terça-feira, 31 de janeiro de 2023

A doce vida dos banqueiros no Brasil.

Por José Alvaro Cardoso*

Foto: Reprodução

A condição de independência do Banco Central do Brasil (BCB), formalizada em 2021, deve ser compreendida no contexto de conforto absoluto no qual vivem os bancos no Brasil, desde há muito tempo. Pouca gente sabe que, também no ano de 2021, foi aprovada a Lei 14.185/2021, que autoriza o Banco Central do Brasil (BCB) a receber depósitos voluntários remunerados das instituições financeiras. O objetivo anunciado daquela lei foi instrumentalizar o Banco Central no controle da chamada liquidez (disponibilidade de dinheiro), a fins de controle do estoque da dívida pública.   

Os depósitos no Banco Central são um instrumento de controle da liquidez, visando manter os níveis de circulação de moeda, garantindo o funcionamento da economia, sem gerar inflação por excesso de meio circulante, por exemplo. Existem dois tipos de depósitos: o feito à vista (advindos de depósitos em dinheiro) e o a prazo (de aplicações financeiras). Pelos depósitos feitos a prazo os bancos são remunerados, recebem uma contrapartida do Banco Central, pela entrega do recurso.  Os depósitos compulsórios são exigidos pelo BCP nas duas modalidades de depósito, definindo um percentual dos recursos que ficarão obrigatoriamente depositados, tanto nos recursos à vista, quanto nos depositados a prazo. O que a lei aprovada em 2021 fez foi possibilitar legalmente a remuneração dos depósitos voluntários a prazo.

Até então o principal mecanismo do BCB para controlar a liquidez da economia eram as Operações Compromissas, através das quais a autoridade monetária central vende aos bancos e investidores títulos públicos emitidos pelo Tesouro Nacional com esse objetivo. Cada título emitido pelo Tesouro Nacional, através dessas operações, aumenta o estoque da dívida pública. Esse foi um dos principais argumentos dos defensores da Lei 14.185/2021. A Lei teoricamente possibilita reduzir os valores da dívida pública, na medida em irá trocar as operações compromissadas (que requerem a emissão de títulos públicos) por depósitos. Com a nova metodologia o Brasil poderá “limpar” valores da dívida pública total devido ao estoque de títulos que o BC tem de usar para praticar as operações compromissadas, aproximando os dados contábeis da dívida de conceitos internacionais. 

A Auditoria Cidadã da Dívida (Associação sem fins lucrativos que busca realizar auditorias da dívida pública brasileira), vem denunciando a Lei do “Depósito Voluntário Remunerado”, como mais uma mamata oferecida aos bancos pelo BCB, totalmente sem limites ou parâmetros. Segundo a Auditoria Cidadã, o Banco Central tem recebido, além do depósito compulsório, grande parte da sobra de caixa dos bancos e tem remunerado esses valores por meio de uma irregularidade, feita mediante o abuso das “Operações Compromissadas”, que no Brasil já chegaram a 24% do PIB. 

Segundo a Auditoria, esse esquema, conhecido também como “bolsa-banqueiro”, custou quase R$ 3 trilhões ao Tesouro Nacional em 10 anos. A economista Maria Lúcia Fattorelli, coordenadora nacional daquela organização, chama a atenção para que, em março de 2020, quando o Banco Central disponibilizou R$1,2 trilhão de liquidez aos bancos, e o dinheiro ficou empoçado porque a economia estava “morta”, o BCB chegou a remunerar essas instituições financeiras sobre esse valor parado em seus caixas. Ou seja, enquanto a economia real afundava, o Banco Central remunerava dinheiro parado no caixa dos bancos, que ele mesmo havia emprestado. 

Essa manobra foi realizada sem a existência de um banco central “independente”. Para a Auditoria Cidadã, a Lei que foi aprovada em 2021 é um prêmio aos bancos que atuam no Brasil, pois as operações de remuneração do dinheiro que sobra no caixa dos bancos, até então eram realizadas de forma abusiva, através das chamadas Operações Compromissadas. Esta era uma ação ilegal dos bancos, que foi legalizada através da Lei 14.185/2021. 

O dinheiro existente nos caixas dos bancos pertence aos correntistas (pessoas físicas, empresas privadas, estatais, órgãos governamentais), estando em aplicações financeiras, ou não. Em uma situação “normal” os bancos deveriam emprestar esses recursos à sociedade, em troca de juros compatíveis com a realidade, disponibilizando recursos para consumo e investimentos, cumprindo assim uma função essencial do sistema financeiro que é a intermediação do crédito. 

Uma parte dos recursos é destinada aos Depósitos Compulsórios, mecanismo que exerce um certo controle da chamada alavancagem, isto é o empréstimo do mesmo recurso várias vezes, que é uma das fontes das crises financeiras. Antes da aprovação da Lei 14.185/2021, o Banco Central favorecia largamente os bancos com as tais Operações Compromissadas, o que era ilegal. A lei veio resolver esse problema da ilegalidade e possibilitar uma grande mamata, a remuneração diária do dinheiro em caixa dos bancos, sem a necessidade de esses trabalharem para emprestar o dinheiro em caixa, o que deveria ser papel das instituições bancárias. 

Tais operações são feitas também em outros países. O problema é que o Brasil é, disparado, o país com o maior volume dessas operações no mundo, chegando a 24% do PIB. Com o detalhe impressionante de que o país que ocupa o segundo lugar nessas operações, as Filipinas, tem 3% do PIB destinado a esse objetivo. Ou seja, o nível dessas operações no Brasil não se compara com qualquer outro país. Os dados divulgados pela Auditoria Cidadã têm como fonte informações apuradas pelo IFI (Órgão Fiscal Independente), do Senado Federal, com a finalidade de analisar e acompanhar as contas públicas do país. 

A esse respeito chamou a atenção matéria do jornal Valor Econômico (“Para analistas, risco político adiciona prêmio aos ativos”, de 10/1/2023), jornal insuspeito de posições de esquerda, na qual um investidor de títulos da dívida pública brasileira, admite que o Brasil remunera com juros de padrão “bastante alto para os padrões dos mercados emergentes”. É certo que o investidor mencionado foi eufemístico nas suas afirmações, o que é normal, afinal de contas tem que disfarçar um pouco. Mas na realidade o Brasil é uma verdadeira galinha dos ovos de ouro à disposição de banqueiros, especuladores e outros tipos que circulam pelo planeta. 

Segundo o levantamento referente a dezembro último, realizado pela Infinity Asset (gestora de recursos) entre 40 países analisados, o Brasil tem a taxa de juros mais elevada (8,16%), seguido por México (5,39%), Chile (4,66%), Hong Kong (3,12%) e Colômbia (2,39%). A principal razão imediata desta posição, que o Brasil ocupa há muitos anos com pequenas variações, são as taxas de juros explosivas. Atualmente a taxa básica de juros, a Selic, está em 13,75%, supostamente para conter uma inflação, que nada tem a ver com demanda. Claro, este argumento é apenas a tentativa de ocultar esse mecanismo cruel de subtração de toda uma população em benefício de banqueiros.  

Na pesquisa mencionada acima, a média de juros reais entre os 40 países listados é de juros negativos (-2,16%), mostrando o nível da monstruosidade da política praticada pelo Banco Central Brasileiro. Estão sempre inventando “razões técnicas” para manter os maiores juros reais do planeta, que carreiam lucros exorbitantes aos banqueiros, simultaneamente, em que mais da metade da população brasileira vive em situação de insegurança alimentar.  

*José Álvaro Cardoso é economista e supervisor técnico do DIEESE em Santa Catarina.
Fonte:  https://desacato.info/a-doce-vida-dos-banqueiros-no-brasil-por-jose-alvaro-cardoso/#more-30027

segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

Lula acerta na economia?

Por Paulo Nogueira Batista Júnior*

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Nas primeiras semanas de governo, o Presidente da República agiu com rapidez na área econômica. Autorizou diversas medidas e emitiu opiniões sobre a política econômica, dando sequência ao que fez na campanha eleitoral. Se ele vem acertando ou não, é objeto de intensa controvérsia.

A ortodoxia econômica, inclusive e destacadamente a turma da bufunfa e seus numerosos porta-vozes na mídia, parece cada vez mais inquieta. Esperavam um Lula mais dócil, mais parecido com o Lula 1 do tempo da dupla Antônio Palocci/Henrique Meirelles – período em que os economistas desenvolvimentistas, por sua vez, estavam furiosos, criticando publicamente o governo. Eu mesmo mandava ver, até com certo exagero, diria em retrospecto.

O Lula 3 se configura agora como independente e assertivo na área econômica, e mesmo mais do que o Lula 2, do período Guido Mantega, que já causava certos arrepios. O barulho é atualmente bem intenso. Fazer o quê? A insatisfação nas hostes mercadistas deve ser enfrentada com paciência e tranquilidade. Com diálogo e medidas consistentes, essas reações talvez possam ser mitigadas. Não acredito muito, confesso, mas manifesto a esperança.

