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Os escritores John Steinbeck (Creative Commons) e William Faulkner (Library of Congress)
Romances de autores estadunidenses seguem atuais ao discutir angústias nacionais e ressoar debates do século XXI até mesmo na periferia do capitalismo
A leste do Éden (1952), um dos mais influentes romances estadunidenses do século XX, ilustra uma teoria: “Os seres humanos são apanhados – em suas vidas, em seus pensamentos, em suas necessidades e ambições, em sua avareza e crueldade, e em sua bondade e generosidade, também – numa teia do bem e do mal”.
Na obra, John Steinbeck localiza a humanidade entre dois polos extremos da existência. O conceito-chave do livro é um termo hebraico, Timshel, que pode ser traduzido como “tu deverás” ou “tu poderás”. A segunda alternativa é eleita por Steinbeck, que toca a capacidade de escolha. O escritor acena, assim, para um mote que perpassa a literatura universal: a liberdade.
Os limites da liberdade – em especial, dentro da sociedade estadunidense e suas dinâmicas de poder – são questionados por dois romances do século XX, que voltaram às prateleiras no Brasil. A Companhia das Letras reedita Palmeiras selvagens (1939), de William Faulkner, autor nascido no sul dos Estados Unidos, no estado do Mississippi. O livro tem tradução de Newton Goldman e Rodrigo Lacerda. A leste do Éden (1952), do californiano John Steinbeck, sai pela Record, traduzido por Roberto Muggiati.
Em Palmeiras selvagens, William Faulkner entrelaça duas histórias. A primeira, que dá título ao romance, é centrada no casal Harry e Charlotte. Os dois abandonam o projeto de vida burguês para viver um amor estrangulado pela falta de dinheiro e, em certa medida, clandestino – uma vez que Charlotte é casada. A segunda saga, “O velho”, faz referência à grande enchente do Mississipi em 1927. O personagem central, detento em uma penitenciária do estado, recebe a missão de salvar uma mulher grávida, ilhada em um local de difícil acesso.
A leste do Éden pode ser interpretado como uma releitura do livro de Gênesis. A história de duas famílias, os Hamilton e os Trask, é contada por um narrador que investiga a oscilação humana entre o bem e o mal, além da busca por amor. Assim, a queda de Adão e Eva e a rivalidade entre Caim e Abel são temas repetidos pelas personagens de Steinbeck. Localizado no vale do Salinas, na Califórnia, o livro ilustra a passagem dos Estados Unidos do século XIX para o século XX.
Os Estados Unidos da América, a terra da liberdade. Essa imagem confunde-se com a própria ideia de nação. A perspectiva é entoada até no hino “The Star-Spangled Banner” – “A Bandeira Estrelada”, em referência ao maior símbolo do país –, no qual os Estados Unidos são “A terra dos livres e o lar dos bravos”.
O “Sonho Americano” ultrapassa a esfera econômica, embora seja quase impossível desassociar os Estados Unidos da expansão capitalista, uma fantasia burguesa tornada realidade. A América, território que se sintetiza pela alcunha de “Novo Mundo”, define-se, em um primeiro momento, como um contraponto ao Velho Continente – o de sua antiga metrópole.
A Independência dos Estados Unidos, em 1776, foi a primeira experiência de emancipação de uma colônia. Pouco mais de uma década depois, em 1789, ela impactaria na Revolução Francesa, espécie de reforma do Velho Mundo, fundada sob as ideias iluministas. Liberdade, igualdade e fraternidade. O lema revolucionário define o ethos estadunidense, uma imagem criada e propagada dentro do país. Surge assim um mito: a maior democracia do mundo, localizada nas Américas.
Em 1831, um francês chega em terras estadunidenses. Trata-se de Alexis de Tocqueville, autor de Democracy in America (1835). O pensador político foi enviado para estudar o sistema prisional norte-americano, mas acabou expandindo seus estudos, concentrando-se na democracia. Para Tocqueville, os Estados Unidos eram o protótipo de uma ordem democrática igualitária emergente, sem aristocracia e governada pelo governo da maioria. Em sua visão, a ordem norte-americana encorajava o individualismo — enquanto se mantinha por meio da influência da religião, opinião pública e associações voluntárias.
Tocqueville pintou um retrato do país. Os traços observados por ele perpetuaram-se durante todo o século XX, impactando até os dias de hoje. Historiadores, sociólogos e filósofos, entre outros, têm se debruçado sobre o mito da América. Mas destacamos aqui os escritores, uma classe cuja principal matéria é a ficção.
A literatura é uma poderosa lupa para desvelar a realidade social. Autores estadunidenses, desde o início da literatura nacional, emprestaram sua minuciosa visão a um propósito: tornar tangíveis as frestas do Sonho Americano. William Faulkner e John Steinbeck não são exceção.
