideração especial em cada caso, um momento de perigo onde a doutrina aparece no fundo da vida. Jacques Derrida colocou assim em Força da Lei: “A lei é o elemento de cálculo, enquanto a justiça é incalculável, exige que calculemos com o incalculável”.



segunda-feira, 29 de maio de 2023

Parlamentarismo brasileiro

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Parlamentarismo brasileiro  
Brasil já rejeitou o parlamentarismo em 1963 e 1993 | Foto: Bruno Spada / Câmara dos Deputados

O Brasil foi parlamentarista no Império. Quem mandava era D. Pedro II, detentor do poder moderador, que os militares atuais gostariam de manejar. Nos tempos do imperador, como se dizia, nada era mais conservador do que um liberal no poder. Tudo funcionava mais ou menos bem. Depois disso, foram outros quinhentos. Em plebiscitos, o povo brasileiro sempre rejeitou o parlamentarismo, como em 1963 e em 1993, certamente por desconfiar de tantos parlamentares mandando em tudo. Salvo se por saudade de uma monarquia absolutista que não teve. Agora o centrão, essa excrescência fisiológica que negocia apoio, inclusive quando está de acordo, em troca de votos, avança sobre os poderes atribuídos pela Constituição ao presidente da República. Parlamentarista, o Brasil teria uma crise por semestre.

Ou seria por mês? O parlamentarismo golpista brasileiro quer esquartejar ministérios que incomodam os donos do dinheiro: Ministério do Meio Ambiente e Ministério dos Povos Indígenas. A raposa considera que tem melhores condições para cuidar dos galinheiros. Uma comissão da Câmara dos Deputados aprovou por 15 a 1 o relatório de Isnaldo Bulhões, que poderá ser chamado de “isbulhão”, um esbulho gigante, que transfere a Agência Nacional de Águas e o Cadastro Ambiental Rural para as pastas mais interessadas em agradar desmatadores e grileiros. Uma leitura atenta da Constituição Federal de 1988 seria útil nessa hora para evitar futuras decepções com o Supremo Tribunal Federal.

A ministra Marina Silva anda desconfiada. Parece estar vendo o remake de um filme. Não sente pegada forte do governo Lula pare impedir o esvaziamento do seu ministério. Por que o próprio governo não parte para a judicialização? Até um bolsonarista seria capaz de enxergar, com boa vontade, o que já constitui uma contradição, que essa reforma é inconstitucional. Lula tenta se equilibrar no muro, como se fosse um velho tucano, um afago em Marina e em Sônia Guajajara, um tapinha nas costas do outro lado. Só que esse estilo não funciona mais. Não como antes. Agora tudo se interliga. O Brasil felizmente não é parlamentarista. Há quem goste. O presidencialismo de coalização tem seus problemas. Obter apoio parlamentar custa caro. Bastaria endurecer as regras para diminuir o número de partidos representados no parlamento. O balcão encolheria bastante. Ou não?

O meio ambiente está sob fogo cerrado. O Ibama não quer saber de exploração de petróleo na foz do Amazonas. O ouro de lá é verde. Petróleo jorra para o passado. Mesmo assim os pragmáticos não querem perder tempo. Acham que ainda há muito óleo para queimar. No andar desse barco, Marina Silva vai acabar voltando mais cedo para casa. Como ela tem razão, suscita instintos poderosos em quem gostaria de desautorizá-la. 

Uma Marina incomoda muita gente. Uma Marina e uma Guajajara incomodam muito mais. Só mesmo acabando com seus poderes.

*Jornalista. Escritor. Prof. Universitário.