Por Aline Custódio
Pesquisador e empreendedor com atuação internacional defende que a habilidade de interpretar dados e transformá-los em informação é uma necessidade de todos hoje em dia
Dedicado à pesquisa sobre o impacto dos dados na sociedade e nos negócios, o cientista de dados, pesquisador e empreendedor gaúcho Ricardo Cappra, 43 anos, defende uma sociedade mais analítica. Ele é o fundador do Cappra Institute for Data Science, um instituto independente com matriz nos Estados Unidos e laboratórios no Brasil e na Europa que estuda a ciência de dados e o desenvolvimento de práticas capazes de auxiliar seu uso em todas as áreas. Ao longo de quase três décadas dedicadas à tecnologia da informação, Cappra integrou projetos de desenvolvimento analítico em algumas das maiores organizações do mundo. Hoje, os métodos do pesquisador gaúcho são usados, por exemplo, pelo governo norte-americano. Por telefone, ele concedeu a seguinte entrevista, na qual defende que “é preciso expandir o movimento de educação analítica para todos os públicos”.
Você
pode explicar para o grande público o que é a cultura analítica e se
ela é, de fato, o próximo passo da transformação digital?
O Fórum Econômico Mundial
apresentou em 2020 um relatório afirmando que o pensamento analítico
será a habilidade mais importante para qualquer profissional já no ano
de 2025. A cultura analítica é quando a habilidade de transformar dados
em informação torna-se uma prática comum, ou seja, refere-se ao hábito
de usar tecnologia e senso crítico para compreender o mundo ao nosso
redor. Aqui não me refiro necessariamente sobre uma atividade técnica ou
científica, e sim sobre a capacidade de lidar com dados e ter um
comportamento ativo para analisá-los. Hoje, qualquer pessoa com um
smartphone em mãos possui ferramentas amigáveis para análise de dados. A
transformação digital está inundando o mundo de dados, então é
inevitável o surgimento de uma sociedade mais analítica, que usufrui
desses recursos tecnológicos e informacionais para tomar decisões tanto
em ambientes de negócios, como no cotidiano.
Em
1998, você fundou sua primeira empresa de tecnologia da informação. A
partir dessa experiência, o que mudou nas últimas duas décadas quando
falamos sobre esse tema?
Nos anos 2000, lidar com dados era algo exclusivo para especialistas técnicos, a famosa área de TI (tecnologia da informação) tinha
a responsabilidade de executar todo trabalho de processamento e análise
de dados. Mas, em 2010, empresas de tecnologia da informação
tornaram-se referências econômicas a partir da dominação de mercados
diversos por empresas como Google, Facebook, Amazon. Esse movimento
demonstrou que a TI deixava de ser uma área de especialista e se
transformava efetivamente em um negócio. Hoje, é possível perceber que
esse tipo de conhecimento não pode ficar restrito aos especialistas. A
informação baseada em dados precisa circular e tornar-se um recurso
ativo na vida dos tomadores de decisão. Sem isso é difícil competir em
mercados que exigem agilidade e eficiência para lidar com grandes
volumes de informação em alta velocidade.
Qual a sua avaliação sobre a lei geral de proteção de dados pessoais (LGDP)?
Todas as áreas precisam de regras para funcionar, mas as leis
costumam surgir como resultado da transformação de um mercado ou da
sociedade, ou seja, primeiro a mudança ocorre e só então as regras são
estabelecidas. Foi isso o que ocorreu com a tecnologia da informação:
por um certo período, o uso de dados pessoais foi realizado de maneira
descontrolada, sem critérios específicos ou regras pré-determinadas,
dando margem para usos indevidos. Atualmente possuímos leis que
estabelecem parâmetros para uso desses dados, mas ainda é algo pouco
compreendido pela sociedade geral, então ainda precisaremos de um tempo
para que essas leis se ajustem às práticas diárias tanto dos indivíduos
como das organizações. Mas sem dúvida avançamos muito com relação ao
tema nos últimos anos.
Em 2019, em entrevista a GZH,
você falou que “as pessoas precisavam entender que o futuro
inevitavelmente vai ser mais analítico. Ele pode estar nas mãos de
poucos ou pode ter mais pessoas participando disso”. Esse pensamento se
confirmou ou está em vias de se confirmar?
Muito interessante você recuperar essa citação, pois do avanço
acelerado do tema no mundo ocorrido nesse período surgiu o termo
“self-service analytics”, que se refere às práticas e instrumentos que
simplificam o processo de análise de dados, ou seja, permitem que
qualquer pessoa se utilize de recursos analíticos no seu dia a dia sem a
necessidade de intermediários. Quando precisamos de intermediários para
realizar alguma tarefa, obviamente corremos o risco de sermos
influenciados e até manipulados por eles, por isso a autonomia na
análise é um ato de liberdade. O autor Hans Rosling referiu-se à
atividade analítica como uma forma de terapia, afirmando que ter
opiniões baseadas em fatos é um hábito libertador. Mas ainda estamos
longe de isso ser uma prática democrática ou amplamente difundida.
