sexta-feira, 26 de abril de 2024

Direita volver

Por  Leão Serva*

Para historiador Fernando Rosas, possível reeleição de Trump e não afastamento definitivo de Bolsonaro favorecem regressão a formas do fascismo histórico

Quando o senhor começou a produzir o seu livro Salazar e os fascismos, imaginava que o clima político no mundo iria torná-lo tão atual?
Na realidade, as coisas andaram depressa. O livro é sobre o fascismo paradigmático, histórico, na Europa. Ao fim da publicação, ensaio uma relação entre o fascismo dos anos 30 e os movimentos de extrema direita, que ganhavam força, àquela altura, na Europa, sobretudo na França e na Itália. Mas é claro que houve, desde então, uma mudança qualitativa de extrema gravidade, que coloca neste momento a extrema direita à beira do poder na França, no poder na Itália e com sondagens superiores a 20% na Alemanha, acima até do Partido Social-Democrata do primeiro-ministro alemão. Lá, ainda por cima, essa extrema direita está intimamente ligada a projetos de deportação de milhões de pessoas, em função das características étnicas ou opiniões políticas. Portanto, se somarmos a isso as possibilidades da reeleição do Trump nos Estados Unidos e do não afastamento definitivo do ex-presidente Bolsonaro no Brasil, temos uma situação internacional, do ponto de vista dos direitos humanos e da regressão a formas parecidas com o fascismo histórico, que não pode deixar de merecer a atenção dos cidadãos em geral e dos historiadores em particular.

Nós associamos sempre o fascismo a líderes carismáticos: Mussolini, Hitler, Franco… mas Salazar tinha um perfil mais discreto. Como ele conseguia ser um líder fascista sem ser um pavão como os outros?
O fascismo histórico, paradigmático, do entreguerras, não gera regimes de natureza única. Prefiro mesmo falar em fascismos, no plural. Historicamente, surge de um casamento com uma parte da direita tradicional, assustada pela iminência da revolução social, da Revolução Russa, pelo impacto da Primeira Guerra Mundial e, depois, pela instabilidade causada pela Grande Depressão, de 1929. A aliança da direita tradicional com os movimentos do fascismo plebeu surge no rescaldo da Primeira Guerra, a partir de 1919, na Itália, e depois na Alemanha e em outros países, que têm uma base social nas classes médias, na pequena burguesia, sobretudo em setores mais atingidos pelo impacto econômico-social da crise do capitalismo e dos sistemas liberais que o fim da guerra desperta. Digamos que é o encontro entre essa direita tradicional, que alguns autores chamam de rendição do liberalismo, com esse fascismo plebeu violento, interpretado por líderes carismáticos. A junção dos dois cria um tipo de ditadura, a que temos chamado de ditaduras fascistas, de partido único, xenófobas e racistas, com culto da violência ilegal e irrestrita, de discursos sobre a restauração da grandeza da nação doente pelo regresso da força, do retorno aos velhos impérios, o ultranacionalismo expansionista imperial como solução para o renascimento da pátria, tal qual a fénix renasce das cinzas.

Esse discurso e essas características do novo regime têm realizações históricas relativamente diferenciadas, de acordo com o peso que, nessa aliança, tem a direita tradicional ou a direita populista. Na Itália, tem um equilíbrio. O regime italiano é um equilíbrio entre o Partido Nacional Fascista e a dinastia bourbônica. Ela vai buscar o Mussolini quando a burguesia italiana se sente ameaçada e o despede quando a Itália começa a perder a guerra. Na Alemanha, há um predomínio claro do Partido Nacional Socialista sobre a burguesia alemã que o apoia. Mas o partido domina o Estado, cria um Estado paralelo. O primeiro franquismo, que vai da vitória na Guerra Civil [Espanhola], em 1939, até 1945, é claramente fascista, de partido único e com um rastro de sangue de 200 mil execuções, uma coisa brutal.

Regimes fascistas paradigmáticos surgem do casamento com parte da direita tradicional

O caso português é diferente. É um acontecimento em que a direita tradicional tem mais peso sobre a populista fascista, interpretada pelo Movimento Nacional-Sindicalista do doutor Rolão Preto [1893-1977]. O peso do autoritarismo conservador da direita tradicional no Estado Novo português é sempre predominante. É uma modalidade de regime fascista, com partido único, com uma polícia política no centro de todo o aparelho repressivo e judicial, com uma milícia fascista chamada Legião Portuguesa, com uma milícia de juventude, com uma organização corporativa do Estado decalcada no Estatuto do Trabalho Nacional do Mussolini e nas leis do corporativismo italiano e com uma retórica imperial colonial. Portanto, eu diria que o regime salazarista é uma modalidade particular de fascismo.

