quarta-feira, 17 de maio de 2023

Seja o dono do seu cérebro: A importância de perceber como funciona a inteligência natural para usar bem a artificial

 Ana Paulo Guerreiro*

Getty Images
 
O programa cerebral está calibrado, como tudo no processo evolutivo, para descartar o que não serve para ter eficiência. Ele não irá distinguir se é um neurónio biológico, ou artificial, caso esteja intrincadamente ligado com uma rede artificial que algumas empresas já estão a desenvolver. A explicação de uma cientista cognitiva

Começou a “febre do ouro” artificial.

Será que esse “brilho” artificial já está a enganar e a ofuscar os cérebros mais distraídos?

Com a velocidade a que a Inteligência Artificial (IA) está a progredir, podemos não ir a tempo de que todos saibam proteger-se das consequências das interações com a mesma. Não há tempo para munir todos os seres humanos do conhecimento mínimo do programa cerebral, por exemplo.

Para continuarmos otimistas, há que precaver também contra as enormes capacidades de destruição que certos indivíduos têm, usando a IA para outros interesses que não o bem comum. Não é alarmismo exagerado, é inteligência preventiva natural.

Já que o nosso próprio programa cerebral tem um processamento preditivo, poderemos usá-lo para coisas úteis, como tentar perceber como proteger os seres humanos do seu próprio desconhecimento de si. Cada um de nós comporta fatores desconhecidos, psicológicos e emocionais, na interação com a IA, como se múltiplos “cisnes negros” estivessem a eclodir, em cada uma dessas interações.

A ideia é não ter que esperar que estas interações se tornem demasiado desequilibradas e dissonantes, uma espécie de meta-cognição descontrolada induzida pela IA, mas sim reduzir a probabilidade de uma distopia.

A inteligência artificial é um exemplo claro do que é uma inteligência sem ligação com a vida, sem ligação com o ser humano. No entanto, coordena mais dados do que podemos e conhece-nos melhor que nós mesmos.

Será cada vez mais difícil não perder a cabeça à medida que o nosso senso compartilhado de identidade e realidade se rompe.

A inteligência do futuro será aquela que respeita a decisão humana. A grande questão é que a decisão é, também ela, invadida por múltiplos estímulos e fatores que podem fugir à compreensão consciente de cada pessoa.

Inteligência Natural: Usa-a ou perde-a

Não pretendo que este artigo se torne exaustivo, com explicações neurocientíficas detalhadas, mas é importante que todos se inteirem de imediato das questões que estão subjacentes à interação do nosso cérebro com a tecnologia, e como nos escapam muitos estímulos que interferem nas nossas decisões, na sua maioria, processados de forma inconsciente.

A inteligência natural é a capacidade que temos de processar informações, resolver problemas e aprender através da observação e da experiência. É uma habilidade que é frequentemente comparada à inteligência artificial, mas que é exclusivamente humana e pode ser considerada como um dos aspetos mais importantes da nossa adaptação como espécie.

Não é apenas uma habilidade cognitiva, mas sim um processo complexo que envolve uma interação dinâmica entre diversas áreas do cérebro. A capacidade de aprender e adaptar-se é influenciada por uma série de fatores, incluindo a genética, o ambiente e a experiência. Somos todos padrões emergentes de outros padrões de interação.

É uma habilidade que precisa ser constantemente usada para ser mantida. O cérebro é altamente “plástico” e está em constante mudança, adaptando-se às experiências e mudanças ambientais. Quando usamos regularmente a nossa inteligência natural para resolver problemas e aprender novas habilidades, estamos a fortalecer as conexões neuronais e a melhorar a nossa capacidade cognitiva.

Por outro lado, a falta de uso da inteligência natural pode levar a uma deterioração das habilidades cognitivas. A falta de estímulo cognitivo pode levar à perda de neurónios e sinapses cerebrais, o que pode afetar, negativamente, a nossa capacidade de aprendizagem e resolução de problemas.

