sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

Ratzinger, a vinha, os lobos e as raposas

  Por José Brissos-Lino*

 
PATRICK HERTZOG/AFP via Getty Images
 
Muito se tem dito e escrito nos últimos dias sobre Joseph Ratzinger a propósito do seu falecimento, aos 95 anos. Mas o rasto de controvérsia e contradição permanece

Eleito aos 78 anos, Bento XVI teve um pontificado curto quando abdicou e passou à condição de papa emérito e bispo emérito da diocese de Roma. Viveu cerca de 10 anos no mosteiro Mater Ecclesiae, no Vaticano. Foi o primeiro Papa a renunciar em 600 anos, por motivo de saúde, depois de Gregório XII em 1415.

Considerado “braço direito” de João Paulo II, Ratzinger era um homem introvertido, desajeitado no palco mediático e defensor da ortodoxia católica. Os conservadores da Igreja consideravam-no seu porta-estandarte, tentando manipulá-lo de acordo com os seus interesses, e alguns ultratradicionalistas até se recusaram a reconhecer Francisco como um pontífice legítimo. Académico muito preparado e poliglota (reuniu cerca de dez doutoramentos honoris causa) era tradicionalista – foi o primeiro papa, desde João XXIII, a voltar a usar o camauro (barrete papal de Inverno) e o calçado vermelho dos papas.

Foi o primeiro alemão a chefiar a Igreja Católica em 1000 anos e um representante da linha mais dogmática da Igreja. Na altura Ratzinger explicou que não se sentia em condições para responder aos desafios de um mundo em rápida mudança, devido a questões de saúde, numa decisão mal compreendida por muitos prelados. Mas consta que não quis ou não conseguiu fazer frente aos lóbis instalados na Cúria. Terá tentado mas não conseguiu combater eficazmente a pedofilia na Igreja, e chegou a culpar a revolução sexual dos anos 60 pelo fenómeno.

Mas o conhecido movimento We Are Church International (WAC) considera o cardeal Joseph Ratzinger como “um teólogo altamente contraditório que moldou a Igreja Católica Romana por décadas de uma maneira retrógrada como nenhum outro líder da igreja pós-conciliar. Deixou ao seu sucessor, o Papa Francisco e a toda a Igreja, um legado difícil de superar, deixando um clima de medo e uma paralisação teológica.” E acrescenta que, apesar de Ratzinger ter ajudado a moldar as reformas do Concílio Vaticano II (1962-1965) enquanto jovem teólogo e conselheiro, a verdade é que “mais tarde provou ser um teólogo movido pela desconfiança e congelado pelo medo durante 31 anos no Vaticano”, primeiro como como Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, sob o Papa João Paulo II (1982-2005) e depois como como Papa Bento XVI (2005-2013).

Aquele movimento católico fundado em Roma em 1996 e que está empenhado na renovação da igreja católica segundo o espírito do Vaticano II, considera ainda que “Joseph Ratzinger não desenvolveu uma compreensão da dimensão futura da fé”, tendo tentado travar o impulso reformista decorrente do concílio ao revelar uma atitude reaccionária.

Mesmo como papa emérito, Bento XVI nem sempre manteve a discrição com que se comprometeu tendo chegado a produzir declarações problemáticas. Mas a sua renúncia em 2013 foi um acto louvável que desmistificou e dessacralizou o ofício papal.

Georg Gaenswein, um sacerdote alemão, que o acompanha há três décadas, primeiro na Congregação para a Doutrina da Fé (antigo Santo Ofício) e depois como seu secretário vai lançar este mês um livro apologético para desfazer a imagem negativa que Joseph Ratzinger granjeou, onde faz referência aos conflitos, escândalos e problemas que Bento XVI enfrentou durante o seu curto pontificado, e onde recorda que ele tinha pedido orações no início para que Deus o protegesse dos “lobos” da Cúria.

António Marujo afirma no 7 Margens que, afinal, “o teólogo adepto do diálogo entre a fé e a razão não permitiu que outros teólogos investigassem com liberdade,” tendo entrado em choque quer com Hans Küng, um antigo colega docente de Tubinga e Leonardo Boff que considerava “brilhante”, entre muitos outros, apenas por que questionaram “as estruturas de poder do Vaticano ou a doutrina moral tradicional da Igreja”. Mas ao contrário do que alguém escreveu, Ratzinger não chegou à fé através da razão porque tal não é possível. Aliás, só alguém sem fé pode sugeri-lo.

A sua renúncia ao papado comprova pelo menos duas coisas: que Ratzinger já se sentia fora do seu tempo, e por outro lado que um papa não é uma espécie de semi-deus, mas apenas um homem comum ou, como ele se definiu a si próprio, “um simples e humilde trabalhador na vinha do Senhor”. Afinal, já o rei Salomão alertava não para lobos mas para raposas: “Apanhai-nos as raposas, as raposinhas, que fazem mal às vinhas, porque as nossas vinhas estão em flor” (Cânticos 2:15).

* Doutorado em Psicologia e Especialista em Ciência das Religiões; Diretor do Mestrado em Ciência das Religiões na Universidade Lusófona; Coordenador do Instituto de Cristianismo Contemporâneo; Director da revista teológica AD AETERNUM; Investigador do CLEPUL (Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias – Universidade de Lisboa) e do CIPES (Centro de Investigação em Política, Economia e Sociedade – Universidade Lusófona). Desenvolve há muitos anos intensa atividade em instituições culturais, humanitárias e de solidariedade social, algumas das quais fundou. Poeta e ficcionista.

Fonte:
https://visao.sapo.pt/autores/jose-brissos-lino/


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