O salazarismo durou até mais do que o próprio Salazar. Como uma ditadura sobreviveu quando a Europa estava toda democratizada?
Havia, na Europa, três regimes ditatoriais: Portugal, Espanha e Grécia. E caem todos quase em seguida: Portugal e Grécia em 1974, o Franco morre em 1975 e, em seguida, ocorre a transição democrática na Espanha. Há várias razões que explicam a durabilidade salazarista. Em primeiro lugar, a violência: uma ditadura que cortou todas as liberdades fundamentais, que tinha uma polícia política servida por polícias, tribunais, cadeias e um aparelho repressivo absolutamente onipresente no cotidiano das pessoas. Em segundo lugar, o longo controle político do Exército por parte do regime, que logrou impedir que a resistência social tivesse tradução militar até a Guerra Colonial. É este conflito, que se inicia em 1961 e se arrasta até 1974, que coloca os oficiais intermédios como intérpretes do descontentamento e do cansaço social com a ditadura e a guerra. Em terceiro lugar, a Igreja Católica, que teve um papel muito importante na legitimação do regime. Repare que Portugal era um país rural e a igreja considerava Salazar uma espécie de doação da providência divina. Finalmente, a criação de um aparelho totalitário do cotidiano, ou seja, de controle da família, do trabalho, dos lazeres. Essa conjugação de fatores permitiu ao regime durar, sempre com contestação social, política, do primeiro ao último ano.

Seu livro faz um raio X dos diversos fascismos para afirmar o que é estrutural e essencial ao regime. Nesse contexto, o integralismo brasileiro foi um fascismo? E Getúlio Vargas um líder fascista?
Do que eu conheço da realidade brasileira, o integralismo do Plínio Salgado é um movimento tipicamente fascista. O integralismo português, não. Era um movimento contrarrevolucionário, monárquico, restauracionista e de autoritarismo conservador. Mas o brasileiro é um movimento cujas características são tipicamente fascistas: um integralismo miliciano, revolucionário, partidário do assalto ao poder. O regime do Getúlio Vargas é diferente. Ainda que namore com o fascismo, é sobretudo uma ditadura autoritária populista. Basta ver que Vargas, quando Roosevelt aperta a pressão para que os países da América Latina ponham esforço de guerra na Europa, manda o Exército brasileiro competir ao lado do norte-americano e combater o nazismo e o fascismo na Europa. Nesse sentido, o peronismo argentino se aproxima mais do regime fascista, até pela grande influência que a Itália tem na Argentina. Vargas vai com os norte-americanos quando eles fazem pressão, o Perón, não.

Nos casos atuais de lideranças de regimes autocratas, quais têm a marca mais acentuada do fascismo paradigmático?
Eu acho que a Europa do Leste é um caso particular, porque a nova extrema direita só surge por lá depois da implosão da União Soviética, em 1989. E é uma extrema direita muito fascista, radical, racista, violenta, miliciana, que tem bastante força na Hungria, Polônia, Rússia, com várias organizações neonazistas ou neofascistas. Se considerarmos no chamado Ocidente, a gênese dessa extrema direita vem toda da nostalgia do fascismo no pós-guerra. Mas há dois períodos: até os anos 70, essas organizações de extrema direita são abertamente neofascistas, nostálgicas do nazismo, racistas, de um antissemitismo que, depois, vai evoluindo para islamofobia. Proclama uma unidade da Europa branca contra um welfare étnico, ou seja, o Estado de bem-estar social para os brancos, com claro repúdio de invasão imigrante vinda da África, da Ásia ou dos países muçulmanos.