Se fosse economista, o Lula atual seria um desenvolvimentista, keynesiano e heterodoxo. Não é à toa que a turma da bufunfa dá “arrancos triunfais de cachorro atropelado”, como diria Nelson Rodrigues. Não sendo economista, é natural que o Presidente dê escorregões quando entra na seara econômica com mais especificidade. Trato de alguns deles na sequência. No fundamental, porém, ele está acertando.

A controvérsia suscitada pelos primeiros passos do governo é vasta. Vou tratar apenas de certas questões relacionadas ao Banco Central (BC), à política monetária e à política fiscal.

Causou celeuma, por exemplo, a opinião do Presidente sobre a sacrossanta autonomia do Banco Central. Lula lembrou que no Brasil “se brigou muito para ter um BC independente”, mas que, com sua experiência, pode dizer que é “uma bobagem achar que um BC independente vai fazer mais do que do que quando era o Presidente da República quem indicava”. E acrescentou: “Duvido que o atual presidente do BC seja mais independente do que foi Meirelles’’, observando ainda que o BC, embora independente, não tem cumprido as metas de inflação nos anos recentes.

Está certo o Presidente? Basicamente, sim, ainda que não em alguns pontos mais específicos. O BC brasileiro se tornou autônomo, não independente. Na literatura acadêmica – que presidente nenhum tem obrigação de conhecer – “independente” é o BC que fixa as próprias metas de inflação; “autônomo” o que busca as metas fixadas pelo governo. No Brasil, é o Conselho Monetário Nacional (CMN) que fixa as metas e o intervalo em torno do centro das metas.

Mas isso é, em parte ficção, o que dá razão a Lula. A influência do BC no CMN é grande, pois tem um dos três votos e exerce a secretaria. Na prática, o BC fixa as metas para si mesmo, pelo menos em certos períodos. Já escrevi sobre isso (ver “Conselho Monetário e Banco Central – uma revisão necessária”, 30 de maio de 2022). Agora, pelo que sei, o CMN será integrado pelo ministro Fernando Haddad, que o preside, pela ministra Simone Tebet e pelo presidente do BC, Roberto Campos Neto. Admitindo-se que a Tebet siga uma linha mais conservadora, Haddad será minoria no CMN. E o BC talvez tenha condições, na prática, de continuar fixando as próprias metas.

Outro ponto é que, diferentemente do que sugere a fala de Lula, o presidente e os diretores do BC continuam sendo indicados pelo Presidente da República. O que mudou? Com a lei de autonomia, aprovada durante o governo Bolsonaro, o comando da autoridade monetária tem mandatos fixos, não coincidentes com o do Presidente da República. Lula sabe disso, com certeza. O que ele quis dizer? A meu juízo, que o atual presidente do BC não será mais independente do que foi Henrique Meirelles, presidente do BC durante o Lula 1 e o Lula 2. Lei de autonomia ou não, Roberto Campos Neto terá de coordenar a política monetária com a política fiscal e outros aspectos da política econômica, como ocorre, aliás, em todos ou quase todos os países. Espero que isso aconteça realmente. Veremos.

Lula declarou, ainda, que uma meta de inflação excessivamente ambiciosa atrapalha o crescimento econômico. “Por que não estabelecer 4,5%, como fizemos nos meus mandatos anteriores?”, indagou. A controvérsia a esse respeito é internacional e ocorre também nos países desenvolvidos, onde também se questiona se os bancos centrais não fixaram metas de inflação excessivamente ambiciosas. A opinião do Presidente da República é defensável – conta com apoio de muitos especialistas tanto aqui como no exterior.

No Brasil, as metas atuais são de 3,25% para 2023 e de 3% para 2024. Este é o centro das metas, que têm um intervalo de 1,5 ponto percentual para cima e para baixo em torno desse centro. Seria perfeitamente razoável, na próxima ocasião em que o CMN se reunir para tratar do tema, aumentar um pouco o centro da meta de 2024 e 2025, digamos para 3,25% e o intervalo para 2 pontos percentuais. O teto da meta ficaria assim em 5,25%. Um ajuste minimalista que, entretanto, reduziria a pressão para que o BC mantivesse juros altos demais, prejudicando o crescimento, o emprego e as finanças públicas. Repare, leitor(a), que a taxa básica de juro fixada pelo BC afeta as finanças públicas direta e indiretamente, por pelo menos dois canais: diretamente, via custo da dívida pública interna; indiretamente, via produto e emprego.

No campo fiscal, o governo Lula tem tomado decisões importantes. Destaco duas. Primeira: no conjunto de iniciativas fiscais anunciadas pelo ministro Fernando Haddad em janeiro, foram propostas, por Medida Provisória, mudanças o âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), que corrigem distorções gritantes. A mudança mais significativa foi a volta do chamado voto de qualidade, isto é, voto de desempate da União. Durante o governo Bolsonaro, havia sido aprovada no Congresso uma medida que suprimia o voto de qualidade e dava ganho de causa ao contribuinte em caso de empate no CARF. Num Conselho paritário, com número igual de membros da Fazenda e dos contribuintes, essa medida vinha levando a derrotas sucessivas da União. A Medida Provisória de Haddad suscitou protestos das grandes empresas e dos advogados tributaristas que ganham fortunas defendendo essas empresas. Bom sinal? Ou ótimo

Segunda decisão: a manobra inteligente e habilidosa de eliminar o famigerado teto de gastos, criado no governo Temer, já na PEC de transição. Ficou estabelecido que nova regra ou âncora fiscal, definida em lei complementar, substituirá o teto constitucional de gastos. Ponto. De 2024 em diante, o teto Temer deixa de existir. Um drible sensacional, daqueles de deixar o adversário no chão.

Em resumo, Lula está batendo um bolão como economista.

*Economista brasileiro, conhecido por defender uma política econômica soberana. Foi diretor-executivo no FMI, em Washington, por indicação do ministro Guido Mantega, e vice-presidente do NBD, o banco dos BRICS, por indicação do Governo Dilma Rousseff.

Fonte:  https://desacato.info/lula-acerta-na-economia-por-paulo-nogueira-batista-junior/ 

domingo, 29 de janeiro de 2023

Bifo: Para devolver o desejo ao sexo e à política

 Por

Imagem: Lucas Ninno

Há um declínio geral nos afetos, no ativismo, no trabalho e até na procriação. Sob a solidão digital, o desejo perde o corpo do outro como lugar de descoberta e partilha. Como encontrar sua tessitura coletiva, para o amor reencontrar as ruas?


Comecei a ler Félix Guattari em 1974. Eu estava em um quartel no sul da Itália quando o serviço militar era obrigatório para jovens de mente e corpo saudáveis, mas servir meu país rapidamente me entediou e eu estava procurando uma fuga quando um amigo sugeriu que eu lesse este filósofo francês que recomendava a loucura como fuga. Eu então li Une tombe pour Oedipe. Psychanalyse et Transversalité [Um túmulo para Édipo – Psicanálise e Transversalidade] publicado pela Bertani, e me inspirei nele para simular loucura. O coronel da clínica psiquiátrica me reconheceu como louco, então fui para casa.

A partir desse momento, passei a considerar Félix Guattari como um amigo cujas sugestões podem ajudar a escapar de qualquer caserna.

Em 1975, publiquei o primeiro número de um jornal chamado A/traverso, que traduzia conceitos esquizoanalíticos para a linguagem do movimento de estudantes e jovens trabalhadores chamado Autonomia.

Em 1976, com um grupo de amigos, comecei a transmitir na primeira estação de rádio gratuita italiana, a Rádio Alice. A polícia desligou o rádio durante os três dias de revolta estudantil de Bolonha após o assassinato de Francesco Lorusso.

O movimento de Bolonha de 1977 usou a frase “desejo de autonomia”, e o pequeno grupo de editores de rádio e revista se qualificava como “transversalistas”

A referência ao pós-estruturalismo ficou explícita nas declarações públicas, nos panfletos, nos slogans da primavera de 1977.

Tínhamos lido o Anti-Édipo, não havíamos entendido muito, mas uma palavra nos impressionou: a palavra “desejo”.

Este ponto nós compreendemos bem: o motor do processo de subjetivação é o desejo. Temos que parar de pensar em termos de “sujeito”, temos que esquecer Hegel e toda a concepção de subjetividade como algo pré-embalado que bastaria organizar. Não há sujeito, há correntes de desejo que atravessam organismos que são ao mesmo tempo biológicos, sociais e sexuais. E conscientes, claro. Mas a consciência não é algo que possa ser considerado puro, indeterminado. A consciência não existe sem o trabalho incessante do inconsciente, deste laboratório que não é um teatro porque não representamos ali uma tragédia já escrita, mas uma tragédia atravessada por fluxos de desejo que escrevemos e reescrevemos constantemente.

Por outro lado, o conceito de desejo não pode ser reduzido a uma tensão sempre positiva. O conceito de desejo serve como chave para explicar as ondas de solidariedade social e as ondas de agressão, para explicar as explosões de raiva e o endurecimento da identidade.

