sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

Os terroristas do bem

  Opinião de Mafalda Anjos

 
 Foto: GettyImages
 
Pessoas comuns intoxicadas por um discurso populista, manipuladas por propaganda digital, atiradas para as trincheiras de uma luta irracional contra os princípios basilares da democracia

O nome de código era “Festa da Selma”. Nos grupos de WhatsApp, no TikTok e no Facebook, entre memes e partilhas de fake news, arrecadaram-se convidados apoiantes de Bolsonaro para a concentração na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, para “lutar pela liberdade e contra a opressão comunista ao povo cristão, à família, à religião, ao futuro e à liberdade dos nossos direitos democráticos”. “O plano do movimento é prender todos, e se possível aniquilar como traidores da pátria. É agora, tudo ou nada!”, resume-se numa mensagem de apelo à mobilização. 

Num vídeo partilhado nas redes, vê-se um grupo destes bolsonaristas em excursão desde Mato Grosso do Sul até à capital política do Brasil. São casais compostos de meia-idade, senhoras de pérolas nas orelhas, avôs sorridentes e barrigudos, jovens com buço e ar tímido. “Vamos buscar o que é nosso, a liberdade”, diz um. “Vamos ajudar a tirar o ladrão”, atira outro. “Vamos arrancar o nine [nove dedos] da cadeira.” Na última fila do autocarro, como nas visitas de escola, é onde sobe o tom: “Vamos rebentar com a cadeira do cabeça, lá. Desgraçar com a vida dele!” Outro deixa uma mensagem a Lula da Silva: “Ó, vou falar uma coisa para você: você vai escapar de um raio, mas não escapa de mim hoje.”

Alongo-me nesta descrição, porque terão sido brasileiros como estes os milhares que invadiram os três edifícios estatais, deixando um rasto de destruição à sua passagem, num esforço para inverter os resultados das eleições, já depois da tomada de posse de Lula como Presidente. Há imagens que ficam na retina. As fotografias da banca de água de coco e do homem a vender algodão-doce na rampa do Planalto são a súmula perfeita do que se passou em Brasília: uma tentativa desconchavada de golpe de Estado num domingo quase normal.

São estes os novos terroristas “do bem”, pessoas comuns intoxicadas por um discurso populista, manipuladas por propaganda digital, atiradas para as trincheiras de uma luta irracional contra os princípios basilares da democracia. Está à vista aquilo que muitos, por esse mundo fora – incluindo Portugal – não quiseram ver ao colocarem Lula e Bolsonaro ao mesmo nível: o que se joga no Brasil não é uma luta entre a esquerda e a direita. É entre a defesa dos valores democráticos e o totalitarismo.

1 200 agressores foram detidos e arriscam-se agora a 30 anos de prisão – muitos provavelmente sem terem bem noção da gravidade do que estavam a fazer. E agora, como se sai daqui? Eis a questão. Numa democracia falhada em clima de guerra civil, em que as forças de segurança são coniventes com os terroristas, em q ue a nação está partida ao meio e vê o outro lado como o inimigo figadal, como se trilha agora caminho? Como se canta em conjunto “Amanhã vai ser outro dia”?

Não há fórmulas vencedoras. Basta olhar para os Estados Unidos, cuja invasão do Capitólio há dois anos foi agora decalcada, para perceber que não se sanam facilmente as feridas abertas. O extremismo, seja ou não bolsonarista, continuará a fervilhar e a propagar-se pelas redes, nesse caldo tépido onde se dá voz ao ressentimento e onde se propaga o ódio. Com uma economia com perspetivas pouco animadoras, Lula da Silva terá agora menos dinheiro disponível para gastar e distribuir pela população. Regresso à velha formulação que li em John Keane: o populismo é a doença autoimune das democracias. Como um mau funcionamento do sistema imunológico, leva o corpo a atacar os seus próprios tecidos – destrói-se por dentro. Lutar contra ele é, talvez, a tarefa mais fundamental dos nossos dias. E a mais difícil.    

*Diretora. Jornalista.  Estudou direito, mas viu a luz no jornalismo, que continua a apaixoná-la todos os dias. Começou a trabalhar na área da economia, onde passou por vários títulos durante uma década. Foi depois durante sete anos editora da revista do Expresso e está, desde 2015, na VISÃO. Devoradora de revistas, atenta às tendências globais e a precisar de um detox digital que nunca fará. Tem quatro filhos, um marido, um cão e uma pão de forma chamada Marisol. Twitter: @manjos Podcast: Olho Vivo

Fonte: https://visao.sapo.pt/opiniao/ponto-de-vista/em-sincronizacao/2023-01-12-os-terroristas-do-bem-opiniao-de-mafalda-anjos/ https://visao.sapo.pt/autores/mafalda-anjos/

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