E quando começa a “segunda fase”?
As coisas passam a mudar nos anos 70, quando começa a declinar o capitalismo do pós-guerra, da grande rentabilidade dos capitais. Quando esse modelo entra em crise e começa a evoluir para um novo estado, o capitalismo neoliberal que vem anunciado pelo governo de [Margaret] Thatcher, na Inglaterra, e Reagan, nos Estados Unidos. Há uma espécie de agravamento da crise sistêmica e a extrema direita começa a mudar, a colher apoio social no desemprego, na instabilidade, no medo. Ela vai pescar nesse desespero, na incerteza sobre o futuro, como ocorreu no período entreguerras. Vai se apresentar de gravata, por assim dizer, tenta parecer um movimento respeitável. Passa a olhar para a possibilidade de participar da vida parlamentar e política e crescer.

É com a exploração do medo, da incerteza sobre o futuro das pessoas, que a extrema direita cresce

A partir dos anos 80 e sobretudo do início do século 21, esses movimentos têm os olhos postos na conquista ou, pelo menos, na participação no governo. São movimentos que, neste momento, já participam do poder na Itália, nos países nórdicos. E na Hungria há hoje um regime que não tem nada de democrático… A única coisa que o mantêm são eleições, mas altamente condicionadas pelo controle da Justiça, da comunicação social e da liberdade de imprensa por parte do Estado, pela existência de partidos de extrema direita milicianos na própria organização do poder. Portanto, considerar o regime húngaro de Orbán como democracia parlamentar é um esforço, porque não é isso que se passa.

E o caso da Rússia?
A implosão da União Soviética e, sobretudo, depois daquele período de crise e de decadência do regime, a substituição do [Boris] Iéltsin pelo grupo dos oligarcas, tendo como árbitro e dirigente o [Vladimir] Putin, levou a um regime que eu diria que é uma espécie de sistema neoimperial, neoczarista. Um regime que pretende restaurar a grandeza da Rússia como potência imperial, absolutamente autoritário, em que há um pobre simulacro de pluralismo, toda gente que protesta é presa, não há liberdade de imprensa. E um imperialismo que tenta resistir à decadência com a guerra, a agressão à Ucrânia — ainda que, neste caso, no meu entender, há responsabilidade das duas partes: daquele que, como dizem os brasileiros, tentou cutucar a onça com vara curta e dos russos, que responderam de maneira inaceitável, violando a soberania de um país independente.

É possível imaginar a democracia gerando esses regimes antidemocráticos?
Claro! Se eles ganharem as eleições de governo.

É o caso do Trump, por exemplo?
É o caso do Trump ou do Bolsonaro, no Brasil. Pode ser o caso da França, se a Marine Le Pen tiver a vitória nas eleições presidenciais. Isso acontece. O problema é que as democracias não conseguem se manter sem regular a economia. Portanto, a primeira linha de defesa da democracia é a regulação econômica, do movimento de capitais, a defesa do estado social. Só há base social para o autoritarismo se a democracia não for capaz de resolver os problemas tremendos que as pessoas têm: habitação, emprego, precariedade, segurança social. Se as próprias democracias se deixarem embrulhar na lógica e nas prioridades da acumulação neoliberal, o que vai acontecer é que serão engolidas. As democracias se defendem respondendo aos problemas das pessoas, à ansiedade, ao medo, à incerteza sobre o futuro, porque é com a exploração desse sentimento que a extrema direita cresce na Europa e no mundo.

* É diretor internacional de jornalismo e correspondente em Londres da TV Cultura e autor de A fórmula da emoção na fotografia de guerra (Edições Sesc).

Fonte:  https://quatrocincoum.com.br/noticias/50-anos-da-revolucao-dos-cravos/direita-volver/?utm_source=news-doslivros&utm_medium=email&utm_campaign=newsletter

Dignidade infinita? Carta aberta de estudantes, teólogos e ministros católicos ao Papa Francisco

 National Catholic Reporter

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Publicamos aqui a carta aberta escrita por estudantes, teólogos e ministros católicos ao Papa Francisco sobre a declaração Dignitas infinita, sobre a dignidade humana, publicada pelo Dicastério para a Doutrina da Fé. A carta foi publicada por National Catholic Reporter, 25-04-2024. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

À Sua Santidade, o Papa Francisco, e Sua Eminência Cardeal Victor Fernández, prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé,

Vossa Santidade e Vossa Eminência, a paz de Cristo esteja com os senhores. Escrevemos hoje como um coletivo de estudantes de Teologia católica e de escolas teológicas e de ministros treinados. Amamos esta Igreja, amamos a nossa fé católica e fundamentamos o nosso ministério no nosso chamado batismal à santidade.

