Anselmo Borges*
A razão, se não quiser sucumbir à parcialidade, isto é, se quiser ser verdadeiramente universal, não pode não ser “razão anamnética”, isto é, tem de deixar-se iluminar pela memória das vítimas. E é imprescindível a memória para que as tragédias acontecidas não voltem a acontecer... Por outro lado, quem fará justiça às vítimas, também para que os algozes possam reconciliar-se e encontrar a paz?
O religioso autêntico, o místico, é aquele que caminha com Deus e para Deus, mas sem abandonar a noite. Ele não se distingue do crente e do descrente, que simultaneamente somos com dor e sofrimento, por já ter sido subtraído à noite na qual todos os mortais vivemos submersos. “Distingue-se por ter avançado na noite o suficiente para que a noite seja para ele ‘amável como a alvorada’, outra forma de luz”, como escreveu o teólogo Juan Martín Velasco. Para muitos, em nenhum lugar da História esta experiência mística em que culmina a experiência de Deus foi tão radical como na cruz de Cristo, onde, segundo a fé cristã, “Deus se revela de forma definitiva e por isso insuperavelmente obscura”. Aí, precisamente na dor insuportável da sua ausência, nessa noite de trevas, Deus está infinitamente presente, escutando aquela oração simultaneamente desesperada e confiante, que atravessa os tempos: “Meu Deus, meu Deus, porque é que me abandonaste? Pai, perdoa-lhes, por que não sabem o que fazem”.
Os cristãos ousam acreditar que Deus ressuscitou de entre os mortos esse Crucificado, que o foi por blasfémia e sublevação do povo oprimido político-religiosamente. NEle, Deus revelou-se solidário para sempre com todas as vítimas.
*Padre e Professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Fonte: https://www.dn.pt/4939505562/o-deus-solidario-com-as-vitimas/
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