terça-feira, 2 de maio de 2023

OS ECOS DA ANTIGUIDADE CLÁSSICA

   

Ernst Gellner escreveu em 1994 Condições da Liberdade (Gradiva, 1995), onde procede a uma análise de grande lucidez sobre a democracia moderna, numa obra que tem ganho importância acrescida nos últimos anos, quando assistimos a tendências preocupantes no sentido da desvalorização da liberdade.


Fustel de Coulanges publicou em 1864 uma obra histórica fundamental cujos ecos chegaram aos nossos dias. A Cidade Antiga procurou caracterizar as principais experiências sociais e políticas da antiguidade clássica, esclarecendo uma dúvida persistente sobre a visão idílica desse passado, pondo os pontos nos ii sobre diferenças no tempo que não devem ser esquecidas. “A ideia que se tem da Grécia e de Roma confundiu frequentemente as nossas gerações. Tendo observado de forma deficiente as instituições da cidade antiga, pensámos fazê-las reviver nos nossos dias. Criámos ilusões sobre a liberdade entre os antigos e, assim, pusemos em perigo a liberdade entre os modernos”. O tempo da Revolução francesa pretendeu restaurar as tradições da República Romana e disso nos apercebemos quer nas referências simbólicas do neoclassicismo, quer no cultivar de certas fórmulas históricas pelos autores mais célebres desse tempo. Aliás, no sentido desse esclarecimento, em 1819, Benjamin Constant (1767-1830) escreveu o volume Sobre a Liberdade dos Antigos Comparada com a dos Modernos, onde analisava a distinção entre a liberdade dos indivíduos em relação ao Estado (“liberdade de”) e a liberdade no seio do Estado (“liberdade em”). Nessa perspetiva, a liberdade dos antigos, segundo a fórmula tornada clássica, era participativa, mas limitada às sociedades que dispusessem de uma cidadania exclusiva, na qual só alguns tinham direitos, enquanto a liberdade dos modernos se baseava numa cidadania mais ampla e positiva, centrada no primado da lei, na representação pelo voto e no consentimento indireto.


NO ESTEIO DE POPPER
No esteio do pensamento de Karl Popper, Ernest Gellner (1925-1995), britânico de origem checa, viria a salientar a ausência de uma autêntica liberdade individual entre os antigos, mesmo que estes não estivessem limitados por um tirano ou pelo domínio estrangeiro, uma vez que o cidadão estava sujeito à cidade sem quaisquer reservas, já que a sua vida privada não escapava à tirania do Estado e da sociedade nos mais diversos pormenores Esse constrangimento projeta-se nos nossos dias, mesmo que saibamos que uma sociedade civil institucionalmente organizada pode garantir uma maior liberdade individual. Os riscos são, porém, evidentes, num tempo em que novas e subtis censuras se manifestam, lembrando-nos do que George Orwell designou como “duplipensar”, como paródia ao termo dialética, para indicar o modo como uma nova tirania de convicções pode pôr em causa a capacidade de duvidar. E assim a cooperação social, a lealdade e a solidariedade apenas podem tornar-se efetivas se tomarmos consciência de que a verdade não é monopólio de quem quer que seja. Trata-se, no fundo, de garantir a soberania da capacidade do indivíduo se questionar a si próprio.


VEM À BAILA TOCQUEVILLE
Como afirmou Tocqueville, ao analisar a democracia na América, a coesão social pressupunha a existência de valores comuns, com a capacidade de integração em associações e instituições eficazes, que não fossem totais, encadeadas umas nas outras, apoiadas por rituais. E poder-se-ia abandonar essa associação quando se discordasse, sem haver acusação de traição. A sociedade civil, de facto, torna-se eficaz, porque é flexível, específica e instrumental. E assim o ser humano moderno é ao mesmo tempo individualista e igualitário, com capacidade de coesão contra qualquer poder total, estatal ou social, precisando a sociedade civil de uma base económica independente. O “doce comércio” de Montesquieu ou a paz de Kant contrapõem-se à lei da guerra. E não sabemos o suficiente para ser intolerantes, segundo Popper, baseando-se a sociedade civil na separação entre as instituições políticas e a vida social e económica, sem domínio da vida e da cultura por supostos detentores de uma qualquer verdade.  


Guilherme d’Oliveira Martins - Jurista e político português

Fonte: https://e-cultura.blogs.sapo.pt/a-vida-dos-livros-1465477

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