Ernst Gellner escreveu em 1994 Condições da Liberdade (Gradiva, 1995), onde procede a uma análise de grande lucidez sobre a democracia moderna, numa obra que tem ganho importância acrescida nos últimos anos, quando assistimos a tendências preocupantes no sentido da desvalorização da liberdade.
Fustel de Coulanges publicou em 1864 uma obra histórica fundamental cujos ecos chegaram aos nossos dias. A Cidade Antiga
procurou caracterizar as principais experiências sociais e políticas da
antiguidade clássica, esclarecendo uma dúvida persistente sobre a visão
idílica desse passado, pondo os pontos nos ii sobre diferenças no tempo
que não devem ser esquecidas. “A ideia que se tem da Grécia e de Roma
confundiu frequentemente as nossas gerações. Tendo observado de forma
deficiente as instituições da cidade antiga, pensámos fazê-las reviver
nos nossos dias. Criámos ilusões sobre a liberdade entre os antigos e,
assim, pusemos em perigo a liberdade entre os modernos”. O tempo da
Revolução francesa pretendeu restaurar as tradições da República Romana e
disso nos apercebemos quer nas referências simbólicas do
neoclassicismo, quer no cultivar de certas fórmulas históricas pelos
autores mais célebres desse tempo. Aliás, no sentido desse
esclarecimento, em 1819, Benjamin Constant (1767-1830) escreveu o volume
Sobre a Liberdade dos Antigos Comparada com a dos Modernos,
onde analisava a distinção entre a liberdade dos indivíduos em relação
ao Estado (“liberdade de”) e a liberdade no seio do Estado (“liberdade
em”). Nessa perspetiva, a liberdade dos antigos, segundo a fórmula
tornada clássica, era participativa, mas limitada às sociedades que
dispusessem de uma cidadania exclusiva, na qual só alguns tinham
direitos, enquanto a liberdade dos modernos se baseava numa cidadania
mais ampla e positiva, centrada no primado da lei, na representação pelo
voto e no consentimento indireto.
NO ESTEIO DE POPPER
No
esteio do pensamento de Karl Popper, Ernest Gellner (1925-1995),
britânico de origem checa, viria a salientar a ausência de uma autêntica
liberdade individual entre os antigos, mesmo que estes não estivessem
limitados por um tirano ou pelo domínio estrangeiro, uma vez que o
cidadão estava sujeito à cidade sem quaisquer reservas, já que a sua
vida privada não escapava à tirania do Estado e da sociedade nos mais
diversos pormenores Esse constrangimento projeta-se nos nossos dias,
mesmo que saibamos que uma sociedade civil institucionalmente organizada
pode garantir uma maior liberdade individual. Os riscos são, porém,
evidentes, num tempo em que novas e subtis censuras se manifestam,
lembrando-nos do que George Orwell designou como “duplipensar”, como
paródia ao termo dialética, para indicar o modo como
uma nova tirania de convicções pode pôr em causa a capacidade de
duvidar. E assim a cooperação social, a lealdade e a solidariedade
apenas podem tornar-se efetivas se tomarmos consciência de que a verdade
não é monopólio de quem quer que seja. Trata-se, no fundo, de garantir a
soberania da capacidade do indivíduo se questionar a si próprio.
VEM À BAILA TOCQUEVILLE
Como
afirmou Tocqueville, ao analisar a democracia na América, a coesão
social pressupunha a existência de valores comuns, com a capacidade de
integração em associações e instituições eficazes, que não fossem
totais, encadeadas umas nas outras, apoiadas por rituais. E poder-se-ia
abandonar essa associação quando se discordasse, sem haver acusação de
traição. A sociedade civil, de facto, torna-se eficaz, porque é
flexível, específica e instrumental. E assim o ser humano moderno é ao
mesmo tempo individualista e igualitário, com capacidade de coesão
contra qualquer poder total, estatal ou social, precisando a sociedade
civil de uma base económica independente. O “doce comércio” de
Montesquieu ou a paz de Kant contrapõem-se à lei da guerra. E não
sabemos o suficiente para ser intolerantes, segundo Popper, baseando-se a
sociedade civil na separação entre as instituições políticas e a vida
social e económica, sem domínio da vida e da cultura por supostos
detentores de uma qualquer verdade.
Guilherme d’Oliveira Martins - Jurista e político português
Fonte: https://e-cultura.blogs.sapo.pt/a-vida-dos-livros-1465477
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