Um dos autores franceses mais lidos na atualidade, Gilles Lipovetsky publica seus livros em prestigiosas coleções da editora Gallimard, a mais importante da França e uma das grandes marcas editoriais do mundo, nas quais saíram livros de pensadores como Michel Foucault. Lipovestky está em Porto Alegre ministrando um curso sobre “Moda e cultura” na PUCRS. Ao voltar para Paris, lançará sua nova e provocativa obra: A nova era do Kitsch: ensaio sobre a civilização do excesso. Em nossas andanças pela capital gaúcha – do Embarcadero ao Barranco, passando pelo Café Cantante, no Bom Fim –, conversamos bastante sobre os temas que ele analisa com fineza e coragem para se contrapor a algumas das novas crenças ou novos dogmas das sociedades. Durante os encontros, aproveitamos para brincar com imagens capazes de refletir seus temas, como uma foto com o pôr do sol no Guaíba iluminando o coração do visitante e produzindo um efeito inesperado. Lipovetsky teve também um encontro com mestrandos, doutorando e professores do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Famecos/PUCRS.
A moda continua baseada na clivagem masculino – feminino?
Gilles Lipovetsky – Sem dúvida. Por mais que especialista em marketing da moda digam o contrário, as estatísticas mostram que a maior parte do consumo de cosméticos e de cirurgias plásticas diz respeito às mulheres. Homens podem fazer o que quiserem, alguns fazem, mas a maioria não. Mulheres podem se apropriar de todo o repertório de roupas masculinas. Homens não fazem mesmo com o feminino, salvo em condições específicas. Heterossexuais masculinos não irão para o escritório de saia ou de vestido. Por razões que podem ser estudadas, elementos de simbolização da sexualidade permanecem por toda parte.
A relativização do que é beleza derrubou os clássicos padrões
Lipovetsky – Vivemos numa era de democratização do gosto e da moda. Padrões de beleza têm sido atacados duramente como excludentes. Mas, como nichos dentro do todo, eles ainda existem. A revista alemã “Brigitte” decidiu não publicar mais imagens de top models – em geral, brancas, magras e altas –, preferindo divulgar imagens de mulheres ditas comuns. Em dois anos, fechou. As mulheres que compravam a revista perderam o interesse por ela. Os concursos de beleza continuam existindo. Nunca se consumiu tantos produtos de beleza e nunca se recorreu tanto a procedimentos médicos para alterar ou corrigir o corpo de maneira a torná-lo mais próximo de algum ideal de beleza. Por um lado, com razão, combate-se a ditadura da beleza. Por outro lado, há quem busque permanentemente corresponder a algum parâmetro.
Pode existir uma moda durável e sustentável?
Lipovetsky – Esse é um dos temas do momento. Para mim, trata-se de um paradoxo, quase um oximoro. A moda é por definição o que não dura, o que passa, o efêmero. Há, porém, uma nova sensibilidade no ar, que valoriza a permanência, a sustentabilidade, o durável. A moda, contudo, desde a Idade Média, tem a ver com o frívolo, com o passageiro, com detalhes que podem ser alterados a qualquer momento. Na hipermodernidade, a própria indústria da moda deixa espaço para a customização. Cada um pode acrescentar algo ao que adquire de modo a se sentir diferente, singular, único. Não vejo como a moda possa continuar a ser moda se ela se tornar o oposto da lógica da mudança.
Qual a relação entre moda e ecologia?
Lipovetsky – A indústria da moda é uma das mais poluentes do mundo. A produção de um jeans, por exemplo, não se dá sem prejuízos à natureza. A engrenagem da moda contribui para o aquecimento global pela emissão de carbono. Precisamos descarbonizar o mundo. Dificilmente isso se dará, contudo, adotando roupas usadas. É algo de uma escala global muito complexa. As grandes marcas estão assustadas com as pressões que sofrem. Se uma estrela reclama de uma bolsa feita de couro de crocodilo, argumentando que não tolera o sofrimento animal, a grife reage prometendo mudar seus procedimentos. Muito dinheiro é investido em marketing para apresentar uma nova imagem. O problema, claro, persiste. É uma questão de fundo ainda não plenamente resolvida.
É possível imaginar uma sociedade sem moda?
Lipovetsky – Já existiram sociedades sem moda e existem culturas em que esse culto do novo não é praticado. Será que a cultura ocidental poderá viver sem moda? O feminismo tem criticado, não sem razão, a objetificação da mulher pela moda. Há um efeito social importante em função dessa percepção, mas, do ponto de vista estatístico, nada se alterou radicalmente. Mulheres poderosas ou empoderadas continuam a lançar mão de todos os artifícios da moda para se sentirem bem consigo mesmas ou por se sentirem bem dessa maneira. Ou para efeitos de imagem, sedução e lugar social. Na hipermodernidade, insisto, cada um faz o que quer, todos os estilos são aceitos e possíveis. Eles convivem. Ninguém pode impor um estilo a todos. Em contrapartida, produtos de luxo circulam, atraem o interesse e são adquiridos e exibidos com orgulho e satisfação. Há também o gosto de se embelezar, para quem não tem dinheiro, com produtos que custam pouco, como mostra o fast fashion, e produzem um contentamento de si para quem os usa.
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