Também somos trans, não binários e queers, junto com aqueles que nos amam e acompanham. Pessoal, profissional e ministerialmente, estamos preocupados com as declarações da Dignitas infinita sobre a teoria de gênero e a mudança de sexo. Nós, junto com outras pessoas de boa vontade, escrevemos para os senhores hoje.

Lemos com gratidão a insistência do documento na dignidade humana inalienável para os migrantes, os pobres e outras pessoas cuja dignidade é consistentemente violada. Lamentamos, portanto, que o documento não reconheça a dignidade das pessoas trans e não conformes de gênero.

Em sua condenação à “ideologiade gênero e à “mudança de sexo”, o documento marginaliza a dignidade infinita das pessoas de todos os gêneros e sua autoexpressão autêntica, e, inadvertidamente, perpetua os danos que pretende superar.

Eclesialmente: a sinodalidade nos chama a estar abertos à mudança e à conversão do coração por meio do encontro e da escuta. Essa abertura abre espaço aos apelos do Espírito Santo. Dignitas infinita não mostra nenhuma evidência de que seus autores tenham se informado por meio de encontros verdadeiros com pessoas trans, não binárias e intersexuais. Em vez disso, a declaração se foca na ameaça da “teoria de gênero”, retratando um campo acadêmico diversificado como um monólito, uma ameaça, uma “ideologia” e um fantasma desconectado das vidas reais.

Quando optamos por uma postura defensiva como essa, fechamo-nos à curiosidade genuína, à criatividade vivificante e às respostas pastorais adequadas. Sejamos a Igreja sinodal e ouvinte que proclamamos ser.

Teologicamente: a declaração afirma que o objetivo da “teoria de gênero” é “negar a diferença sexual”. Ao reconhecer indivíduos trans e não conformes de gênero, não vemos nenhum risco de apagar a diferença sexual. Pelo contrário, o fato de reconhecê-las afirmaria a vasta diferença sexual e a dignidade dos indivíduos, assim como a diversidade da criação de Deus.

Vimos claramente, em nossas vidas e em nossos ministérios, que indivíduos trans e não conformes de gênero não procuram “fazer-se Deus”, como alega o parágrafo 57 da declaração. Pelo contrário, discernir e viver continuamente alinhados com a própria identidade de gênero pode ser uma afirmação da pessoa única que Deus criou e chama cada um de nós a ser.

Eticamente: o parágrafo 55 do documento afirma que “denuncia-se como contrário à dignidade humana o fato que em alguns lugares não poucas pessoas são encarceradas, torturadas e até mesmo privadas da vida unicamente pela sua orientação sexual”. Reafirmamos essa afirmação ao mesmo tempo em que perguntarmos: será que o florescimento de indivíduos trans e não conformes de gênero se limita à proteção legal contra a prisão, a tortura e a morte? Os católicos trans e não conformes de gênero sonham que a Igreja Católica possa um dia afirmar a dignidade deles e delas não só para que possam sobreviver como são, mas também para viverem e florescerem como são.

Os eticistas católicos que nos formaram, escrevem a partir e com a tradição católica, as Sagradas Escrituras, a experiência vivida das pessoas que sofrem e as intuições das disciplinas acadêmicas e científicas. Admiramos o compromisso deles com a verdade e a dignidade humana com base nas necessidades e nos desafios presentes em seus contextos.

Pedimos que seja oferecida aos eticistas católicos especializados em ética de gênero e sexual, particularmente em ética LGBTQ+, a oportunidade de participarem no discernimento e na criação de futuros documentos sobre gênero e diversidade sexual, usando a plenitude de suas competências. Sua formação será inestimável à medida que nós, como Igreja, procuramos afirmar a dignidade das pessoas trans, não conformes de gênero e intersexuais, de acordo com a insistência da tradição na dignidade humana.

Também pedimos que uma comissão de teólogos, ministros e fiéis leigos queer, trans e intersexuais aconselhem o Dicastério para a Doutrina da Fé. Imploramos que os senhores escutem os gritos das pessoas trans, não binárias e intersexuais. Como Igreja, não podemos amar quem não conhecemos de verdade.

Obrigado pela sua consideração.

[A lista completa dos signatários está disponível aqui. As pessoas interessadas em somar sua assinatura ao documento podem fazê-lo aqui.]

