Por Byung-Chul Han, entrevistado por Nathan Gardels no Noema | Tradução: Maurício Ayer | Arte: Nelson Makamo
Estamos mergulhados num mar de informação
sem narrativa ou verdade, diz pensador. Isso atomiza e desorienta as
sociedades, nutrindo demanda autoritária. A Filosofia sucumbiu. Pode ser
despertada pela Arte, possível fagulha da revolução
OutrasPalavras
Byung-Chul Han é um filósofo alemão nascido na Coreia do Sul e teórico cultural cujos livros recentes incluem A sociedade do cansaço e O desaparecimento dos rituais. Ele conversou com Nathan Gardels, editor-chefe do site Noema. Leia a entrevista a seguir.
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Nathan Gardel – Johann Wolfgang von Goethe comentou certa vez
que: “Quando as eras estão em declínio, todas as tendências são
subjetivas; mas, por outro lado, quando as coisas estão amadurecendo
para uma nova época, todas as tendências são objetivas. Cada esforço
digno direciona sua força do mundo interior para o mundo exterior.”
Por essa definição, a nossa é uma era de declínio que mudou
do exterior para a obsessão interior com identidade e “autenticidade”,
tanto pessoais quanto tribais, alimentadas pela conectividade digital.
Paradoxalmente, a mídia social nesse sentido é antissocial, levando à
desintegração da comunidade por meio de uma espécie de isolamento
conectado.
Qual é a dinâmica e quais são os mecanismos por trás do que
você chama de “crise da comunidade”? Quais são as consequências de como
nos sentimos e vivemos em nossas vidas cotidianas?
Byung-Chul Han – O ego narcísico voltado para
dentro, com acesso puramente subjetivo ao mundo, não é a causa da
desintegração social, mas o resultado de um processo incontornável no
nível objetivo. Tudo o que liga e conecta está desaparecendo. Quase não
existem valores ou símbolos compartilhados, nem narrativas comuns que
unam as pessoas.
A verdade, provedora de significado e orientação, também é uma
narrativa. Estamos muito bem informados, mas ainda assim não conseguimos
nos orientar. A informatização da realidade leva à sua atomização —
esferas separadas do que se pensa ser verdadeiro.
Mas a verdade, ao contrário da informação, tem uma força centrípeta
que mantém a sociedade unida. Em contrapartida, a informação é
centrífuga, com efeitos muito destrutivos na coesão social. Se quisermos
compreender em que tipo de sociedade estamos vivendo, precisamos
entender a natureza da informação.
Bits de informação não fornecem significado nem orientação.
Eles não se amalgamam em uma narrativa. Eles são puramente aditivos. A
partir de certo ponto, já não informam — deformam. Eles podem até
obscurecer o mundo. Isso os coloca em oposição à verdade. A verdade
ilumina o mundo, enquanto a informação vive da atração da surpresa,
levando-nos a um frenesi permanente de momentos fugazes.
Recebemos as informações com uma suspeita fundamental: as coisas
podem ser diferentes. A contingência é um traço da informação e, por
isso, as fake news são um elemento necessário da ordem
informacional. Portanto, as notícias falsas são apenas mais uma
informação e, antes que qualquer processo de verificação possa começar,
elas já fizeram seu trabalho. Elas ultrapassam a verdade, e a verdade
não pode alcançá-las. Notícias falsas são à prova de verdade.
A informação acompanha a suspeita fundamental. Quanto mais somos
confrontados com informações, mais nossa suspeita cresce. A informação
tem a face de Janus — ela simultaneamente produz certeza e incerteza.
Uma ambivalência estrutural fundamental é inerente a uma sociedade da
informação.
A verdade, ao contrário, reduz a contingência. Não podemos construir
uma comunidade ou democracia estável sobre uma massa de contingências. A
democracia requer valores e ideais vinculativos e convicções
compartilhadas. Hoje, a democracia dá lugar à infocracia.
Como você sugere em sua pergunta, outra razão para a crise da
comunidade, que é uma crise da democracia, é a digitalização. A
comunicação digital redireciona os fluxos de comunicação. A informação é
disseminada sem formar uma esfera pública. É produzido em espaços
privados e distribuído para espaços privados. A web não cria um público.
