Por ADHEMAR BAHADIAN*
Neste feriadão aproveitei para reler alguns textos
de Celso Furtado. Não me surpreendi com a pertinência e a acuidade de
um dos maiores pensadores a influenciar a visão de Brasil de minha
geração. "A Formação Econômica do Brasil”, que li aos dezoito anos, me
abriu a vocação de servidor do Estado brasileiro.
Chamo Celso Furtado de pensador e não de economista.
Celso foi sobretudo um humanista no sentido amplo da palavra e a cada
ano sua visão de Brasil ultrapassa os limites temporais em que atuou
como membro do Executivo brasileiro. Na Economia e na Cultura.
A releitura dos textos me fez olhar com grande tristeza
para os anos do período autoritário iniciado em 1964, quando a
intolerância ao contraditório expulsou deste país intelectuais e
políticos como Furtado e JK, diplomatas como Antonio Houaiss, homens que
inegavelmente instilaram no pensamento político brasileiro a dimensão
inegável de nosso país e de seu destino evidente de ser um dos maiores
países democráticos a serviço da paz e do desenvolvimento econômico.
Na esteira desta nostalgia, me vieram à lembrança
alguns momentos de exaltação cívica, alguns de que participei, outros
que acompanhei à distância, todos porém sempre aguardados e bem-vindos
por serem evidências de uma resistência à prepotência e à supressão dos
direitos fundamentais do cidadão e do Estado Democrático de Direito.
A clareza com que Celso Furtado analisa as
consequências do modelo econômico da ditadura para o futuro brasileiro -
futuro que hoje é o nosso presente - me fez deplorar que a rigidez
ideológica das autoridades de então nos tenha privado da contribuição de
Celso Furtado, àquela altura já apontava as distorções a advir de um
remendo indevidamente chamado de “milagre brasileiro”.
De melancolia em melancolia, não me surpreendeu
igualmente o uso abusivo da palavra milagre no contexto da situação das
contas públicas, da dívida externa e da inflação que marcou o fim do
regime autoritário a nos deixar por muitos anos com a soberania política
cortada.
E a palavra milagre parece soar como advertência para
os tempos que correm, onde decididamente se incluiu a religião com se
ideologia fosse, a colocar em risco um dos direitos mais privados do
cidadão.
Sem procurar assinalar os diversos pontos para os quais a
análise de Furtado merece reflexão contemporânea, assinalaria
basicamente a questão da desigualdade social sobre a qual ele tece
observações que poderiam ser extraídas dos livros mais contemporâneos.
A referência imediata é Piketti, cujos trabalhos sobre a
desigualdade social vem sendo o maior contraponto ao neoliberalismo,
raiz da maior transferência de recursos dos mais pobres aos mais ricos.
E aqui chego à razão de ter escolhido o pensamento de Furtado como pano
de fundo para este artigo de hoje. A visão prospectiva com que nos
brinda Furtado deveria nos alertar para os riscos que correremos se
permanecermos nesta dicotomia, nessa incapacidade de perceber que a
solução para os problemas econômicos e sociais do Brasil - mas não
apenas dele - não se encontra em fórmulas de um passado que não deu
certo e sim na compreensão de que os tempos de hoje exigem soluções
solidárias.
Durante trinta anos, o neoliberalismo, e sua parceira
globalização, procuraram esvaziar o desenvolvimento econômico de seu
componente mais sensível, o desenvolvimento humano. Desde os anos 80,
governos de países ocidentais acreditaram que apenas com a remoção das
proteções ao emprego, aos sindicatos, das leis anticompetição se poderia
chegar ao crescimento do "bolo", cuja hipotética divisão beneficiaria a
todos.
O resultado da eliminação dos controles governamentais
liberou o espírito do lucro a qualquer preço e levou a fenômenos
políticos hoje estudados como anomalias em crescente expansão.
Obviamente, a maior preocupação ocorre com o trumpismo a se transformar
num quase culto à regressão política de mistura com uma efervescência
religiosa muito pouco cristã.
No Brasil, há quem se esqueça de que o neoliberalismo
parece ser uma nova forma de ópio a anestesiar nosso civismo em prol de
um Brasil finalmente liberto e definitivamente sintonizado com a justiça
social que perseguimos desde sempre.
Mais do que nunca, o divisionismo político chega às
raias do cinismo e do deboche a impor uma reflexão sobre o que queremos
realmente fazer deste país. Somos até hoje possuidores de recursos
naturais e minerais que nos permitem um salto tecnológico para um futuro
de prosperidade. O atraso não é nossa herança. Nossos erros do passado
são talvez parte essencial para neles não reincidir por ódio ou
ignorância.
Enquanto tivermos nossa Constituição de
1988 como parâmetro civilizacional, enquanto tivermos o voto como
manifestação de nossa soberania, enquanto aceitarmos o que é de Deus sem
confundir com o que é de Cesar, não há nada que nos possa desviar de
nosso destino de povo amante da paz, solidário com o futuro de nossos
semelhantes sejam quais forem nossas diferenças de cor, sexo e religião.
A felicidade é uma construção coletiva.
* Embaixador aposentado
Fonte: https://www.jb.com.br/brasil/opiniao/artigos/2024/04/1049681-o-risco-do-cansaco-civico.html
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