Em suma, o desejo não é um bom menino feliz; ao contrário, ele pode se contorcer, fechar-se sobre si mesmo e finalmente produzir efeitos de violência, destruição, barbárie.

O desejo não é um dado natural, mas uma intensidade que muda de acordo com as condições antropológicas, tecnológicas e sociais.

O desejo é o fator de intensidade na relação com o outro, mas essa intensidade pode ir em direções muito diferentes, até mesmo contraditórias.

Guattari também fala de ritornelos, para definir concatenações semióticas capazes de se relacionar com o ambiente. O ritornelo é uma vibração cuja intensidade pode ser concatenada com a intensidade de tal ou tal sistema de signos, ou seja, de estímulos psicossemióticos.

O desejo é a percepção de um ritornelo que produzimos para captar as linhas de estímulo vindas do outro (um corpo, uma palavra, uma imagem, uma situação) e nos relacionarmos com essas linhas.

Da mesma forma, a vespa e a orquídea, duas entidades que nada têm a ver uma com a outra, podem produzir efeitos úteis uma para a outra.

Por uma reconfiguração do desejo

Trata-se, portanto, de problematizar o conceito de desejo no contexto da era atual, uma era que pode ser definida pela aceleração neoliberal e pela aceleração digital.

A economia neoliberal acelerou a taxa de exploração do trabalho, particularmente do trabalho cognitivo, a tecnologia digital conectiva acelerou o fluxo de informações e, portanto, intensificou ao extremo a taxa de estimulação semiótica que é ao mesmo tempo estimulação nervosa.

Essa dupla aceleração é a origem e a causa da intensificação da produtividade que possibilitou o aumento do lucro e a acumulação do capital, mas é também a origem e a causa da superexploração do organismo humano, especialmente do cérebro.

Temos, portanto, a tarefa de distinguir os efeitos que essa superexploração produziu sobre o equilíbrio psíquico e a sensibilidade dos seres humanos como indivíduos, mas sobretudo como coletividades.

Em particular, devemos refletir sobre a mutação que afetou o desejo, levando em consideração o trauma que a experiência da pandemia produziu na psique coletiva. O vírus pode ter sido disperso, a infecção pode ter sido curada, mas o trauma não desaparece da noite para o dia, ele faz o seu trabalho. E o trabalho do trauma se manifesta por uma espécie de sensibilização fóbica ao corpo do outro, em particular à pele, aos lábios, ao sexo.

Nas duas décadas do novo século, vários estudos mostraram que a sexualidade está mudando profundamente, e o choque viral apenas reforçou essa tendência, que está enraizada na transformação tecno-antropológica dos últimos trinta anos.

No livro I-Gen (Why Today’s Super-Connected Kids Are Growing Up Less Rebellious, More Tolerant, Less Happy-and Completely Unprepared for Adulthood-and What That Means for the Rest of Us ?) [I-Gen (Por que as crianças superconectadas de hoje estão crescendo menos rebeldes, mais tolerantes, menos felizes – e completamente despreparadas para a idade adulta – e o que isso significa para o resto de nós?)] (2017), Jean Twenge analisa a relação entre tecnologia conectiva e mudanças no comportamento psíquico e afetivo de gerações que se formaram em um ambiente digital e conectivamente tecnocognitivo.

Passei a definir os humanos que vieram ao mundo após a virada do século como a geração que aprendeu mais com uma máquina do que com a voz singular de um ser humano.

A meu ver, essa definição é útil para entender a profundidade da mutação que estamos analisando: sabemos desde Freud que o acesso à linguagem só pode ser compreendido a partir da dimensão afetiva.

O que acontece quando a voz singular da mãe (ou de outro ser humano, que seja) é substituída por uma máquina?

Não esqueçamos também o que Agamben escreve em linguagem e morte: a voz é o ponto de encontro entre a carne e os sentidos, entre o corpo e os sentidos. A filósofa feminista Luisa Muraro sugere que a aprendizagem do significado está ligada à confiança da criança em sua mãe. Acredito que uma palavra significa o que significa porque minha mãe me disse que ela estabeleceu uma relação entre o objeto percebido e um conceito que o significa.

O fundamento psíquico da atribuição de sentido assenta neste ato primordial de partilha afetiva, de coevolução cognitiva garantida pela vibração singular de uma voz, de um corpo, de uma sensibilidade.

O sentido do mundo é então substituído pela funcionalidade dos signos que permitem obter resultados operacionais, a partir da recepção e interpretação de signos desprovidos de profundidade afetiva e, portanto, de certeza íntima.

O conceito de precariedade mostra aqui seu significado psicológico e cognitivo como enfraquecimento e deserotização da relação com o mundo.

Trata-se do erotismo como intensidade carnal da experiência, e do desejo em sua relação (não exaustiva) com o erotismo.

Desejo e sexualidade

Geralmente associamos o desejo com a carne, com a sexualidade, com o corpo que se aproxima do outro corpo. Mas é preciso ressaltar que a esfera do desejo não pode ser reduzida à sua dimensão sexual, mesmo que essa implicação esteja inscrita na história, na antropologia e na psicanálise. O desejo não se identifica com a sexualidade e, de fato, pode-se muito bem conceber a sexualidade sem o desejo.

O conceito e a realidade do desejo não se limitam ao sexo, como mostra o conceito freudiano de sublimação, que diz respeito aos investimentos não diretamente sexuais do próprio desejo.

A pandemia completou um processo de dessexualização do desejo que vinha se preparando há muito tempo, pois a comunicação entre corpos conscientes e sencientes no espaço físico foi substituída pela troca de estímulos semióticos na ausência de um corpo. Essa desmaterialização da troca comunicacional não apagou o desejo, mas o transferiu para uma dimensão puramente semiótica (ou melhor, hipersemiótica). O desejo desenvolveu-se então numa direção não sexual, ou se quiserem, pós-sexual, que se manifestou na condição de isolamento que a pandemia tornou regular e quase institucionalizada. Todo o corpus teórico e prático da psicologia, da psicanálise e até da política deve ser reconsiderado porque a subjetividade foi irreversivelmente rompida e transformada.

O psicanalista italiano Luigi Zoja publicou um livro sobre o esgotamento (e o desaparecimento tendencioso) do desejo (o título, na verdade, é O declínio do desejo). É um texto cheio de dados muito interessantes sobre a redução drástica da frequência do contato sexual e, em geral, do tempo dedicado ao contato, ao relacionamento presencial. Mas a hipótese central do livro (o desaparecimento do desejo) me parece questionável. Não é o desejo em si que desaparece, na minha opinião, mas sim a expressão sexualizada do desejo. A fenomenologia da afetividade contemporânea caracteriza-se cada vez mais por uma redução dramática do contato, do prazer e do relaxamento psíquico e físico que o contato pele a pele permite. Perde-se assim a confiança sensual, perde-se o sentimento de cumplicidade profunda que torna tolerável a vida social: o prazer da pele que reconhece o outro pelo tato, a sensualidade, o doce gozo da intimidade do olhar.

A geração que aprendeu mais palavras de uma máquina do que da voz de sua mãe, ou de outro ser humano, formou-se em um ambiente físico e psíquico cada vez mais intolerável.

Perversão do desejo e agressão contemporânea

A dessexualização na verdade corre o risco de transformar o desejo em um inferno de solidão e sofrimento esperando para ser expresso de uma forma ou de outra. A violência sem sentido que irrompe cada vez mais na forma de agressões armadas e mortíferas contra pessoas inocentes mais ou menos desconhecidas (os atentados em cadeia que se multiplicaram por toda parte desde Columbine em 1999, e dos quais os Estados Unidos são o principal teatro) é apenas a ponta do iceberg de um fenômeno que, no plano político, revira a história do nó como um todo. Como explicar a eleição de indivíduos como Donald Trump ou Jair Bolsonaro por metade do povo estadunidense ou brasileiro, senão como uma manifestação de desespero e autoaversão?

A eleição de um idiota ignorante que expressa abertamente visões racistas ou criminosas guarda profundas semelhanças (psicologicamente, mas também politicamente) com massacres que só podem ser explicados em termos de insanidade dolorosa, desejo suicida. O que continuamos a chamar de fascismo, nacionalismo ou racismo não pode mais ser explicado em termos políticos. A política é apenas o terreno espetacular em que esses movimentos se manifestam, mas a dinâmica da agressão social contemporânea quase nada tem a ver com os autoproclamados valores ideais do fascismo do século passado, com o nacionalismo dos séculos modernos. A retórica costuma ser semelhante, mas o conteúdo não é politicamente racional.

Só o discurso sobre o sofrimento, a humilhação, a solidão e o desespero pode dar conta do fenômeno que hoje caracteriza a maior parte da história do mundo na fase de esgotamento das energias nervosas e na expectativa de uma extinção que aparece cada vez mais como um horizonte inevitável.

