domingo, 22 de janeiro de 2023

Náufragos do orgulho

Leandro Karnal*

No naufrágio do Titanic da espécie humana, eu me agarro à boia da minha vaidade 

Vejo pessoas tomadas de fúria. Observo outros humanos atacados de ciúmes doentios ou inveja corrosiva. A luxúria consome meus conhecidos e induz cada um deles a atos torpes. Por todo lado, o “humano, demasiado humano”, domina. Egoístas sempre, altruístas de quando em vez. E eu? Sinto-me igual (ou pior) a todos os que perambulam neste umbral chamado vida.

Ressalto: minha estrutura iguala-me a toda a mesquinhez do mundo. Minha vaidade é tão imensa que tenho vergonha de demonstrar a fraqueza em público. Como funciona? Alguém me diz algo desagradável na rua. Fico perturbado, sempre, mas... teria muita vergonha de reagir com raiva desmedida, demonstrando que o agressor acertou o alvo; eu acuso o golpe, sentindo afluir o sangue da “vendetta”. Prefiro fingir indiferença disfarçada por certo estoicismo de “minha paz me pertence”. Olhando de longe, pareço sábio; de perto, sou uma besta-fera amordaçada.

Tenho ciúmes vários, mas nada digo. Parece que seria uma humilhação pedir que evite encontrar alguém. É algo similar a “como o meu concorrente pode ser melhor do que eu, prefiro que você não o encontre”. Passar atestado de fraqueza, de medo e berrar ao mundo que não sou bom o suficiente? Minha máscara é a superioridade ocultando meu medo trêmulo: “Pode ir, amor... você quem sabe”.

Em meu favor, o fino verniz consegue ter efeito denso. Tive um colega invejoso que me atacava na universidade. Num dia, em meio a uma chuva de críticas gratuitas em almoço coletivo, respondi com calma, trocando o nome dele por um similar. Vi como ficou perturbado. O ódio é um pedido de atenção, entretanto fingi, com sucesso, que ignorava a ação e o ser atrás de tal ação. Foi devastador, e ele perdeu o controle. Eu pisquei por último no fogo-fátuo das vaidades acadêmicas.

Sou vaidoso a ponto de controlar minha raiva. Meu orgulho é tão grande que gosto de emular a sabedoria. Insisto pouco se alguém não quer sair comigo. Disfarço e domestico, parcialmente, minha ira.

Uma pessoa sábia não pode ser atingida por ataques. Sua tranquilidade é profunda; sua paz é um lago sereno ao redor da consciência. O equilibrado de verdade é um monumento de granito que fica indiferente às ondas que se abatem. Não sou assim.

O segundo tipo é o ser impulsivo que enfrenta tudo e todos. Cada palavra seca é respondida com agressão verbal ou física. O raivoso imaturo deixa ao mundo a decisão sobre ter ou não equilíbrio. Basta um gesto e... lá vem a pororoca reativa. Essas pessoas são folhas frágeis que oscilam de acordo com o desejo do vento externo, carregadas para lá e para cá. Barulhentos, porém vítreos; brigões, todavia dependentes. Causam mais incômodo e pena do que medo. Também não sou assim.

Sou um mestiço estranho entre os dois tipos anteriores. Nunca fui o perfeito equilibrado em um mar de dificuldades. Melhorei, porém estou longe do modelo do filósofo Epicteto. Da mesma forma, não encarno o segundo modelo. O impulso não é soberano sobre meu mundo. Minha raiva existe e é controlada, como disse, pela vaidade. O zelo pela minha imagem me domina mais do que ter feito psicanálise ou ter lido tanta filosofia. Não me sinto guiado pela virtude. Meu freio está na fragilidade do meu ego, que finge, pretende, encena e age com serenidade, na maioria das vezes.

De alguma forma, existe uma secreta admiração pela sinceridade transparente de alguém que muda física e psiquicamente, porque outra pessoa deu uma buzinada indevida. É como se essa pessoa não tivesse vergonha de ser visceral e gritasse ao mundo: emita um som, e o meu mundo desmorona como Jericó diante das trombetas dos hebreus. Um perturbado é uma espécie de criança que fica emburrada diante da atenção dada ao irmão na festa de aniversário. Como os pequenos, alguns adultos parecem achar que mostrar carência e fraqueza em público é... legal. Eu morro de vergonha de berrar para todos que sou uma carne viva, sem pele, e um vento frio pode me fazer sentir dor. Há uma parte minha que admira a sinceridade na fraqueza de quem tem acesso de ciúme, em público, sem culpa de reconhecer que não se considera com atrativos suficientes para enfrentar a concorrência.

Volto ao tema: sou igual (ou pior) a todos os motoristas do mundo, a todos os maridos ou a qualquer outro profissional inseguro. Sou raivoso e cheio de complexos. Tenho medo e acho sempre que me abandonarão. Porém, no naufrágio do Titanic da espécie humana, eu me agarro à boia da minha vaidade, minha companheira fiel, vasta e segura. Fico à deriva sim, temo a água fria, a morte e... não grito para não atestar que sou feito do mesmo lodo de todos os fracos e pusilânimes.

Reconhecer-se igual a todos é quase humildade. Saber-se pior é próprio da consciência dos santos. Minha vaidade é tão enorme que, freando minhas raivas e acessos, ainda me fornece uma narrativa de superioridade: “Viu? Não sou como esses que se descontrolam”. Assim, afundo, no mar gelado e patético da humanidade, como todo náufrago, mas... sem gritar. Diferente dos ruidosos, sou um imbecil silencioso e altaneiro. Afundo com total dignidade e estudada cenografia. Tenho esperança de, num dia, ficar sábio. O tempo está diminuindo... 

* Historiador, Filósofo. Escritor e professor brasileiro.

Fonte:  https://www.estadao.com.br/cultura/leandro-karnal/naufragos-do-orgulho/ 22/01/23

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