Isso tem consequências altamente deletérias para o processo
democrático. As redes sociais intensificam esse tipo de comunicação sem
comunidade. Você não pode forjar uma esfera pública com influenciadores e
seguidores. As comunidades digitais têm a forma de mercadorias; em
última análise, elas são mercadorias.
Claro, havia informações no passado também. Mas não determinavam a
sociedade em tal grau como hoje. Na antiguidade, as narrativas míticas
determinavam a vida e o comportamento das pessoas. A Idade Média foi,
para muitos, determinada pela narrativa cristã. Mas a informação estava
embutida na narrativa: um surto de peste não era uma informação pura e
simples. Era integrado na narrativa cristã do pecado.
Hoje, ao contrário, não temos mais narrativas que forneçam sentido e
orientação para nossas vidas. As narrativas desmoronam e se transformam
em informações. Com algum exagero, podemos dizer que há nada além de
informação sem horizonte hermenêutico de interpretação, sem método de
explicação. Pedaços de informação não se fundem em conhecimento ou
verdade, que são formas de narração.
O vácuo narrativo em uma sociedade da informação faz com que as
pessoas se sintam descontentes, especialmente em momentos de crise, como
a pandemia. As pessoas inventam narrativas para explicar um tsunami de
números e dados desorientadores. Muitas vezes, essas narrativas são
chamadas de teorias da conspiração, mas não podem ser simplesmente
reduzidas ao narcisismo coletivo. Elas prontamente explicam o mundo. Na
web, abrem-se espaços para que experiências de identidade e coletividade
voltem a ser possíveis. A web, portanto, é tribalizada –
predominantemente entre grupos políticos de direita, entre os quais há
uma necessidade muito forte de identidade. Nesses círculos, as teorias
da conspiração são aceitas como ofertas para assumir uma identidade.
Friedrich Nietzsche disse certa vez que nossa felicidade consiste na
posse de uma verdade inegociável. Hoje, não temos mais essas verdades
inegociáveis. Em vez disso, temos uma superabundância de informações.
Não tenho certeza de que a sociedade da informação seja uma continuação
do Iluminismo. Talvez precisemos de um novo tipo de iluminismo. Sobre um
novo iluminismo, Nietzsche observou: “Não basta que você perceba a
ignorância em que vivem os humanos e os animais, é preciso também ter a
vontade de ser ignorante e aprender mais. Você precisa compreender que
sem esse tipo de ignorância a vida se tornaria impossível, que somente
sob a condição dessa ignorância as vidas podem se preservar e
florescer.”
Como você escreveu em seu livro mais recente, os rituais
sociais outrora criaram aquele vínculo narrativo objetivo que manteve as
sociedades unidas. Eles “estabilizaram a vida”, como você diz.
Agora tais rituais estão sendo atacados pela bola de
demolição da desconstrução como nada mais do que os desígnios dos
privilegiados que tiveram o poder de impô-los no passado. No mundo
horizontal de hoje, sem hierarquia de valor legítima, a projeção
subjetiva entra em cena para preencher o vácuo.
A partir dessas ruínas de uma ordem objetiva, como podem ser
restabelecidas as âncoras estabilizadoras do ritual? Em qual base? Com
autoridade de quem? Como será a vida se isso não for possível?
Eu não promoveria uma reativação de rituais passados. Isso
simplesmente não é possível porque os rituais da cultura ocidental estão
intimamente associados à narrativa cristã. E em todos os lugares a
narrativa cristã está perdendo seu poder. Resta pouco, além do Natal.
Os rituais encontravam uma comunidade. Ao contrário do que sugere a
sua pergunta, não é inevitável que os rituais solidifiquem as relações
de poder existentes. Muito pelo contrário. No Carnaval, as relações de
poder são invertidas, de modo que os escravos podem criticar e até
zombar de seus senhores. Frequentemente, os papéis são trocados: os
mestres servem a seus escravos. E o tolo sobe ao trono como rei. Essa
suspensão temporária ritualizada da estrutura de poder estabiliza a
comunidade.
Num mundo completamente sem rituais e totalmente profano, resta apenas o consumo e a satisfação das necessidades. É o Admirável Mundo Novo
de Aldous Huxley, no qual todo desejo é imediatamente satisfeito. As
pessoas mantêm o bom humor com a ajuda da diversão, do consumo e do
entretenimento. O estado distribui uma droga chamada soma para aumentar a
sensação de felicidade na população. Talvez, em nosso admirável mundo
novo, as pessoas recebam uma renda básica universal e tenham acesso
ilimitado a videogames. Essa seria a nova versão do panem et circenses (“pão e circo”).