Fonte:  https://www.ihu.unisinos.br/638863-dignidade-infinita-carta-aberta-de-estudantes-teologos-e-ministros-catolicos-ao-papa-francisco

quinta-feira, 25 de abril de 2024

Nossas ideias, propostas e utopias envelheceram? Um diálogo com Frei Betto.

Artigo de Flávio Lazzarin*

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Jovens protestando em defesa do meio ambiente | Foto: Canva


"Foram-se as inserções no meio popular e as luta por vida e dignidade, e sobrou somente uma narrativa, cada vez mais ideológica e sem capacidade de seduzir e convencer as novas gerações?"

Eis o artigo. 

Caro frei Betto, li com atenção e interesse as considerações que fizeste após o 12º Encontro Nacional do Movimento Fé e Política, em Belo Horizonte 5-7 de abril de 2024.

É verdade: a nossa geração envelheceu, mas, diante de tantos cabelos brancos, que caracterizam os eventos que reúnem quem ainda acredita e aposta numa caminhada libertadora, nos perguntamos justamente se também nossas ideias, propostas e utopias envelheceram junto conosco.

Em suma: se foram as inserções no meio popular e as lutas por vida e dignidade e sobrou somente uma narrativa, cada vez mais ideológica e sem capacidade de seduzir e convencer as novas gerações?

Frequentemente, numa séria perspectiva autocrítica, me parece descobrir na nossa trajetória uma tendência a repetir práticas pastorais e políticas, que já deram certo, mas que não correspondem mais às silenciosas e prepotentes demandas que surgem da realidade social.

Assim nas nossas mãos inermes e paralisadas sobram só os discursos, que nos obstinamos a chamar de profecias. A história mudou e mudou também a gente, mas, às vezes, nos isolamos numa redoma opaca e embaçada.

A história mudou certamente quando, em três décadas de inverno eclesial, os legados proféticos do Vaticano II e de Medellín – “o novo jeito de toda a Igreja ser” – foram varridos do panorama eclesial em toda América Latina e confinaram na clandestinidade a pastoral libertadora. Traição restauracionista, que não foi fruto somente da cumplicidade clerical e que se reapresenta hoje, inspiradora e aliada do neofascismo, na pequena primavera do solitário papa Francisco.

Mas pensar em lamentações intereclesiais é, com certeza, um equívoco imperdoável. Seria muito simplório ignorar todas as transformações da sociedade brasileira nestes últimos cinquenta anos. Não se trata somente de mudanças de superfície devido às maquiagens modernizadoras do mercado, do consumo, das novas tecnologias: a televisão, num primeiro momento, e a revolução digital sucessivamente.

A avalanche das mudanças históricas – fala-se hoje, apropriadamente, de mudança de época – atingiu sobretudo e irreversivelmente as subjetividades, as emoções, os sentimentos, as mentalidades, os pensamentos das pessoas.

Desconhecer as mudanças não significa somente renunciar a entender a realidade, mas, sobretudo, sabotar a construção de autênticas relações humanas e eclesiais. E renunciar ao discernimento pastoral. E renunciar ao discernimento político.

Parece-me que, nestas últimas três décadas, o nosso sonho político foi progressivamente transformado, com a substituição de antigos atores e a irrupção de novos protagonistas no cenário das lutas populares.

Mudaram também as inspirações ideológicas e espirituais: o papel das teologias da libertação e o testemunho profético de bispos e comunidades de base, que enfrentavam a ditadura empresarial-militar, passou a ser realizado pela insurgência dos povos originários, quilombolas, ribeirinhos, comunidades rurais e urbanas, que ressuscitam retomadas não só de territórios, mas também de espiritualidades e ancestralidades. Lutas minoritárias e frágeis, mas indiscutíveis profecias existenciais, que denunciam os males da nossa crise civilizacional e apontam para estratégias de salvação da vida e da humanidade. Pequenos rebanhos, sobras de uma luta que nos parecia ser bem maior. Sementes.

Em suma, sem querer absolutamente esquecer o irrepetível testemunho fecundo da fidelidade dos nossos profetas e mártires da libertação, hoje o carisma da profecia não está mais confinado em âmbito eclesial e se encontra na prática e na palavra de figuras como Davi Kopenava Yanomami e Nego Bispo.