Para terminar, deixo alguns dos pressupostos para um bom consentimento informado, antevendo também a tendência imersiva e do transhumanismo:

O consentimento BEM informado deve dar às pessoas uma compreensão clara e precisa do funcionamento do seu próprio cérebro e como a tecnologia de interface cérebro-máquina pode afetá-lo.

Conhecimento do funcionamento do cérebro: Deve incluir informações sobre as diferentes partes do cérebro e as suas funções específicas, bem como informações sobre os sensores que possam ser usados para detetar sinais cerebrais, ou dados biométricos, bem como informação sobre os algoritmos que são usados para descodificar esses sinais e traduzi-los em comportamentos e decisões. O universo neurocientífico já possui uma base consistente de informação acerca do funcionamento do nosso cérebro, e fornece dados para
formas mais eficientes de proteção.

A explicação sobre a reversibilidade aquando do uso da tecnologia, em vez de afastar as pessoas das suas próprias capacidades naturais, será crucial. O programa cerebral está calibrado, como tudo no processo evolutivo, para descartar o que não serve para ter eficiência. Ele não irá distinguir se é um neurónio biológico, ou artificial, caso esteja intrincadamente ligado com uma rede artificial que algumas empresas já estão a desenvolver.

Além disso, a dependência desses dispositivos pode levar a uma diminuição da autonomia e independência do indivíduo, o que pode ter consequências negativas para sua saúde mental e bem-estar. Portanto, é importante considerar a possibilidade de dependência e estabelecer limites claros para o uso desses dispositivos, a fim de promover a autonomia e independência das pessoas.

Controlo de grandes empresas: A informação gerada pela inteligência artificial é composta por todas as informações geradas por humanos, e pelas nossas mentes. Essa colossal informação jamais deveria ser tida como “propriedade” de uma Google ou de uma Open AI, porque é propriedade de todos nós.

A IA é frequentemente desenvolvida e controlada por grandes empresas de tecnologia, o que pode levar à concentração de poder e influência nas mãos dessas empresas. Isso pode levar à perda de controle e autonomia dos indivíduos em relação à sua vida quotidiana, bem como interferir na tomada de decisão, por manipulação e por “nudge”, uma forma de influenciar decisões de forma não consciente. A ideia é garantir que não estaremos sob influência de estímulos que nos levem a consentir, de forma inconsciente, o que não é para ser consentido.

Dados protegidos: Também deve incluir informações detalhadas sobre como os dados cerebrais, e também cognitivos, serão coletados, armazenados e usados. Isso inclui informações sobre a privacidade dos dados, como eles serão protegidos, ou compartilhados. É importante formalizar novas formas de proteção do nosso “espaço mental”, neste futuro tecnológico e imersivo, onde o cérebro pode não conseguir distinguir o real do virtual, pois o processamento cerebral é diferente, nesses dois ambientes.

A IA potencializa tudo, não haja dúvida, mas será o consentimento bem informado que irá definir a inteligência no uso dessas tecnologias.

O ser humano está a programar a IA para ser mais inteligente do que ele próprio, negligenciando-se, como se ele próprio fosse um mero programador descartável, ao serviço de uma inteligência artificial. Um programador sem consciência, sem auto-cuidado, sem capacidade de querer melhorar como ser humano, sem ética, sem pensamento crítico, é uma mera ferramenta na cadeia de montagem da IA.

Este programa biológico poderá ser extinto, caso as pessoas não o protejam, conhecendo-o, usando-o, valorizando-o e fortalecendo-o.

Esta poderá ser a forma mais subtil da inteligência artificial acabar com a nossa “humanidade”. Uma “guerra artificial” que poderá começar a partir de dentro de quem a consentir, não tendo a oportunidade de tomar decisões informadas.

Que humano, na sua total capacidade de auto-consciência, permitiria um robot tornar-se mais inteligente que ele, sem primeiro tomar as devidas precauções?

* Neurociência cognitiva aplicada

Fonte:  https://visao.sapo.pt/opiniao/neurociencia-aplicada/2023-05-15-seja-o-dono-do-seu-cerebro-a-importancia-de-perceber-como-funciona-a-inteligencia-natural-para-usar-bem-a-artificial/

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