A geração que é chamada com amarga ironia como a “última geração” (ou também a “geração zeta”), aquela que aprendeu mais palavras com uma máquina do que com a voz de sua mãe ou de outro ser humano, formou-se em um ambiente físico e psicológico cada vez mais intolerável. A comunicação desta geração desenvolveu-se quase exclusivamente num ambiente tecno-imersivo cuja coerência é puramente semiótica.

Estamos nos preparando para vivenciar a própria extinção na forma de uma simulação imersiva. A produção midiática está cada vez mais saturada com os sinais desse desespero, que funcionam tanto como sintomas de um mal-estar, quanto como fatores de propagação de uma patologia: penso em filmes como Coringa e Parasita, mas também em séries da neotelevisão global Netflix: Squid Game e milhares de outros produtos similares.

O trauma viral da Covid apenas multiplicou o efeito hipersemiótico, mas as condições técnicas e culturais já existiam. Neste ponto, tudo o que podemos fazer é tentar entender essa mutação – e podemos defini-la como uma mutação dessexualizante que afeta o desejo.

O desejo não deixou de conduzir o processo de subjetivação coletiva, mas essa subjetivação agora se manifesta na forma de ansiedade, autoagressão ou às vezes agressão, porque não pode desabrochar e se expressar e se perverte em formas agressivas.

A dessexualização do desejo, cujos vestígios se encontram por toda a parte, traduz-se ao nível social numa desistorização das motivações da ação coletiva. Assistimos a um fenômeno massivo de desengajamento e deserção: abstenção majoritária da política, deserção da procriação, abandono do trabalho. Este fenômeno deve ser objeto de uma análise teórica (diagnóstico) que possibilite estratégias de ação discursiva e política (terapia) que atualmente nos faltam totalmente.

 Por Franco Bifo Berardi, no Comune Info | Tradução: Maurício Ayer

Fonte:  https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/bifopara-devolver-o-desejo-ao-sexo-e-a-politica/

Nova cristandade: ruminações

 Por ALEXANDRE ARAGÃO DE ALBUQUERQUE*

Imagem: Inga Seliverstova

O segmento evangélico compõe uma grande massa de apoiadores do neofascismo bolsonarista

“A fé tá na mulher, a fé tá na cobra coral, num pedaço de pão” (Gilberto Gil).
“Ao fornecer a Moisés os fundamentos da Constituição de Israel – os Dez Mandamentos – Iaweh adotou uma posição política” (Jornal Mensageiro da Paz).
“Salta aos olhos que, no Brasil, alguns grupos religiosos crescem extraordinariamente, ao passo que outros estão estagnados ou mesmo diminuindo” (Paulo Siepierski).

Uma pesquisa sobre polarização política no Brasil realizada em novembro de 2022 pelo Instituto Locomotiva, a pedido da ONG Despolarize, revelou algo de muito surpreendente na cena política brasileira. Segundo a pesquisa, 18% dos brasileiros pesquisados tiveram a coragem de afirmar que são de extrema direita. Quando se verifica a lista divulgada sobre os detidos em Brasília por cometer a violência desmedida na tentativa de tomar as sedes dos Três Poderes da República, no último dia 08 de janeiro, 64,3% dos detidos nasceram entre os anos de 1960 a 1980. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), até 2050 o número de pessoas com mais de 60 triplicará no Brasil. É preciso buscar os porquês que levam a uma tão forte concentração desse segmento etário envolver-se com atos-de-vandalismo golpistas neofascistas.

Por sua vez, o jurista Lênio Streck (14/01) divulgou por tuite dados da Pesquisa Atlas na qual 31,2% de pessoas ligadas a igrejas evangélicas disseram aprovar o terror golpista do 8 de janeiro; 68% delas acreditam que o Presidente Lula perdeu a eleição; além disso, 64% dos evangélicos pesquisados apoiam um golpe militar. Streck ainda divulgou um vídeo no qual um pastor pede num ato litúrgico que Deus extermine advogados, juízes e o maldito STF (Supremo Tribunal Federal).

Junte-se aos dados acima, na virada do dia 10 para o dia 11, a postagem no facebook do ex-presidente Bolsonaro, por um período mínimo de duas horas, de um vídeo com a seguinte legenda: “Lula não foi eleito pelo povo, ele foi escolhido e eleito pelo STF e TSE”. O tempo de postagem foi o suficiente para viralizar pela rede bolsonarista instigando ainda mais a fúria golpista dos seus membros. Numa clara confirmação fática da responsabilidade política do capitão neofascista e de seus mentores militares por alimentar o espírito extremista do seu gado, ato contínuo em seus quatro anos de desgoverno, sempre procurando criar um clima que lhe permitisse golpear a democracia brasileira.

O segmento evangélico compõe uma grande massa de apoiadores do neofascismo bolsonarista. Este segmento religioso, desde os anos 1980, vem crescendo a grandes passos no Brasil, anteriormente de hegemonia católica. A entrada triunfal na política se dá com a mudança do regime ditatorial militar (1964-1985) para a democracia, com a instalação da Assembleia Nacional Constituinte em 1986. Se até aquele acontecimento histórico os evangélicos adotavam uma linha de obediência automática às autoridades militares, uma vez que em sua formação doutrinal foram condicionadas a perceber o Estado e seus agentes mandatários como expressão da vontade de Deus, aos quais deve-se obediência, porque, conforme a Bíblia, “as autoridades que existem todas foram por Ele constituídas”, logo compreenderam que a mudança da cultura política que se iniciava com a Constituinte implicava uma imediata alteração de suas atitudes diante do poder temporal. (FONSECA, André Dioney. Informação, política e fé. Revista Brasileira de História. São Paulo: v.34, n. 68, 2014).

Até então, por exemplo, para os membros da Assembleia de Deus (AD), em referência aos pobres e injustiçados socialmente, eles pregavam a salvação ensinando os empobrecidos a terem confiança em Deus. Depois de a pessoa converter-se, a própria situação financeira dela melhoraria porque “Deus cuida dos seus”. A luta travada pelos fieis da Assembleia de Deus, até então, não era a luta contra a matéria nem contra as injustiças sociais, mas contra o Príncipe das trevas e contra as hostes espirituais.

Mas com o advento da Constituinte, esse discurso mudou substancialmente. Em suas publicações ordinárias, mais precisamente no influente jornal Mensageiro da Paz, uma nova roupagem se instala. Afirma um exemplar de 1986: “Como cidadãos conscientes e principalmente como cristãos, é impossível não percebermos as mazelas sociais à nossa vida. É preciso ir mais adiante participando ativamente do processo de mudança social, buscando a escolha acertada na hora do voto. Irmão vota em irmão”. Por meio desta mudança tática, conseguiram em 1986 eleger 33 deputados federais da bancada evangélica. Era o começo da sua atuação política institucional. (Idem).

No campo neopentecostal, duas teologias irão orientar os corações e mentes dos seus afiliados: a teologia da prosperidade e a teologia do domínio. No ritual de iniciação, o fiel recebe o batismo do Espírito Santo, um revestimento de poder, evidenciado pelo dom de línguas, para poder testemunhar a boa nova, visando à rápida evangelização do mundo, apressando a volta de Jesus como juiz e rei escatológico para julgar e governar as nações. O revestimento de poder no Espírito não está voltado apenas para a evangelização, mas para realizar obras maiores do que aquelas que Jesus realizou, a saber, os ministérios de cura divina.

Nascida nos EUA, a teologia da prosperidade, centralidade da organização Igreja Universal do Reino de Deus, de Edir Macedo, tem como objetivo estabelecer uma nova cristandade por meio da atividade política. O reino de Deus já está aqui presente para usufruto dos escolhidos. E o batismo no Espírito Santo é o revestimento de poder para vencer os entraves para tal usufruto. Os entraves são ações de Satanás e de seus seguidores que devem ser perseguidos e amarrados. Sem os espíritos do mal para atrapalhar, os fiéis neopentecostais podem viver com prosperidade. Para isso o fiel não pode duvidar: a mente pode controlar a esfera espiritual que por sua vez determina a realidade material. E para demonstrar sua fé inabalável, o fiel precisa entregar dízimos e ofertas.

Contrariamente ao catolicismo onde o fiel paga a promessa somente depois de haver alcançado a graça, no neopentecostalismo o crente literalmente paga de forma antecipada como demonstração de sua fé. Acumulação de bens materiais é sinal de bênção; ser filho de Deus é sinônimo de ser materialmente vitorioso. As pessoas são desafiadas a tornarem-se ricas, legitimando as riquezas existentes bem como as estruturas sociais causadoras do empobrecimento populacional. Para os neopentecostais, os Demônios são os verdadeiros causadores de todos os males e sofrimentos. Por causa deles o Brasil não é um país mais desenvolvido. (SIEPIERSKI, Paulo D. Pós-pentecostalismo e Política no Brasil. São Leopoldo – RS: Estudos Teológicos, v.37, n.1, 1997).