Devo te dizer também que estou parcialmente de acordo contigo quando afirmas que “a queda do Muro de Berlim abalou as nossas esperanças em um mundo onde todos teriam a sua existência dignamente”. Com certeza é o surpreendente evento central do século passado, que não somente reembaralhou as cartas mas trocou o próprio baralho e as regras do jogo da história, mas as tragédias da atualidade revelam que esta crise irreversível, crise que não pode ser imputada simplesmente às ingenuidades e equívocos políticos da nossa geração, é a crise do Ocidente, de que, pelo avesso, nós também, na Abya Ayala, fazemos parte.

Trata-se de outros “pecados originários”, que nos levaram novamente para novas guerras, fundamentalismos e fascismos.

Assistimos assim aos capítulos finais do processo de derrota das presunções iluministas de governar o mundo e resolver todos os seus problemas em alternativa radical às superstições religiosas. A promessa do triunfo da razão contra os absolutismos dos impérios e das cristandades não se realizou e, em vez, de solucionar contradições e conflitos, chegou-se a multiplicá-los, até ameaçando de morte a própria vida da Terra.

Claro, portanto, que a culpa não é da nossa geração dos cabelos brancos, embora não possamos fugir da ontologia ocidental que marcou as nossas biografias. E não se trata também de um mero conflito entre velhas e novas gerações. Reduzir a crise à biologia ou ao tamanho das nossas pobres biografias não pode ser atitude aceitável.

Não posso esquecer que a laicidade do Estado seria algo de ainda precioso da herança revolucionária de 1789, mas esta concepção está sendo varrida, também no Brasil. Os defensores do Estado de direito, da democracia, do espirito republicano estão ab immemorabili obrigados a se orientar nas eleições guiados pelo princípio do mal menor e não do bem possível. E, mais do que isto, tenho a impressão que as pessoas, que no mundo tentam viver ética e, politicamente, a serviço da fraternidade e da justiça, também são candidatas a serem eliminadas. São e serão tidas como ‘danos colaterais’ de um sistema de imperialismos concorrentes, em que a própria esquerda é obsoleta, dividida e impotente.

E a nossa Igreja Católica tão orgânica à civilização ocidental? Acredito que não possa fingir que a crise do Ocidente não lhe diga respeito.

Ela não conseguirá embaralhar novamente as cartas para participar do jogo, mas a nossa Igreja pode encontrar em Jesus de Nazaré o segredo para enfrentar os poderes violentos deste mundo: a kenosis, o divino extremo esvaziamento da humanidade de Jesus, que nos apresenta um Deus fraco, impotente, sem autoridade. Kenosis que se identifica com ágape, revelada em plenitude na crucificação. Ágape que derrota definitivamente e sem violência até as violências das religiões.

Um abraço fraterno,

Flávio, presbítero fidei donum.

* Flávio Lazzarin, presbítero Fidei Donum, italiano, atua na diocese de Coroatá, no Maranhão.

 Fonte: https://www.ihu.unisinos.br/638813-nossas-ideias-propostas-e-utopias-envelheceram-um-dialogo-com-frei-betto-artigo-de-flavio-lazzarin?utm_campaign=newsletter_ihu__25-04-2024&utm_medium=email&utm_source=RD+Station

terça-feira, 23 de abril de 2024

É inútil falar de evangélicos progressistas

Juliano Spyer*

 

 31° Marcha para Jesus, em 2023 - Rubens Cavallari/Folhapress

Antropóloga propõe alternativa engenhosa para classificar protestantes no campo político

Nos faltam palavras para analisar com precisão o que interessa à sociedade sobre o campo evangélico. O leitor não especialista desconhece termos como neopentecostal, renovado ou reformado. Resta-nos, no debate público, classificar os evangélicos como conservadores e progressistas para examinar temas complexos, como a influência da moral religiosa na produção de livros didáticos.

O problema é que conservador e progressista são conceitos vagos. Por exemplo, como classificar igrejas inclusivas, que acolhem cristãos LGBT mas mantêm uma posição contrária ao restante da agenda progressista? O que dizer de evangélicos que votam em candidatos de esquerda, sendo conservadores no âmbito moral? E qual é a utilidade de falar em progressistas quando o número de evangélicos que defendem pautas como a legalização das drogas ou do aborto —me refiro a evangélicos no campo popular— é inexpressivo? Por esses motivos, hoje, "progressista" e "conservador" são usados como sinônimos para evangélicos "do bem" ou "do mal". Precisamos ampliar esse vocabulário.

