Por Giulia Vidale — São Paulo
Em entrevista ao GLOBO, o médico americano Daniel Lieberman, especialista no assunto afirma que o papel do neurotransmissor é mais importante do que se imaginava
A dopamina é um dos neurotransmissores mais importantes do cérebro. Ela é responsável por muitas funções críticas, incluindo motivação, produtividade e foco. Entretanto, em excesso ela também pode nos prejudicar. Tanto quanto a dopamina é conhecida como a substância química do amor, da criatividade e do vício.
Tamanha é a importância dessa molécula na vida humana que há um livro inteiro dedicado a ela. Intitulada “Dopamina: a molécula do desejo”, a obra escrita pelo psiquiatra Daniel Lieberman, professor e vice-presidente para assuntos clínicos no departamento de Psiquiatria e Ciências Comportamentais da Universidade George Washington, em parceria com o roteirista e dramaturgo Michael Long, professor de redação na Universidade de Georgetown, foi lançada recentemente no Brasil pela editora Sextante.
Em entrevista exclusiva ao GLOBO, Lieberman explica como essa substância influenciou a sobrevivência da espécie humana e como até hoje influencia nossas atitudes em todos os âmbitos da vida – no amor, na criatividade e até mesmo na política. Ele também explica o que podemos fazer para encontrar o equilíbrio delicado entre o desejo e a satisfação.
Em seu livro, o senhor diz que a dopamina é a molécula do desejo. Por quê?
Nossos cérebros foram moldados pela evolução, pela necessidade de permanecermos vivos, nos reproduzindo e transmitindo nossos genes para a próxima geração. E, obviamente, permanecer vivo não é uma coisa fácil de fazer. Em muitos casos, o mundo está contra nós, especialmente para nossos ancestrais que viveram constantemente à beira da fome e da extinção. Então nosso cérebro desenvolveu caminhos que nos dão impulso e motivação para buscar as coisas de que precisamos para ter sucesso evolutivo. Esse é um dos papéis da dopamina.
E quais são os outros?
No livro, Mike – meu coautor - e eu, enfatizamos que existem duas vias importantes da dopamina. Existe a via do desejo, que em termos médicos é chamada de via mesolímbica, que é responsável pelo desejo, pela motivação e pela sensação de recompensa. Ela aparece quando trabalhamos duro e estamos prestes a conseguir o que queremos, por exemplo. Mas também há o que chamamos de circuito de controle. Em termos científicos, esse é o circuito mesocortical, porque envolve o córtex pré-frontal, a parte mais avançada do cérebro nos seres humanos. E, como o circuito do desejo, este trata de maximizar os recursos futuros, para aumentar nossa probabilidade de sobrevivência e reprodução. Mas ele faz isso de uma maneira diferente. Em primeiro lugar, ele se preocupa com um futuro mais distante do que o circuito do desejo. O circuito do desejo diz: “seria fantástico comer um donut agora”. E o circuito de controle diz: “isso pode não ser uma boa ideia porque não é saudável, etc”. Mas esse circuito também é capaz de manipular informações e conceitos abstratos, como matemática, música, justiça, leis da natureza, química, etc. E é provavelmente por causa desse circuito de controle que é impulsionado pela dopamina que os seres humanos se tornaram tão poderosos e conseguiram dominar o ambiente.
O psiquiatra Daniel Lieberman, professor e vice-presidente para assuntos clínicos no departamento de Psiquiatria e Ciências Comportamentais da Universidade George Washington. Foto: Divulgação — Foto: Divulgação
Como a dopamina está associada à criatividade?