Também a teologia do domínio tem origem nos EUA, nos anos 1970, buscando a reconstrução da teocracia, oferecendo uma cosmovisão cristã para a obtenção do poder dos evangélicos nas esferas públicas para o domínio total de Deus. A ideia central desta corrente teológica é a de Guerra Espiritual, a luta contra o inimigo, a partir da leitura do Antigo Testamento, que pode atuar em diversas áreas da vida. O evangélico, portanto, não deve evitar o mundo e o mal que ele representa, mas deve estar no mundo de forma ativa, posicionando-se em guerra contra esse mal, e para isso é preciso ocupar espaços de poder.

O fundamento da guerra espiritual consiste na crença da existência de demônios territoriais e hereditários, que agem sobre áreas geográficas e sobre as pessoas em geral e em suas famílias. Esses demônios seriam os responsáveis por todos os males do mundo, inclusive a desigualdade e a injustiça social. Tal doutrina induz os fiéis neopentecostais a acreditarem que os responsáveis pelos males da sociedade brasileira são as religiões concorrentes e seus seguidores. Assim, a solução dos problemas brasileiros estaria na eleição de fiéis neopentecostais para os cargos públicos, em seus postos eles neutralizariam as ações dos demônios, trazendo prosperidade para todo o país. Mediante esta doutrina, o neopentecostalismo vai entrando e se firmando no cenário político nacional. Somente os eleitos de Deus devem ocupar os postos-chaves da nação, utilizando-se de todos os meios, principalmente comunicacionais, como concessões de rádio e televisão, para banir os tais demônios e seus discípulos.

Não é à toa que essas teologias políticas da prosperidade e do domínio tenham nascido nos EUA. O projeto imperialista unipolar estadunidense está ligado intrinsecamente a uma antiga visão teológica de que eles são os enviados de Deus para transformar os bárbaros em civilizados (Destino-Manifesto), numa guerra do bem contra o mal, que atravessa não só a religião, mas o poder militar, a educação, a cultura, a política, para atingir o espectro total.

Acumular riqueza é um dever nessa tradição protestante. Nesta visão, a pobreza aparece como consequência da falta de fé. A desarticulação da Teologia da Libertação, para além dos limites da esquerda organizada, foi consequência desse projeto imperialista que enxergou na Teologia da Libertação uma ameaça ao campo subjetivo e que colocava em risco os avanços das políticas neoliberais na América Latina. Assim, o neoliberalismo naturaliza os acontecimentos em que o pobre e a pobreza são justificados por ser uma situação de sorte ou azar na vida. E as Igrejas fundamentalistas corroboram essa visão conectando-a com a ideia de falta de fé ou dedicação do crente. Para os neopentecostais, a Teologia da Libertação, com seus militantes, é a ponta de lança do Anticristo. (Brasil de Fato. Fundamentalismo e imperialismo na América Latina. Dossiê 59. 19 de dezembro de 2022).

A riqueza material proclamada pelos neopentecostais, em sua busca de construir uma nova cristandade, é bênção divina, não possui causas políticas e econômicas estruturais. Segundo a Oxfam, em seu documento “Desigualdade Mata”, os dez capitalistas mais ricos dobraram sua acumulação durante a crise sanitária global: a cada 26 horas da pandemia, apenas um capitalista entrava para o ranking de novos bilionários, enquanto simultaneamente a renda de 99% das pessoas no mundo despencou e mais de 160 milhões de indivíduos foram empurrados para a pobreza.

Maquiavel, leitura obrigatória por ser sempre atual, já havia detectado, 500 anos atrás, a força do poder simbólico-ideológico quando, em seus Discursos, apontou para a dominação da religião na vida dos súditos dos principados. O grande embate do florentino não era com os clássicos, mas com seus contemporâneos, com o moralismo e a pregação religiosa, por haver constatado em sua pesquisa empírica que os mandamentos de “não roubar”, “não mentir”, “não usar o santo nome de Deus em vão”, teriam validade apenas para a população: todos eram descumpridos pelos detentores do poder temporal e eclesiástico. Portanto, o povo precisava abrir os olhos tampados pelos sistemas ideológicos-religiosos de então para desvendar o que estava por debaixo do pano.

Palavras, imagens e sons realizam pouco a não ser que sejam munições de um plano minunciosamente arquitetado e de métodos cuidadosamente organizados para que as ideias transmitidas se tornem parte integrante da vida das populações. Quando o público é convencido da racionalidade de uma ideia, ele entra em ação. Ação esta que é sugerida pela própria ideia religiosa, política ou social. Mas esses resultados não acontecem do nada: eles são obtidos pela fabricação de consensos. (BERNAYS, Edward. Propaganda. 1928. Acesso: http://www.whale.to/b/bernays.pdf).

Como anota Michel Foucault, em Vigiar e punir, o poder é exercido como disputa e luta. Onde há poder, há resistência. Não existe propriamente o lugar de resistência, mas pontos móveis e transitórios que também se distribuem por toda a estrutura social. A política é luta, afrontamento, relação de força, situação estratégica e ideológica. Não é um lugar que se ocupa, nem um objeto que se possui. Ela se exerce, se disputa. Nessa disputa, ou se ganha ou se perde. E este é o desafio que está posto para nós nos próximos anos: distribuir democrática e sustentavelmente a riqueza mundial ou continuar o acelerado acúmulo individualista fundamentalista neoliberal destruidor da humanidade e da natureza.

*Alexandre Aragão de Albuquerque é mestre em Políticas públicas e sociedade pela Universidade Estadual do Ceará (UECE).

Fonte:  https://aterraeredonda.com.br/nova-cristandade-ruminacoes/?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=novas_publicacoes&utm_term=2023-01-29

A filosofia vai ao laboratório

Hélio Schwartsman*

A ilustração de Annette Schwartsman, publicada na Folha de São Paulo no dia 29 de janeiro de 2023, mostra um homem usando camisa azul e óculos escuros -aparentemente cego- que segura na mão direita uma esfera de metal e, na esquerda, um cubo de metal.

Ilustração de Annette Schwartsman para a coluna de Hélio Schwartsman - Annette Schwartsman

Autores conclamam cientistas a juntar-se a esse esforço de pesquisa interdisciplinar

Mais opções para onde me mandar

Ruy Castro*

Imagens do álbum de figurinhas ‘As Viagens de Gulliver” (Ebal, 1956) --- Reprodução

Imagens do álbum de figurinhas ‘As Viagens de Gulliver” (Ebal, 1956) - Reprodução

A ideia era ir para um lugar tão remoto que o bodum bolsonarista não pudesse me alcançar

Escrevi aqui há dias que várias vezes nos últimos anos pensei em me mandar para algum lugar bem longe dos flatos verbais de Bolsonaro. E citei opções óbvias como Pasárgada, Maracangalha. Atlântida, Xanadu. Mas isso foi no começo. Se a ideia era me esconder num lugar imaginário, deveria ser um refúgio tão recherché que não haveria hipótese de o bodum bolsonarista me alcançar.

Pensei em Brigadoon, uma aldeia invisível nas Highlands escocesas, que só existe fisicamente por um dia em cada cem anos, quando seus cidadãos despertam de um sono mágico que lhes garante a imortalidade. Passei. Então ocorreram-me os Seios de Sabá, duas escarpas gêmeas quase inacessíveis na Kukuanalândia, perto da atual África do Sul, cujas cavernas abrigaram as minas de Salomão. Não. Melhor seria se eu fosse para Kor, cidade em ruínas onde fica hoje a Somália, dominada por uma deusa de 2.000 anos, a belíssima Ayesha, ou Ela.

Mas sofisticado mesmo seria fugir para a Agulha Oca, uma gruta natural em algum ponto da França cuja localização não pode ser nem de longe sugerida. É o esconderijo das riquezas subtraídas por Arsène Lupin, o ladrão de casaca, como o original da "Mona Lisa" e as arcas do tesouro de Luís 15. E por que não a deliciosa Lilliput, ao sul de Sumatra, descoberta em 1699 por Lemuel Gulliver? (Porque, como seus habitantes têm 15 cm de altura e tudo lá obedece a essa escala, seria difícil andar por suas ruas sem esmagar casas ou espremer gente.)

O mais prático seria ir logo para Nova York. Lá eu poderia escolher entre a "Bagdá no metrô" de O. Henry ou a Times Square de Damon Runyon, que só existiram em livros. Ou Tin Pan Alley, esquina imaginária na altura da rua 28 Oeste em cujos pianos nasceram as grandes canções americanas.

Cheguei até a comentar com um amigo: "Vou largar tudo aqui e fugir para uma ilha distante." Ele: "É? Qual?". Eu: "Manhattan".

* Jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.