A antropóloga Christina Vital da Cunha, da UFF, propõe uma solução para abrir esse debate no artigo "Evangélicos críticos no Brasil: Uma Análise Sociológica". Ela chama de "críticos" o subgrupo que é conservador nos costumes, mas se diferencia de fundamentalistas, que são aqueles que leem a Bíblia de maneira literal, como verdade inquestionável. Para fundamentalistas, por exemplo, se a Bíblia diz que apenas pessoas casadas podem se relacionar sexualmente, essa é a verdade. Se a Bíblia não faz referência a racismo, quer dizer que o tema não é relevante. O crítico, por outro lado, enxerga a Bíblia como um texto a ser interpretado à luz do entendimento presente. Por isso, ele ou ela é mais receptivo ao debate com outros setores da sociedade.


Segundo essa proposta, o evangélico crítico também se contrapõe ao fundamentalista por ser comprometido com justiça social, ambiental, democracia e direitos das minorias, podendo se orientar entre partidos de centro, centro esquerda e esquerda nas eleições. Apesar de geralmente não participarem de campanhas políticas, os líderes críticos questionam práticas fundamentalistas e ideologicamente gravitam entre liberalismo, social-democracia e socialismo.

Falar em "fundamentalistas" e "críticos" é produtivo, também, porque são termos pluridenominacionais. Eles independem da afiliação com uma igreja.

A solução de Christina entende a necessidade de ter conceitos simples para substituir "progressista" e "conservador". E cria uma alternativa a partir da noção de fundamentalismo, que é suficientemente clara. É uma proposta engenhosa e útil.

* Antropólogo, autor de "Povo de Deus" (Geração 2020), criador do Observatório Evangélico e sócio da consultoria Nosotros 

Fonte:  https://www1.folha.uol.com.br/colunas/juliano-spyer/2024/04/e-inutil-falar-de-evangelicos-progressistas.shtml?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=newscolunista


Uma Mulher

Leonardo Neiva

 

  Trecho de livro

Livro da vencedora do Nobel Annie Ernaux parte do luto pela morte da mãe para resgatar a história daquela que foi a mulher mais importante da sua vida      


Pouco após a morte da mãe e todos os trâmites relacionados a ela — do inventário dos poucos pertences no hospital onde ficou internada à compra de flores e ao enterro em si —, Annie Ernaux começou a escrever. “Minha mãe morreu na segunda-feira”, narra logo na primeira linha de “Uma Mulher” (Fósforo, 2024), último livro da escritora francesa vencedora do Nobel a aportar aqui no Brasil. Mais tarde, ela admite na própria obra que levou três semanas para superar o terror de se ver botando essas poucas palavras no topo de uma folha em branco.

Assim como no aclamado “O Lugar” (Fósforo, 2021), onde recompôs a vida e a trajetória do pai, aqui Ernaux dá tratamento semelhante à história da mãe, “a única mulher que realmente importou para mim” e que “estava demente havia dois anos”. Continuando sua jornada pela autossociobiografia, gênero que fundou e que ajudou a consagrá-la, a autora explica que, embora, para ela, a mãe não tenha história própria, já que sempre esteve ali, o livro busca retratar a mulher real, num registro familiar e social, mítico e histórico, literário mas também abaixo da literatura.

Assim como em obras anteriores, a escritora parte de uma linguagem aparentemente neutra e do estilo conciso mas pungente ao qual seus leitores já estão acostumados. Com isso vai reunindo as peças que compõem essa mulher da classe operária, da adolescência à velhice e viuvez, quando a convivência com a filha escancara o distanciamento gerado pela ascensão social desta. O luto pela perda materna também se infiltra de maneira irremediável na narrativa, transformando a escrita ocasionalmente seca de Ernaux numa avalanche de memórias pessoais por vezes alegres, por vezes profundamente dolorosas, mas nunca indiferentes.