A dopamina busca maximizar os recursos que temos. E assim só se interessa por coisas que são novas. Por exemplo, quando eu estava pensando em comprar esse celular, a dopamina estava muito ativa. Estava me fazendo desejar o celular e me dando vontade de sair e pesquisar qual eu quero. Porém, assim que consegui o celular, a dopamina desligou porque isso se tornou uma realidade. Não era mais uma possibilidade. Então a dopamina é usada para processar coisas que não temos e isso pode facilmente se transformar em processar coisas que não existem. Como quer sempre mais, a dopamina sempre precisa de algo novo. Isso explica metade do aspecto criativo da dopamina. A outra metade é que a dopamina está focada no futuro, não no presente. O presente é o que é. Não podemos mudá-lo. Apenas o futuro é maleável e é aí que a dopamina está envolvida. Uma vez que somos capazes de processar dentro de nossos cérebros coisas que não existem fisicamente, isso abre a porta para a criatividade porque agora podemos pensar sobre o que poderia ser, e então podemos criar coisas úteis que ainda não existem.
E como ela impacta na nossa ideologia ou preferência política?
O que descobrimos é que, se dermos questionários para avaliar o quão forte é o foco no futuro, sistema conduzido pela dopamina, em comparação com o foco no “aqui e agora”, conduzido por outros químicos cerebrais como serotonina, oxitocina, endorfina e endocanabinoides, podemos ver que aqueles que pontuam mais nos traços de dopamina tendem a ser progressivos ou liberais. Já aqueles que pontuam mais no foco “aqui e agora” são mais propensos a serem conservadores. Essa tendência não pode ser avaliada do ponto de vista individual, mas ela aparece muito claramente quando analisamos grandes grupos de indivíduos. E essa descoberta não deveria ser surpreendente porque a dopamina nos faz querer mudar as coisas, e é disso que trata a ideologia progressista liberal. É uma ideologia muito idealista. Os conservadores, por outro lado, estão realmente focados em quais são as coisas boas que temos agora. Quais são as coisas boas que herdamos de nossos antepassados? Precisamos garantir que não perderemos essas coisas e vamos apenas aproveitar as coisas maravilhosas pelas quais trabalhamos e que temos. São dois pontos de vista muito diferentes, refletindo diferentes tipos de química cerebral. Por isso, pode ser difícil para nós nos colocarmos no lugar de alguém que tem um ponto de vista político diferente do nosso e isso é um problema. E o problema é agravado pelo fato de que se você aderir a uma determinada ideologia política, quanto mais você odeia as outras pessoas, mais útil você será para o partido ao qual pertence. Então as partes gastam muito tempo e energia descobrindo maneiras de nos fazer odiar uns aos outros. E eles têm sido incrivelmente bem-sucedidos nessa missão.
O senhor diz que a dopamina também pode afetar nossa vida amorosa, em especial no que diz respeito à traição. Como funciona essa relação?
Apaixonar-se pode ser uma das experiências mais intensas e prazerosas que o ser humano vive ao longo de toda a sua vida. Quando estamos apaixonados, o mundo é novo, com infinitas possibilidades. Com aquela pessoa maravilhosa por quem nos apaixonamos em nossas vidas, nada jamais será o mesmo. É uma sensação absolutamente maravilhosa. E a dopamina desempenha um papel muito importante nisso, porque é sobre sempre querer mais e mais dessa sensação. Mas o problema é que isso não dura para sempre. Em média, a paixão dura cerca de 12 meses e depois a dopamina começa a diminuir e a intensidade daquele sentimento de estar apaixonado também. Nesse ponto, as pessoas costumam cometer um erro. Eles acham que como o sentimento de estar apaixonado, está desaparecendo, talvez isso signifique que esta não é a pessoa certa para elas. Mas isso não é verdade. É assim que o cérebro funciona. O que precisa acontecer é o amor apaixonado evoluir para algo chamado amor companheiro. O amor companheiro não envolve dopamina, mas sim algumas das substâncias químicas do cérebro “aqui e agora”, especificamente a oxitocina. O amor companheiro não tem a intensidade febril do amor apaixonado, mas pode ser muito maravilhoso. Essa pessoa por quem você se apaixonou evolui para seu melhor amigo, alguém que está sempre ao seu lado, em quem você sabe que pode confiar e sua vida se torna cada vez mais profundamente entrelaçada com a dela. E acho que se pode argumentar que, ao longo das décadas, isso é ainda mais maravilhoso do que o amor apaixonado. Se nos deixarmos seduzir pela dopamina que quer a excitação e a novidade, isso vai levar à traição, porque a pessoa acha que precisa da emoção do novo parceiro. Então a dopamina nos colocará em um relacionamento maravilhoso. Mas se não tivermos cuidado, ela também pode arruinar esse relacionamento maravilhoso.
