quinta-feira, 11 de abril de 2024

POR QUE UM ASTROFÍSICO BRASILEIRO COMPROU UMA VILA DO SÉCULO XVI NA TOSCANA PARA AJUDAR A SALVAR O PLANETA

 Por Norma Couri , para o Valor — São Paulo

“Inocente é ficar como está e achar que tudo se arranja. O planeta está acabando”, diz Marcelo Gleiser — Foto: Silvia Costanti / Valor

“Inocente é ficar como está e achar que tudo se arranja. O planeta está acabando”, diz Marcelo Gleiser — Foto: Silvia Costanti / Valor

Marcelo Gleiser, que lança “O despertar do universo consciente”, é o primeiro latino-americano a receber prêmio americano por sua contribuição à dimensão espiritual da vida.

Marcelo Gleiser se atribuiu a missão nada simples de reorientar o destino da nossa espécie. Na sua visão de astrofísico, ele vê a humanidade à beira de uma grande transformação. Em qual direção iremos, o bem comum ou o desespero coletivo?

Ele acaba de lançar “O despertar do universo consciente” (Record, 252 págs., R$ 69,90). Gleiser já ganhou três Jabutis com obras anteriores, e em 2019 foi o primeiro latino-americano a receber o prêmio Templeton, nos Estados Unidos, no valor de US$ 1,4 milhão, por sua contribuição para a dimensão espiritual da vida.

Gleiser destrincha no livro a vida de heróis da ciência. Muitos pagaram com a vida para provar que a Terra não era o centro do universo e girava como outros planetas em torno do Sol; que nosso universo não era único; e que talvez Deus não fosse o arquiteto de tudo isso. Eram os filósofos pré-socráticos, Platão, Epicuro, Copérnico, Giordano Bruno, Galileu, os iluministas, Newton, Einstein, Darwin e Einstein.

No meio do caminho cita poetas como Lucrécio (c.94-c.55 a.C.), “Por que a morte nos aflige com tanta pressa?”. Artistas como Rembrandt e seu autorretrato rindo como o filósofo Demócrito que se livrou da crença dos deuses e dos medos. Beethoven alinhando sua Sinfonia “Pastoral”, a Sexta, à beleza da natureza. O satirista Voltaire descrevendo num conto a visita de extraterrestres, zombando da prepotência humana.

Gleiser também condena a prepotência dos humanos ao desprezar a sabedoria indígena e depredar a terra da qual se julgam donos.

“Como a terra perdeu seu encantamento?” é uma de suas perguntas.

Gleiser, 65 anos, mora no meio de uma floresta em Hanover, no estado americano de New Hampshire, e é professor de filosofia, física e astronomia na Faculdade de Dartmouth, além de maratonista de 100 km e ativo no Instagram e no seu canal Papo Astral. A seguir, trechos de sua entrevista ao Valor:

Valor: O sr. comprou uma vila na Toscana com o objetivo de mudar o olhar das pessoas para o universo. Como pretende fazer isso?

Marcelo Gleiser: Nossa primeira casa é o planeta, que nos permite existir. Vários líderes religiosos, de Buda e Lao Tsé a Jesus, nos alertaram para o perigo do materialismo excessivo. Não ouvimos. Então resolvi colocar em prática um projeto de décadas de pensamento, estudo e trabalho: comprei há dois anos essa vila do século XVI, 1590, com uma igreja com capacidade para 50 pessoas que seria uma incubadora para transcender as limitações humanas.

Valor: O sr. não é judeu? Numa igreja?

Gleiser: Sim, meu pobre avô deve estar dando voltas... mas foi com ele que esse projeto começou. A casa dele em Teresópolis, desde criança, era o meu templo. Fungos, animais, plantas, coleções de besouros, borboletas, aranhas, meu pai com a podadeira no bolso cavoucando a terra [“não seria eu sem você”, ele agradece ao pai no livro]. Era minha conexão com o mundo. A casa foi vendida, e quando voltei lá os novos donos tinham cortado os pinheiros, magnólias e um pedaço do meu coração. Daí a igreja na Toscana, um centro sagrado.

Valor: Como funcionará a incubadeira?

Gleiser: Convidei empresários para um retiro de imersão de quatro, cinco dias, um retreinamento ético de liderança corporativa, mudando o pensamento sistêmico. Uma reorientação no mindset para sair da bolha. Eles são o elo que pode mudar o processo. Quando entenderem que está tudo conectado e sua atitude afeta a comunidade, o consumidor vira um parceiro. Chega de campanhas militaristas de dominação para “atingir o alvo”.

Valor: Quem são eles?