Precisamos expandir esse movimento de educação analítica para todos os
públicos.
Precisamos de ‘diplomacia de dados’, ou seja, de acordos saudáveis para trocas de dados entre os agentes da democracia. Talvez seja isso que nos distancie de uma democracia digital, pois ela exige um certo nivelamento do conhecimento sobre o assunto. E, em um país com as dimensões e as diferenças sociais do Brasil, é natural que isso leve mais tempo para acontecer.
Como,
então, a sociedade ou o poder público podem expandir a educação
analítica para todos os públicos? Por onde começar? Quais ações
importantes a curto e médio prazos?
A educação analítica, diferentemente do que se imagina, não
depende de uma infraestrutura tecnológica específica para ser realizada.
Precisa, sim, de formadores preparados para esse papel, que estimulem o
pensamento crítico a partir de situações reais, ajudando na
identificação dos elementos que podem ser medidos e comparados. Com o
pensamento crítico aprimorado, os indivíduos vão buscar dados, padrões e
evidências sobre os fatos que fazem parte de sua realidade, para então
realizar um julgamento analítico sobre tal situação. É claro que a
tecnologia é um potencializador nesse processo, mas, para automatizar
rotinas, acelerar o processamento e tratamento de dados, o “pensar”
precisa vir antes da etapa técnica. O filósofo Byung-Chul Han vai usar o
termo infocracia para lidar com essa questão, alertando sobre o risco
de uma crise democrática quando o processo de digitalização e
informacional está desequilibrado na sociedade. No curto prazo,
precisamos preparar os professores de educação básica
para ajudar a nova geração nesses desafios, somente inserindo esse
hábito na sociedade que realmente transformará essa prática em cultura
analítica. É necessário também acelerar essa disciplina nos ambientes
corporativos, sociais e governamentais, caso contrário o desequilíbrio
da democracia vai apenas fortalecer aqueles que estiverem melhor
preparados para lidar com dados, informações e tecnologia. Através do
Cappra Institute estamos instalando um Laboratório de Aprendizagem
Analítica no Rio Grande do Sul, para colaborar com esse desenvolvimento,
e uma série de parceiros de iniciativa privada e pública está apoiando
esse processo. Não se trata de um movimento para o futuro: é uma mudança
no comportamento da sociedade que está ocorrendo agora, em razão dessa
acelerada nova era da informação que estamos vivenciando.
Falando
sobre democracia digital, é possível replicar no Brasil o exemplo da
Estônia, que vive a chamada democracia digital? Ou é algo muito distante
da nossa realidade? Na Estônia, quase 100% de todos os serviços
governamentais são oferecidos de forma online, as prescrições médicas
são emitidas digitalmente e a população possui identificação eletrônica.
A democracia digital exige um esforço sincronizado da
sociedade, iniciativa privada e governos. Quando apenas algumas dessas
esferas realizam o movimento gera um certo tipo de vantagem para si, e,
no caso, desvantagem para as outras. Quando, por exemplo, empresas
manipulam dados de usuários, ou governos têm acessos a dados de
reconhecimento facial de indivíduos sem permissão, imediatamente esses
passam a ter vantagem do que outros, pois possuem informação
privilegiada. Precisamos de “diplomacia de dados”, ou seja, de acordos
saudáveis para trocas de dados entre os agentes da democracia. Talvez
seja isso que de fato nos distancie de uma democracia digital, pois ela
exige um certo nivelamento do conhecimento sobre o assunto por parte de
todos envolvidos. E, em um país com as dimensões e as diferenças
sociais como as que tem o Brasil, é natural que isso leve mais tempo
para acontecer.
Nossos dados já estão, em grande parte, na nuvem. Serviços de bancos, de governos, de transporte e qualquer outra atividade que seja realizada em plataformas digitais já ocorre em nuvem. Uma troca de e-mails e uma navegação em redes sociais deixam dados na nuvem. O risco não está na tecnologia de armazenamento, mas nos termos de proteção da tais dados por quem está manipulando essa informação.
Num país do tamanho do Brasil, qual o risco de todos terem dados na nuvem?
Exatamente a isso que me refiro: nossos dados já estão, em
grande parte, na nuvem. Serviços de bancos, de governos, de transporte e
qualquer outra atividade que seja realizada em plataformas digitais já
ocorre em nuvem. Uma troca de e-mails e uma navegação em redes sociais
deixam dados na nuvem. O risco não está na tecnologia de armazenamento,
mas nos termos de proteção da tais dados por quem está manipulando essa
informação. A diplomacia desses dados precisa ser mais transparente e
rastreável, para que aqueles que prestam tal serviço possam ser
responsabilizados quando algo for utilizado de maneira indevida.
Agentes
públicos têm o mesmo direito à preservação de dados em comparação aos
cidadãos comuns. Um exemplo é o sigilo de cem anos sobre inúmeras
questões da Presidência da República. Qual a sua opinião sobre essa
questão?