Como a dopamina está associada aos vícios e por que algumas pessoas são mais propensas a isso?
Nosso cérebro usa dopamina para nos motivar a fazer as coisas mais importantes do ponto de vista evolutivo. Para conseguir comida quando estamos com fome, para obter água quando estamos com sede, para ganhar competições, ter um bom desempenho no trabalho, para proteger nossos filhos etc. Essas são coisas que impulsionam a dopamina e, portanto, para as quais temos mais motivação. O que as drogas fazem é estimular artificialmente esse circuito de dopamina e atingi-lo com uma explosão química mais forte do que qualquer outro estímulo, mais forte do que qualquer comportamento natural, como se destacar no trabalho ou proteger os filhos. Isso nos leva a experimentar a crença de que obter essa droga é a coisa mais importante. O cérebro humano julga a importância de uma coisa pela quantidade de dopamina que ela libera. Por exemplo, se você for ao cinema, isso pode liberar um pouco de dopamina. Se você passar um tempo com a pessoa por quem está apaixonado, isso liberará muita dopamina. Então você escolhe a pessoa por quem está apaixonado. Como as drogas estimulam artificialmente esse circuito de forma tão poderosa, com o tempo, os viciados vão escolher a droga em detrimento de todo o resto. Eles vão escolher isso em vez de relacionamentos, em vez do trabalho, em vez da estabilidade financeira e até mesmo de sua saúde física. É por isso que, de fora, parece que os viciados estão se comportando de maneira irracional. Parece que eles estão tomando as decisões mais estúpidas e que estão destruindo suas vidas. Mas por dentro, parece uma escolha perfeitamente racional porque a droga estimula a dopamina e faz isso parecer ser a coisa mais importante da vida.
Os videogames e as mídias sociais também podem causar esse efeito?
Sim, mas não de um jeito tão poderoso quanto as drogas. A maioria das pessoas não se torna viciada em coisas como videogame e mídia social. Mas haverá pessoas com maior nível de vulnerabilidade. Por isso vemos vícios em jogos de azar, vemos vícios em videogames nos quais as crianças param de fazer trabalhos escolares e podem até se tornar violentas quando os pais tentam estabelecer limites para o tempo que eles jogam. Cada vez mais, vemos pessoas usando as mídias sociais de maneira prejudicial. Acho que todos nós já passamos pela experiência de navegar pelo feed de uma mídia social e nos sentir deprimidos e para baixo, certo? Mas não paramos porque a dopamina está nos dizendo que se rolar o feed mais um pouco pode haver algo sobre você, pode haver algo útil.
Existe uma maneira de usar a dopamina a nosso favor?
Sim absolutamente. A dopamina é uma ferramenta incrivelmente poderosa e, como qualquer ferramenta poderosa, pode ser muito construtiva. Não há nada melhor do que trabalhar em algo que te excita, e isso é a dopamina te impulsionando. A dopamina dá a você novas ideias que podem mudar sua vida, às vezes até mudar o mundo. Mas a dopamina também pode ser muito destrutiva. Portanto, acho que devemos abraçar todas as coisas maravilhosas que a dopamina pode fazer, mas perceber que isso é um furacão. É um animal selvagem. Ele pode facilmente ficar fora de controle. E temos que ter cuidado.
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