Gleiser: Sofia Esteves, rainha do RH no Brasil, reuniu 15 líderes corporativos em São Paulo na sede da Meta. Convidei o RH da Meta, do WhatsApp, da GM, da Johnson & Johnson, da Volkswagen. Adoraram, vão para a Toscana em outubro dar início ao projeto. E tomar vinho. Vem o visionário Lourenço Bustani, da consultoria de inovação Mandalah, o economista americano líder em educação corporativa John Fullerton, e tudo se encaixa. A igreja é um ponto de peregrinação desde o século XIII, lugar de transformação, encontro com Deus. Minha mulher, Kate, americana e psicoterapeuta, vai se ocupar de resgatar a humanidade nos mais resistentes.

Valor: Projeto um tanto revolucionário...

Gleiser: Não tem nada de revolucionário. Vamos dar ferramentas técnicas, filosóficas e emocionais, equipar os agentes de transformação. Deixá-los loucos para mudar o mundo e impactar muita gente. Noutra etapa trazemos acadêmicos, políticos, artistas com as grandes perguntas que afligem a sociedade para um think tank.

Valor: Por onde começa a transformação?

Gleiser: Na minha inspiração numa corporação B, o B Corp, numa visão sistêmica alinhada à sustentabilidade, ESG, e no pertencimento à natureza.

Valor: Não é inocente achar que pode mudar tudo num retiro?

Gleiser: Inocente é ficar como está e achar que tudo se arranja. O planeta está acabando.

Valor: A capa da revista “Nature” decretou que em 2050 a Amazônia colapsa, o climatologista Carlos Nobre vê um ponto de não retorno.

Gleiser: É agora ou nunca, está na hora de nos reinventarmos como espécie. O Brasil insiste na monocultura de soja, café, em colônias de extrativismo e exploração do meio ambiente. No massacre da natureza com fazendas agropecuárias para a produção absurda de carne bovina e suína que gera detritos tóxicos ambientais. É uma cultura controlada pela ganância, não pela compaixão.

Valor: É preciso alimentar o mundo...

Gleiser: Sim, nos últimos 100 anos a humanidade passou de 2 para 8 bilhões de pessoas, mas o alimento não precisa vir com agrotóxicos banidos dos Estados Unidos e Europa. Pode-se alimentar sem envenenar. Essa mentalidade está começando a mudar em pessoas de nível de educação mais elevado.

Valor: Quando o Brasil, com deficiência educacional e desigualdade econômica, vai atingir esse patamar?

Gleiser: Se ficarmos esperando tudo mudar, o mundo acaba e não fazemos nada. Temos que começar pela educação, introduzir filosofia e história do universo nos currículos. Aprender quantas revoluções aconteceram até aqui, e pensar diferente.

Valor: O sr., carioca, acha que o Rio de Janeiro seria o lugar natural para a conexão com a natureza?

Gleiser: O Rio faz meu coração bater mais rápido. Mas é uma devastação ecológica. Uma natureza privilegiada entre o mar e a montanha, mas descuidada, não há carinho pela Mata Atlântica, pelo ar bucólico que ainda sobrou, ao contrário de grandes megalópoles com seus cânceres de concreto. Toda estrutura de concreto esconde uma tristeza profunda. Vou voltar lá em agosto para encontrar empresários na Rio Innovation Week e terei um palco para atrair lideranças cariocas. A presidente do Clube de Roma, Sandrini Dickson Decleve, alinhada com a ideia de Earth for Everyone, vai estar lá. Não estão preocupados em salvar essa joia rara. Falta uma liderança visionária...

Gleiser: Por que não? Nova York e outras cidades fazem ecologia urbana, florestas no alto dos prédios com verduras, plantações nos galpões, ao sol.

Valor: Faz parte do seu Manifesto para o Futuro da Humanidade?

Gleiser: Para o meu manifesto li até o do Marx para aprender a mobilizar as massas a mudar a mentalidade de consumo. Comer menos carne, produzir menos lixo, gastar menos luz e água. Analisar o que comem, se o produto vem de uma empresa ética e sustentável. Consumidores têm o poder de influenciar práticas empresariais. Consumidores do mundo, uni-vos.

Valor: O sr. é vegetariano?

Gleiser: Eu, minha mulher, meus filhos mais velhos, os menores de 12 e 17 ainda comem carne duas vezes por semana. É possível substituir a carne por proteínas vegetais. Arnold Schwarzenegger, que é fisiculturista, tornou-se vegano, veja o documentário “The Game Changers”.

Valor: Como cientista, o sr. anda preocupado com a inteligência artificial?

Gleiser: Não com medo, naquele cenário distópico do Yuval Harari. Mas temos problemas maiores. São 10 mil anos de civilização agrária, industrialização com queima desenfreada de combustíveis fósseis. A prosperidade é nutrida pela exploração das entranhas da terra, petróleo, gás natural, carvão. Temos de parar. Construir uma consciência planetária. E nos maravilhar com o privilégio de estar vivos.

Fonte: https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2024/04/10/por-que-um-astrofisico-brasileiro-comprou-uma-vila-do-seculo-xvi-na-toscana-para-ajudar-a-salvar-o-planeta.ghtml

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