Na semana seguinte, passei a chorar em qualquer lugar. Ao acordar, sabia que minha mãe estava morta. Tinha sonhos pesados, mas não me lembrava de nada, apenas que ela estava neles, e morta. Eu não fazia nada além do necessário para viver, compras, comida, roupa na máquina de lavar. Muitas vezes esquecia a sequência de cada coisa, depois de descascar os legumes eu parava, só emendando o gesto seguinte — lavar os alimentos — depois de um esforço de reflexão. Ler era impossível. Uma vez, desci ao porão e a mala da minha mãe estava lá, com a carteira dela, uma bolsa colorida e lenços dentro. Fiquei prostrada diante da mala aberta. Quando me encontrava fora de casa, na cidade, era pior. Estava dirigindo e, de repente: “ela nunca mais estará em lugar nenhum do mundo”. Não conseguia mais entender o modo como as pessoas se comportavam, a atenção minuciosa no açougue, quando escolhiam determinado corte de carne, era para mim um horror.

Pouco a pouco esse estado vai desaparecendo. Ainda sinto uma satisfação ao perceber que o tempo continua frio e chuvoso, como no início do mês, quando minha mãe estava viva. E instantes de vazio a cada vez em que eu constato “não vale mais a pena” ou “não preciso mais” (fazer isso ou aquilo por ela). Alguns pensamentos deixam um buraco em mim: pela primeira vez, ela não vai ver a primavera. (Sentir a partir de agora a força das frases comuns e até mesmo dos clichês.)

Amanhã completam-se três semanas do dia do enterro. Só anteontem consegui superar o terror de escrever no alto de uma folha em branco, como o começo de um livro, e não de uma carta a alguém, “minha mãe morreu”. Também consegui olhar algumas de suas fotos. Numa delas, à beira do Sena, ela estava sentada com as pernas dobradas. É uma imagem em preto e branco, mas é como se eu visse os cabelos ruivos dela, os reflexos de seu blazer de alpaca preta.

Ao acordar, sabia que minha mãe estava morta

Vou continuar escrevendo sobre a minha mãe. Ela é a única mulher que realmente importou para mim e estava demente havia dois anos. Talvez eu devesse esperar que a doença e a morte dela se dissolvessem no percurso passado da minha vida, como os outros acontecimentos, a morte do meu pai e a minha separação, de modo que eu pudesse ganhar a distância que facilita a análise das lembranças. Mas nesse momento não sou capaz de fazer outra coisa.

É uma empreitada difícil. Para mim, minha mãe não tem história. Ela sempre esteve aqui. Ao falar dela, meu primeiro movimento é fixá-la em imagens que não trazem uma dimensão temporal: “ela era agressiva”, “era uma mulher muito intensa”, e evocar de modo desordenado cenas em que ela aparecia. Assim, só encontro a mulher do meu imaginário, a mesma que, há alguns dias, em meus sonhos, vejo outra vez viva, sem idade definida, num ambiente de tensão que lembra filmes angustiantes. Gostaria de capturar também a mulher que existiu fora de mim, a mulher real, nascida num bairro rural de um vilarejo na Normandia e falecida na unidade geriátrica de um hospital no subúrbio de Paris. O que eu espero escrever de mais exato se situa, sem dúvida, na articulação entre o familiar e o social, o mito e a história. Meu projeto é de natureza literária, pois trata de buscar uma verdade sobre a minha mãe que só pode ser alcançada por meio das palavras. (Ou seja, nem as fotos, nem minhas lembranças, nem os testemunhos da família podem me dar esta verdade.) Mas quero permanecer, de certa forma, abaixo da literatura.

Yvetot é uma cidade fria, construída sobre um planalto exposto ao vento, entre Rouen e o Havre. No começo do século, era o centro comercial e administrativo de uma região totalmente agrícola e ficava nas mãos de grandes proprietários. Meu avô, carroceiro numa fazenda, e minha avó, que trabalhava em casa como tecelã, se instalaram ali alguns anos depois de se casarem. Os dois vinham de um vilarejo vizinho, a três quilômetros dali. Alugaram uma casinha com pátio, do outro lado da estrada de ferro, na periferia, uma zona rural de limites indefinidos, entre os últimos bares perto da estação e as primeiras plantações de colza. Minha mãe nasceu lá, em 1906, a quarta de seis filhos. (Ela tinha orgulho em dizer: “eu não nasci no campo”.)

Para mim, minha mãe não tem história. Ela sempre esteve aqui.

  • Uma Mulher
  • Annie Ernaux (trad. Marília Garcia)
  • Fósforo
  • 64 páginas

Fonte:  https://gamarevista.uol.com.br/cultura/trecho-de-livro/uma-mulher/?utm_medium=Email&utm_source=NLGama&utm_campaign=MelhorGama 19/04/2024