Fonte:  https://www1.folha.uol.com.br/colunas/ruycastro/2023/01/mais-opcoes-para-onde-me-mandar.shtml

Atos e palavras

Lygia Maria*

 Vândalos golpistas invandem a praça dos Três Poderes 
e depredam os prédios, em Brasília - Gabriela Biló - 8.jan.23/Folhapress

Vandalismo golpista em Brasília deve ser punido com rigor, mas MP que propõe regulação de postagens em redes sociais é temerária

O governo federal está de fato preocupado com o que as pessoas falam nas redes sociais. Além de criar a Procuradoria de Defesa da Democracia da Advocacia Geral da União (AGU), para combater a desinformação contra políticas públicas, o Ministério da Justiça lançou um pacote de medidas antigolpismo, incluindo uma Medida Provisória (MP) que regula postagens em plataformas online.

Após o ataque bolsonarista em Brasília, parece tudo muito louvável, mas devemos ter cuidado com o impulso punitivista que costuma surgir após eventos extremos. Foi assim com o 11 de Setembro. O governo dos EUA implementou normas que infringiram direitos individuais e provocaram prisões ilegítimas.

Apuração da Folha revelou que a MP pretende impedir a disseminação de conteúdo que viole a Lei do Estado Democrático de Direito, como pedir a deposição do governo. Contudo, a lei diz que o crime é "tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça". Ou reescreve-se o texto ou será necessária interpretação bastante elástica para que uma postagem no Twitter que proponha golpe militar seja uma tentativa violenta de ruptura institucional.

A lei do Estado Democrático de Direito é oriunda da Lei de Segurança Nacional, uma excrescência do regime militar, que foi usada tanto por Bolsonaro para intimidar seus críticos quanto pelo STF para punir bolsonaristas como Daniel Silveira.


Assim, parte da esquerda aprecia a medida, mas ignora que, dado o subjetivismo, pode vir a ser alvo dela. Afinal, há quem peça o fim da democracia burguesa e pregue a ditadura do proletariado. Alega-se que tal retórica não tem apoio popular. Mas o vandalismo em Brasília teve? Segundo pesquisa do Datafolha, 93% dos brasileiros são contra; entre quem votou em Bolsonaro, são 86%.

Leis são universais, não podem valer apenas para nossos inimigos. O poder também muda de mãos e nunca se sabe quem baterá o martelo amanhã. Detalhes geralmente esquecidos quando se trata de liberdade de expressão.

 *Mestre em Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Catarina e doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP.

Fonte:  https://www1.folha.uol.com.br/colunas/lygia-maria/2023/01/atos-e-palavras.shtml

quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

Um alerta para Fernando Haddad

 Por *


Imagem: Reuters

Ao contrário de Lula, que propõe a reconstrução nacional, ministro empenha-se num “ajuste fiscal”. História revela: além de não resolver a dívida, ele corrói o apoio popular aos governos, desencanta as sociedades e abre caminho para o fascismo


O ministro Fernando Haddad, que volta hoje ao Brasil depois de estar em Davos e na Argentina, elegeu como primeira prioridade de sua gestão um “ajuste fiscal”. Por meio medidas que visam aumento de arrecadação e corte de gastos, ele pretende reduzir o déficit primário da União, hoje em 2,16% do PIB – transformando-o se possível num superávit. O pagamento de juros não entra na conta e não será afetado. Visto pelos grandes especuladores financeiros como um passo no sentido correto, o movimento é responsável por ações impopulares. O aumento do salário mínimo para R$ 1.320 foi ao menos suspenso; a correção das alíquotas de Imposto de Renda, que beneficiaria grande parte dos assalariados, também. Como o “ajuste fiscal” jamais esteve no programa de Lula, e não está em sintonia com o projeto de reconstrução nacional do presidente, Haddad faria bem em estar atento a outras opiniões.

Uma delas acaba de ser expressa pela economista indiana Jayathi Gosh, professora na Universidade de Massachussets, nos EUA. Ela co-coordena a Comissão Independente para a Reforma da Tributação Internacional sobre as Corporações (Icrict, na sigla em inglês), da qual participam, entre outros, Thomas Piketty e o Nobel de Economia Joseph Stiglitz. O grupo busca saídas redistributivas para a crise prolongada que faz as economias ocidentais patinarem desde 2008. Entre elas, não estão os “ajustes fiscais”. Um artigo publicado por Gosh na última sexta-feira explica por quê.

A economista evoca um evento histórico: as políticas de “ajuste” dos anos 1920 e 30 e sua relação com o advento do fascismo. O ponto de partida é Keynes. À época, lembra Gosh, ele advertiu que as medidas de corte de despesas – apresentadas desde então como necessárias a restaurar a “confiança dos investidores” – seriam ao mesmo tempo “fúteis e desastrosas”. Elas ofenderiam a ética da justiça social, ao obrigarem os servidores públicos e os desempregados a pagarem pela crise, em nome de “orçamentos equilibrados”. E, ao desapontar as maiorias trabalhadoras, levariam-nas a perder confiança em seus líderes, abrindo espaço para os que exploravam o ressentimento e propunham a violência. Gosh frisa que o vaticínio concretizou-se logo depois. A causa econômica da ascensão de Adolf Hitler, em 1933, não foi a hiperinflação da República de Weimar, ao contrário do que o senso comum acredita. Esta havia terminado dez anos antes (durou de 1921 a 23). O nazismo alavancou-se, na verdade, em medidas de corte de gastos que produziram deflação e afundaram milhões de trabalhadores no desemprego e na pobreza.

A economista indiana sustenta que há exemplos históricos de alternativas bem-sucedidas – inclusive no Ocidente. Em 1951, seis anos após a derrota da Alemanha na II Guerra, seus credores ofereceram ao país um grande pacote de alívio da dívida, visto hoje como uma das causas do período de prosperidade e estabilidade conhecido como os “trinta anos gloriosos”.

Gosh contrasta esta época com a brutalidade contemporânea da aristocracia financeira, que voltou a capturar a riqueza coletiva por meio de juros e está fazendo ressurgir a ameaça do fascismo.

O alerta de Gosh merece ser lido com atenção especial no Brasil. Em pouco mais de três semanas de governo, Lula foi capaz de produzir um conjunto notável de fatos simbólicos – a subida inusitada à rampa do Planalto, a demissão do comandante golpista do Exército, o relançamento da ideia de integração latinoamericana (incluindo as recepções populares e o show memorável em Buenos Aires), o passeio no Fusca de Mujica.

Estes gestos acalentam a esquerda e ajudam a coesionar uma base de apoio ativista – mas ainda falam muito pouco às maiorias. Não custa esquecer que o bolsonarismo teve quase 50% dos votos, e que continuará explorando a miséria e o desencanto. As calçadas continuam coalhadas de famílias em desamparo. A diretoria da Petrobras, remanescente da era Bolsonaro, impôs na sexta-feira (sem que houvesse reação no governo) um novo reajuste sobre os combustíveis.

Expressas por Lula com ênfase, nos discursos de posse, as ideias de reconstrução nacional em novas bases e de luta contra a desigualdade são muito mobilizadoras. Mas, para que se convertam em realidade, precisam da ação dos ministérios econômicos. O “ajuste fiscal” é, para usar uma metáfora futebolística, um gol contra.

*Jornalista e editor do site Outras Palavras. Foi fundador da edição brasileira do Le Monde Diplomatique. Economia publicado em 30/03/2022.

Fonte:  https://outraspalavras.net/crise-brasileira/um-alerta-para-fernandohaddad/

Etty e o sonho do amor

 


O texto é de Susanna Nirenstein, publicado por Robinson,

https://www.ihu.unisinos.br/images/ihu/2023/01/24_01_etty_hillesium_foto_reproducao.jpg

Elisabetta Rasy conta a história de uma mulher judia que conseguiu crescer espiritualmente apesar das perseguições e da deportação para os campos de extermínio.


Para Jean Améry, o escritor judeu austríaco que sobreviveu aos campos de concentração nazistas, e que se suicidou em 1978, a experiência do campo de concentração tinha representado a aniquilação, a derrota do espírito. Que diferença da surpreendente convicção vital da judia Etty Hillesum e de seu inabalável crescimento espiritual testemunhado nos famosos diários escritos durante os anos da ocupação alemã na Holanda, antes firmemente "livre" entre às pesadas restrições em que vive em Amsterdã, ciente do horror mas "cheia de felicidade", depois, novamente e cada vez mais, grata a Deus, no campo de Westerbork, onde seu único desejo é trazer conforto aos outros.

O pensamento torna-se ainda mais claro com a leitura do belo livro de Elisabetta RasyDio ci vuole felici (Deus nos quer felizes, Etty Hillesum ou da juventude, em tradução livre, HarperCollins), porque afunda as mãos na exuberância da "garota" engolida por Auschwitz pouco antes de completar trinta anos.

O encontro entre Rasy, muitos de seus romances e ensaios dedicados a mulheres ousadas e criativas, e Hillesum se dá por um processo de identificação. Naturalmente não pelas discriminações, nem muito menos pela prisão e morte que Etty sofreu nas mãos do Terceiro Reich (em Westerbork “ergue-se um muro entre mim e ela” escreve Rasy, quase intimidada por poder abusar da sua memória), mas precisamente pelo espírito livre, inquieto, irreverente de Hillesum, sempre indomável na autodescoberta e no sentido da existência, em que se reconhece, desenvolvendo com ela "um surpreendente sentido de intimidade" desde que a leu pela primeira vez, em 1985, quando despreocupação, dúvidas e certezas, alegrias e infelicidades se confundiam "numa mistura de paixões no tortuoso caminho que tentamos percorrer para chegar a nós mesmos" durante a juventude, como Hillesum.