No entanto, não sou totalmente pessimista. Talvez possamos
desenvolver novas narrativas, que não pressuponham uma hierarquia.
Podemos facilmente imaginar uma narrativa plana. Cada narrativa
desenvolve seus próprios rituais com o objetivo de torná-la habitual,
incorporando-a ao corpo físico. A cultura funda a comunidade.
Depois da pandemia, o que mais precisa de recuperação é a cultura. As
manifestações culturais como o teatro, a dança e até o futebol têm um
caráter ritual. A única maneira pela qual podemos revitalizar a
comunidade é por meio de formas rituais. Hoje, a cultura é mantida coesa
apenas por relações instrumentais e econômicas. Mas isso não funda
comunidades – isola as pessoas. A arte, em particular, deve desempenhar
um papel central na revitalização dos rituais.
O que mais precisamos são estruturas temporais que estabilizem a
vida. Quando tudo é de curto prazo, a vida perde toda a estabilidade. A
estabilidade vem através de longos períodos de tempo: fidelidade,
vínculos, integridade, compromisso, promessas, confiança. Estas são as
práticas sociais que mantêm uma comunidade unida. Todas elas têm um
caráter ritual. Todas elas exigem muito tempo. O terror atual do
imediatismo – que, com consequências fatais, confundimos com liberdade –
destrói as práticas que exigem tempo. Para combater esse terror,
precisamos de uma política temporal muito diferente.
Em O Pequeno Príncipe, a raposa quer ser visitada pelo
principezinho sempre no mesmo horário, para que sua visita se torne um
ritual. O pequeno príncipe pergunta à raposa o que é um ritual, e a
raposa responde: “Essas também são ações muitas vezes negligenciadas. …
São eles que tornam um dia diferente dos outros dias, uma hora das
outras horas.”
Os rituais podem ser definidos como tecnologias temporais para se
abrigar. Eles transformam estar no mundo em estar em casa. Os rituais
estão no tempo como as coisas estão no espaço. Eles estabilizam a vida
estruturando o tempo. Eles nos dão espaços festivos, por assim dizer,
espaços nos quais podemos entrar em comemoração.
Como estruturas temporais, os rituais prendem o tempo. Espaços temporais nos quais podemos entrar em comemoração não passar dessa pra melhor. Sem tais estruturas temporais, o tempo se torna uma torrente que nos separa uns dos outros e de nós mesmos.
Você disse que olha para a arte como “o salvador” das
condições que você descreveu, já que a filosofia hoje carece da
qualidade transformadora que já teve. O que você quer dizer com isso?
A filosofia tem o poder de mudar o mundo: a ciência europeia começou
apenas com Platão e Aristóteles; sem Rousseau, Voltaire e Kant, o
Iluminismo europeu seria impensável. Nietzsche fez o mundo aparecer sob
uma luz inteiramente nova. O Capital de Marx fundou uma nova época.
Hoje, porém, a filosofia perdeu completamente esse poder de mudar o
mundo. Não é mais capaz de produzir uma narrativa de romance. A
filosofia degenera em uma disciplina acadêmica e especializada. Não está
voltada para o mundo e para o presente.
Como podemos reverter esse desenvolvimento e garantir que a filosofia
recupere seu poder de mudar o mundo, sua magia? Meu sentimento é que a
arte, em oposição à filosofia, ainda está em uma posição em que pode
evocar o vislumbre de uma nova forma de vida.
A arte sempre trouxe uma nova realidade, uma nova forma de percepção.
Durante toda a sua vida, Paul Klee disse: “Imanentemente, não posso ser
compreendido de forma alguma. Porque vivo com os mortos, assim como
vivo com os que estão por nascer. Um pouco mais perto do coração da
criação do que o corriqueiro. E, ainda assim, não perto o suficiente”.
É possível que a art e esteja mais próxima do coração da criação do
que a filosofia. É, portanto, capaz de deixar algo inteiramente novo
começar. A revolução pode começar com, tão somente, uma cor inédita, um
som inédito.
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