Leis de transparência e de preservação da privacidade de dados
já existem no Brasil, tanto para indivíduos em cargos públicos quanto
para qualquer outra pessoa, a questão de aplicação dessas regras e
devida punição, quando abuso de poder, deve ser administradas por órgãos
competentes, mas não tenha dúvida de que, quanto mais consciência a
sociedade tiver sobre o tema, maior serão as possibilidades de
julgamento com relação aos fatos. Como já comentei, informação
privilegiada ou benefícios específicos para lidar com dados restringem o
poder a poucos. E, se queremos uma sociedade mais analítica, mais
crítica e informada como fundamento para sustentação da democracia, é
preciso que todos os indivíduos respeitem as mesmas regras e tenham
acesso aos mesmos recursos.
Você participou recentemente de um evento no Hospital Moinhos de Vento
no qual se falou sobre a interconexão de informações de pacientes. A
partir daí, é possível falar sobre os potenciais do uso de dados, de
modo geral, na área da saúde, e como isso pode oferecer uma melhor
experiência para as pessoas?
A área da saúde pode avançar muito na tecnologia da informação
aplicada e consequentemente isso pode trazer grandes benefícios para
pacientes e a população de modo geral. Mas, como todos os outros
setores, essa área está com algumas dificuldades para enfrentar essa
transformação. Uma mudança nunca é algo confortável. É preciso
transformar a maneira de pensar e de agir, e médicos, hospitais,
laboratórios e pacientes não foram preparados para lidar com tanta
informação e com um potencial tecnológico tão grande, então estão todos
se adaptando durante o percurso. Debate sobre limites éticos, uso de
novas tecnologias, aprendizado de habilidades analíticas por parte dos
agentes envolvidos, tudo está ocorrendo simultaneamente, mas o paciente e
usuário desses serviços está cada vez mais atento a tudo isso, pois a
informação nunca foi tão abundante e a tecnologia, tão acessível. O
paciente acessa seus exames, faz a comparação com outros resultados
anteriores e por meio de buscas na internet já chega com análise
completa sobre esses dados antes da consulta com o médico. É um novo
hábito que desafia completamente o funcionamento tradicional do setor.
As ferramentas estão cada vez mais amigáveis, e aprender essas habilidades (ciência de dados) é fundamental para competir na era da informação. O pensamento orientado por dados se instalou como uma prática comum a todos no mundo dos negócios.
O
que você enxerga como tendência para o cenário do mercado da ciência de
dados em termos de ferramentas e habilidades no curto e médio prazo?
O mercado para quem trabalha com tecnologia da informação
continua muito aquecido, mas a valorização dessas habilidades está
superando as áreas técnicas. Os últimos anos levaram as empresas a
investirem em profissionais com características tecnocientíficas, porém,
o que se percebeu neste último ano e que permanece como tendência para
os próximos é esse complemento de habilidades analíticas ocorrendo em
profissionais de todas as áreas de negócio. As lideranças já
compreenderam que é um caminho sem volta a democratização de informação
para acelerar e melhorar a qualidade da tomada de decisão, então estão
capacitando toda a organização para lidarem melhor com dados. Ciência de
dados, aprendizado de máquina, algoritmos, inteligência artificial são
alguns dos termos que já são parte do vocabulário de negócios, e
consequentemente fazem parte do dia a dia dos profissionais,
independentemente de suas formações originais.
Como um leigo no assunto pode se preparar para esse futuro que já chegou?
As ferramentas estão cada vez mais amigáveis, e aprender essas
habilidades é fundamental para competir na era da informação. A ciência
de dados se ampliou, superou a ideia de que é uma área técnica. O
pensamento orientado por dados se instalou como uma prática comum a
todos no mundo dos negócios. Hoje é premissa fundamental para qualquer
profissional compreender que a informação tornou-se um ativo circulante
muito valioso para todos os negócios, e a tecnologia passou a ser um
recurso de automação para o melhor fluxo desses recursos nos ambientes
de negócio, então é fundamental desenvolver as habilidades analíticas
para permanecer relevante e competitivo nessa nova era da informação.
É possível falar mais sobre os três fundamentos para o trabalho em um futuro mais analítico?
O trabalho vai exigir de qualquer profissional três premissas
fundamentais: 1) Pensamento analítico ativo: todos estão se tornando
analistas de dados, então, saber interpretar e conviver com tecnologia e
informação tornou-se imprescindível no ambiente de trabalho; 2)
Habilidade para lidar com recursos analíticos: sejam esses recursos os
dados, as ferramentas ou técnicas específicas, saber navegar nesses
instrumentos pode ser um diferencial para qualquer um; 3) Abertura para
conviver com uma cultura mais analítica: em um cenário no qual todos
olham para as mesmas informações, não é mais a capacidade técnica que
vai prevalecer, e sim um olhar diverso para as situações cotidianas,
aliado ao potencial de contextualização dos dados com cenários
existentes, acrescentando a capacidade crítica com relação ao status quo
e permanecendo com uma abertura para o diálogo constante sobre os
aprendizados. Dados não são recursos imutáveis. Na verdade, a cada nova
lente aplicada nas análises, novas oportunidades são apresentadas, e é
aqui que o potencial analítico torna-se um diferencial.
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