E de fato é em um estado de espírito semelhante, em escuta contínua de si mesma, de seus próprios pensamentos, daqueles alheios e dos amados livros, e muito de seu pulsante erotismo, envolto em contradições e curiosidade, que Etty se encontra em 1941 debruçando-se nos os quartos/estúdio de Julius Spier, de Berlim, aluno de Carl Gustav Jung, emigrado para a Holanda por causa das leis raciais, e depois criador de uma espécie de paraciência, a psicoquirologia, ou seja, a interpretação da alma através da leitura das mãos, um "mago" para alguns, um mestre sem dúvida para Etty, um charlatão para outros.

A tarefa que Hillesum atribui a S. (como sempre chama Spier no Diário) é “desatar o novelo emaranhado em que estava aprisionado o seu coração”, uma atitude libertadora perante o amor entrelaçada por Rasy com a sua própria vivência e com aquela de Katherine Mansfield, Edith Warthon, Virginia Woolf: agora fora da difícil família de origem – assim como nos anos mais fáceis anos 1960 e 70, muitas mulheres em movimento em direção à consciência e a ser livres farão – a lição aprendida, laboriosamente construída por Etty, é que corpo e mente são um só e não importa se descobri-lo comporte uma descida ao inferno, o essencial e encontrar a própria alma "enterrada pelas obrigações atávicas de uma boa criação feminina".

Também Rasy (a quem a revista Il Giannone agora dedica um número inteiro) viveu “amores promissores e ameaçadores" em sua juventude, "idade de fronteira", idade todo-poderosa, como escreveu outro autor atormentado e corajoso, Joseph Conrad, lembra Rasy. Tudo o que Etty fazia era arriscado, viver em uma comuna, querer se tornar escritora e sentar em sua escrivaninha sentindo-a similar "ao mundo no primeiro dia da criação", tendo dois relacionamentos ao mesmo tempo, e tendo tido muitos outros antes (em década de 1930! Em uma família de classe média), circulando por Amsterdã de bicicleta com os alemães nas esquinas, sentindo o céu acima e ao redor apesar de tudo. A premissa interna para ela é “inventar uma forma experimental de ser garota”, viver à sua maneira, tomando a onda de mudança que atravessa a feminilidade ao longo de todo o 1900, encontrando-se consigo mesma. Por isso Rasy se reflete nela.

Muitas perplexidades sobre Etty Hillesum, como ela poderia ser tão feliz, não sentir o peso das perseguições, aspirar tanto naquela escuridão ao amor, a uma carícia, a um eros feliz? Muitos se perguntaram isso. Mas Rasy continuamente nos lembra de como Etty estivesse plenamente ciente da vontade nazista de eliminar o povo judeu. Escreveu-o: “aceito esta nova certeza” e acrescentou: “Não me preocuparei mais com os meus medos... Acho a vida igualmente rica de significado”, “Vou pôr as coisas em ordem e todos os dias me despedirei”. Ela não sabia e não queria odiar. Rasy diria a ela para fugir, como tantos outros fizeram. Ela queria viver o destino do povo judeu: não se escondeu. Era uma acrobata. No final sentia Deus em todas as coisas, e se dirigia a Ele como a si mesma: "Eu te ajudarei meu Deus", dizia. A sua luminosidade é por vezes ofuscante: Rasy ilumina-nos também.

Fonte: https://www.ihu.unisinos.br/625783-etty-e-o-sonho-do-amor 

#perguntas e respostas.

Por Gianfranco Ravasi

 https://www.ihu.unisinos.br/images/ihu/2023/01/24_01_socrates_foto_toda_materia.jpg

24 Janeiro 2023

"Como ironicamente sugeria o citado Oscar Wilde, 'todo mundo é capaz de dar respostas; mas é preciso ser um gênio para fazer as verdadeiras perguntas'", escreve Gianfranco Ravasi, em artigo publicado por Il Sole 24 Ore, 22-01-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis o artigo.

A estupidez das pessoas vem de terem uma resposta para tudo. A sabedoria dos novos vem de ter uma pergunta para tudo.

Era 1984 e uma obra era campeã de vendas nas livrarias, A Insustentável Leveza do Ser, do escritor Milan Kundera. Muitos anos depois, retomo-o e encontro a afirmação que propus e que é essencialmente um elogio à pergunta. Claro, perguntas estúpidas ou inúteis muitas vezes ecoam no ar; mas em nossos dias, especialmente nas vias informáticas, imperam as respostas tanto mais assertivas e desdenhosas quanto mais falsas e enganosas. A Picasso é atribuída esta frase radical pronunciado na era em que tal instrumento começava a se afirmar: “Os computadores são inúteis. Só sabem te dar respostas”.

É claro que, como ironicamente sugeria o citado Oscar Wilde, “todo mundo é capaz de dar respostas; mas é preciso ser um gênio para fazer as verdadeiras perguntas”. E esse é o problema: o questionamento autêntico que faz a ciência progredir, a pesquisa aberta à aquisição, o olhar que atravessa a realidade e a existência sem se contentar com a superfície óbvia, são exercícios que já exigem um conhecimento de base. Por isso a ars interrogandi não se adapta ao borbulhar das ideias vãs, mas brota do solo fértil e arado do estudo e de um conhecimento prévio. E, como avisava São Paulo, “Examinai tudo. Retende o kal? (belo/bom)” (1 Tessalonicenses 5,21), enquanto a poetisa polonesa Wislawa Szymborska concluía: “Peço desculpa às grandes perguntas pelas pequenas respostas”, que normalmente nós todos damos.

Fonte: https://www.ihu.unisinos.br/625788-perguntas-e-respostas-artigo-de-gianfranco-ravasi

O Papa e o psicólogo. Entrevista com o Papa Francisco

 A entrevista foi publicada por La Stampa, 21-01-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.


Livro "La paura come dono" | Foto: divulgação

Alguns trechos do livro La paura come dono (O medo como dom, em tradução livre, ed. San Paolo), um diálogo entre o Papa Francisco e Salvo Noé, psicólogo e psicoterapeuta, no papel de entrevistador.

O que é medo para o senhor?

O medo é um sentimento, não é uma ideia, não é algo distante de mim; um sentimento que entra em mim, que nasce em mim, é um sentimento com o qual tenho uma relação. Pode ser um alarme: preste atenção, há um perigo; também pode ser um companheiro de bom senso que permite que você veja a dimensão da situação. Para ser claro, se eu me tornar um escravo do medo, ele pode se tornar um limite que me bloqueia e não me deixa seguir em frente na vida. De fato, a pessoa medrosa é como se fosse em direção a uma parede. Em vez disso, se eu souber usar o medo para entender a mensagem que quer me passar, então será isso para mim uma ajuda. Geralmente surge de um sentimento de defesa e serve para se proteger. Até mesmo crianças pequenas têm medo quando olham para algo que não entendem e sentem isso como uma ameaça, e pedem ajuda. O medo excessivo é uma atitude que nos prejudica, nos enfraquece, nos encolhe, nos paralisa. Tanto que uma pessoa escravizada pelo medo não se mexe, não sabe o que fazer: está com medo, concentrada em si mesma esperando que algo ruim aconteça. Então o medo leva a uma atitude que paralisa. De fato, o medo excessivo não é uma atitude cristã, mas é uma atitude, podemos dizer, de uma alma aprisionada, sem liberdade, que não tem liberdade para olhar para frente, para criar algo, para fazer o bem.

O senhor teve medo quando foi eleito?

Não esperava ser eleito, mas nunca perdi a paz. Eu tinha levado uma maleta pequena, certo de voltar para a Buenos Aires, para o Domingo de Ramos. Tinha deixado as homilias já preparadas. Em vez disso, fiquei em Roma. Assim que fui eleito, dentro da Capela Sistina, um cardeal brasileiro que estava ao meu lado, viu minha surpresa e me disse: "Não se preocupe, é assim que faz o Espírito Santo". E depois outra frase: "Não se esqueças dos pobres". Senti uma paz e uma tranquilidade, mesmo nas escolhas decisivas, por exemplo não quis vestir nada, apenas o hábito branco. Nem mesmo os sapatos quis usar. Eu já tinha sapatos e queria ser simplesmente normal. Depois saí e disse boa noite.

O senhor falou de ecologia integral destacando-a como um novo paradigma de justiça, porque a natureza não é uma "mera moldura" da vida humana.

Devemos adotar um estilo de vida ecologicamente respeitoso para salvaguardar o patrimônio da criação e proteger a vida daqueles que habitam o planeta. Nossa terra está doente. Tal situação expôs os riscos e as consequências de um modo de vida dominado pelo egoísmo e pela cultura do descarte e colocou diante de nós uma alternativa: continuar no caminho percorrido até agora ou empreender um novo caminho. Para mim, uma ecologia integral contempla a preocupação com a natureza, a equidade para com os pobres, o empenho na sociedade, mas também a alegria e paz interior que resultam inseparáveis. Nossa terra é maltratada e saqueada, exige "uma conversão ecológica", uma "mudança de rumo" para que o homem assuma a responsabilidade por um empenho com o cuidado da casa comum. Um empenho que inclui também a erradicação da miséria, a atenção pelos pobres, o acesso igualitário para todos aos recursos do planeta. Essa é uma mensagem para os crentes e não, Deus caminha ao lado de todos. Precisamos agir em uma direção que nos permita manter os dons da criação e protege a vida de nós humanos. Isso deve ser uma prioridade nos processos econômicos e naqueles políticos, e ainda mais nas relações humanas. Isso sempre foi uma prioridade para mim também quando em Buenos Aires, caminhava de uma paróquia a outra. Aliás, se há algo que me faz tanta falta agora é não poder mais andar pelas ruas, como fazia na Argentina.

É possível pensar levar a psicologia para dentro dos seminários?

É claro! Na minha opinião é muito útil. Tudo o que aconteceu, os abusos sexuais do clero sobre os menores destacaram dramaticamente esse problema. É preciso se aperceber antes da ordenação sacerdotal se existem inclinações ao abuso. E isso pode ser feito por um profissional como você que também estudou para isso. Se não forem reconhecidos, esses problemas podem ter efeitos devastadores. O seminário não é um refúgio para tantas limitações que possamos ter, nem um refúgio para deficiências psicológicas. Juntamente com os outros ensinamentos e caminhos espirituais, ter um psicólogo como guia no amadurecimento pessoal pode ser útil. Tudo isso para compreender o aspecto da maturidade humana e cristã e possíveis problemas de natureza psicológica. O caminho deve levar à formação de sacerdotes e consagrados maduros, especialistas em humanidade e proximidade, e não funcionários do sagrado. As pessoas precisam encontrar testemunhas da fé com as quais possam se confrontar e receber apoio e boa proximidade, humana.

O senhor tem medo?

Às vezes sim, quando tenho de tomar uma decisão, digo a mim mesmo: "Se eu fizer isso assim...?". Dá um pouco de medo de errar, né? ! E o medo neste caso ajuda-me, porque leva-me a pesar cuidadosamente as decisões a tomar, como fazer e tudo mais. Não é o medo que me paralisa, não não...é um sentimento que me torna atento: o medo é como uma mãe que te avisa. Digo medo, sim, talvez não o sinta por fora, mas às vezes sinto que tenho que pensar bem. Você sabe, para mim há decisões muito delicadas que tenho que tomar e às vezes não é fácil. Escuto a razão, o meu coração e depois confio-me a Ele. Na vida é difícil tomar decisões, muitas vezes tendemos a adiá-las, a deixar que os outros decidam por nós, muitas vezes preferimos deixar-nos arrastar pelos acontecimentos, seguir a moda do momento; às vezes sabemos o que temos que fazer, mas não temos coragem ou nos parece demasiado difícil. Todos os dias temos que tomar decisões mais ou menos importantes. Além disso, também pode se decidir ser feliz!.

Às vezes se tem medo de ser feliz, esta pode ser outra forma de medo?

Ah sim, sabe por quê? Porque temem que a alegria acabe, em espanhol chamamos de desencanto... quando tudo desaba. Alguns têm medo de ser alegres porque a alegria faz com que se sintam indefesos então toma conta o medo de que tudo possa acabar. Em vez disso, deve-se deixar a alegria entrar na vida.

Muitas vezes temos medo do julgamento.

Muitas vezes a hipocrisia se esconde por trás do julgamento. Pode-se dizer que a hipocrisia é o medo da verdade. O hipócrita teme a verdade. Prefere-se fingir a ser si mesmos.

Falando de julgamento, o senhor disse que “Se uma pessoa é homossexual e busca o Senhor e tem boas vontade, quem sou eu para julgá-la?”

Deus é Pai e não renega nenhum dos seus filhos. E o estilo de Deus é proximidade, misericórdia e ternura. Não julgamento e marginalização. Deus se aproxima com amor de cada um de seus filhos, de cada um deles. Seu coração está aberto a todos e a cada um. Ele é Pai. O amor não divide, mas une.

Fonte:  https://www.ihu.unisinos.br/625762-o-papa-e-o-psicologo-entrevista-com-o-papa-francisco

Água da torneira ou engarrafada?

 Por Carlos Augusto de Medeiros Filho*

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 "A venda e o consumo de água engarrafada podem ter impactos ambientais e sociais cujas consequências ainda não são totalmente compreendidas"

Um artigo do International Journal of Environmental Research and Public Health [1], de 2011, discute o crescimento de consumo de águas envasadas nos EUA e as causas dessa opção em relação as águas de torneiras provenientes de abastecimentos públicos.

Os autores dessa pesquisa científica comentam que apesar da crença comum de que a água engarrafada é mais segura para beber e tem um sabor melhor do que a água da torneira, estudos científicos mostraram que a crença não é necessariamente verdadeira. A pesquisa também mostra que a venda e o consumo de água engarrafada podem ter impactos ambientais e sociais cujas consequências ainda não são totalmente compreendidas, especialmente porque garrafas de plástico são um problema de desperdício, aumentando a sobrecarga do aterro quando não recicladas.

Segundo o artigo, as percepções de que a água engarrafada é de qualidade superior são desafiadas pelo número crescente de incidentes de qualidade da água com água engarrafada. Um estudo mostrou que apenas 5% da água engarrafada comprada em Cleveland, Ohio, tinha o flúor recomendado pelo estado, enquanto a água da torneira amostrada 100% atendia a esse requisito [2]. Outro estudo com foco na temperatura e duração do armazenamento da água engarrafada descobriu que o crescimento bacteriano na água engarrafada era significativamente maior do que na água da torneira, especialmente em temperaturas mais altas [3].

As conclusões dessa pesquisa científica, sintetizadas a seguir, são importantes registros de análise, com ressaltes de questões que devem ser densamente discutidas.

A água é essencial à saúde e à vida humana. O acesso ao abastecimento de água potável e a acessibilidade são preocupações centrais da saúde pública e dos consumidores individuais. Neste estudo, constatou-se que as percepções da qualidade da água subterrânea e da segurança do abastecimento de água local estão associadas às decisões de comprar água engarrafada versus usar sistemas públicos de água para beber.

Quando a água local não é considerada segura ou de alta qualidade, é mais provável que os consumidores dos EUA usem água engarrafada como fonte primária de água. Além disso, as percepções negativas de segurança aumentam a probabilidade de um consumidor comprar frequentemente água engarrafada, independentemente de sua fonte primária de água potável ser um pequeno sistema de abastecimento de água ou um grande sistema municipal de abastecimento de água.

Uma das implicações mais importantes das observações da pesquisa são que as autoridades de saúde pública e os líderes comunitários precisam trabalhar para garantir que o abastecimento público municipal de água potável seja seguro; além disso, devem encontrar formas eficazes de comunicar aos residentes locais a segurança do seu abastecimento de água.

Além disso, o público deve estar empenhado em compreender a relação entre a qualidade da água e a capacidade dos sistemas hídricos locais de manter os padrões de segurança e bom gosto. A desconfiança do consumidor em relação à qualidade de suas águas subterrâneas deve ser aproveitada para criar ações comunitárias para lidar com preocupações legítimas.

Os dados e considerações dessa pesquisa nos EUA se encaixam perfeitamente às condições em outras regiões, inclusive no caso potiguar. É relevante a necessidade de dados transparentes, abrangentes e seguros da qualidade da água disponibilizadas nas torneiras e engarrafadas. Essa seria a maneira, sem dúvida, mais consistente para a população poder exercer seu direito de opção entre os dois tipos de água, já que a escolha crescente, hoje, pelas águas envasadas se deve muito mais por uma concepção ou juízo pessoal de qualidade do que por uma decisão técnica.

Referências Bibliográficas:

[1] Hu, Z., Morton, L.W, Mahler, R.L. 2011. Bottled Water: United States Consumers and Their Perceptions of Water Quality. Int. J. Environ. Res. Public Health, 8, p. 565-578.

[2] Lalumandier J.A.; Ayers, L.W. Fluoride and bacterial content of bottled water vs. tap water. Arch. Fam. Med., 2000, 9, p. 246-250.

[3] Raj, S.D. Bottled water: how safe is it? Water Environ. Res., 2005, 77, p. 3013-3018.

*Escreve Carlos Augusto de Medeiros Filho, geoquímico, em artigo publicado por EcoDebate, 20-01-2023.

Fonte:  https://www.ihu.unisinos.br/625746-agua-da-torneira-ou-engarrafada-artigo-de-carlos-augusto-de-medeiros-filho