Ambos foram consagrados pelo Nobel de Literatura – Faulkner em 1949 e Steinbeck em 1962. É preciso observar que dois escritores fazem parte de um cânone masculino e branco, em detrimento de autoras mulheres e autores afro-americanos, por exemplo. Para ilustrar a situação, o Nobel só viria a premiar uma escritora negra, a também estadunidense Toni Morrison, em 1993. Ela permanece até hoje a única mulher negra a ser agraciada pelo prêmio.
Contudo, Faulkner e Steinbeck não se furtaram de retratar, em suas obras, experiências díspares – ou, melhor dizendo, um outro lado do Sonho Americano. Entre 1939 e 1952, quando Faulkner e Steinbeck lançam, respectivamente, Palmeiras selvagens e A leste do Éden, os Estados já contavam com duas guerras mundiais – uma ainda em curso quando o autor sulista publica o seu romance – e se debatiam com os rastros da Grande Depressão, com o crash da Bolsa em 1929.
Por outro lado, já não se tratava de uma nação às margens dos interesses mundiais, mas de um país que caminhava para ser a maior potência do globo, dando uma face ao capitalismo do século XX. A partir dessas duas imagens, aparentemente dissonantes, Faulkner e Steinbeck traçam retratos dos Estados Unidos em suas ficções. Muitas vezes, o ponto de vista é o dos esquecidos – e até mesmo derrotados – pelo Sonho Americano
A leste do Éden e Palmeiras selvagens são duas obras de meados do século XX que ressoam nos tempos de hoje, uma prova da vitalidade literária de seus autores. Sondando criticamente as fronteiras possíveis da(s) liberdade(s), eles transfiguram impasses sociais que parecem recém-saídos dos debates de nosso milênio. Faulkner e Steinbeck olham, por exemplo, para as falhas do sistema prisional e para os direitos reprodutivos – em especial, um tratamento moralizante do aborto, baseado em leis arbitrárias.
Nas duas narrativas, o capital é colocado no centro. Eles olham com desconfiança para o desenvolvimento estadunidense, captando oscilações no dito “progresso”. Para o californiano, a promessa de ascensão no século XIX, a partir da ideia de uma “terra de prosperidade” é colocada em xeque com o fin de siècle e a Primeira Guerra Mundial. Faulkner também é pessimista quanto ao novo século, marcado pelo conflito de proporções globais e a crise econômica, alastrada pela década de 1930.
Os dois escritores chegam a um ponto fundamental do imaginário estadunidense: o éthos bélico. Eles retratam as diversas formas pelas quais a violência se manifesta; em especial, contra aqueles que desviam do corpo social uno e homogêneo. Não parece haver espaço para a alteridade nesse contexto, o que destaca a figura de imigrantes vindos de países marginalizados e a expressão da xenofobia.
As obras têm muito a ressoar na periferia do capitalismo. Brasil e Estados Unidos são duas jovens nações que sofreram com o colonialismo. No século XX, a sociedade brasileira também passou por um processo questionável de modernização e sofreu os impactos da Crise de 1929, a convulsão política da Revolução 1930 e sucessivos governos autoritários. Além disso, é difícil ignorar que o racismo ainda assombra os dois países.
Em seus melhores momentos, a literatura estadunidense reflete sobre o isolamento. Em especial, daqueles cujas vivências rompem com o Sonho Americano. O historiador Lawrence Levine aponta uma grande questão do imaginário norte-americano, ainda mais central após a Grande Guerra de 1914:
“O paradoxo central da história americana […] tem sido uma crença no progresso, combinada com o medo de mudanças; um desejo pelo futuro inevitável combinado com a saudade do passado irrecuperável; uma crença profundamente enraizada no destino revelado para a América e a assombrosa convicção de que a nação está em constante estado de declínio.”
Faulkner e Steinbeck encarnam esses paradoxos. Em termos simplistas, os dois autores são ligados ao novo realismo estadunidense da década de 1930 – e até mesmo a um tipo de naturalismo, ou seja, a crença de que o indivíduo é determinado pelo ambiente. O ponto central desses autores seria, assim, a crítica social.
Palmeiras selvagens e A leste do Éden guardam uma proximidade peculiar. São livros que não representam o melhor da produção de seus autores. Steinbeck discordaria. Para ele, o romance de 1952 é o seu feito artístico. Embora mais ambicioso, os críticos tendem a preferir sua escrita anterior, elegendo As vinhas da ira (1939), romance símbolo da Grande Depressão.
Palmeiras selvagens é um romance discreto entre os seus pares. É quase incontestável que a melhor escrita de Faulkner começa em 1929, com O som e a fúria, centrado na queda das velhas oligarquias do Sul. Em 1936, ele publicaria Absalão! Absalão!, a trajetória de um self-made man que atravessa a Guerra Civil e o período da Reconstrução.
Já Enquanto agonizo e Luz em agosto antecipam Palmeiras selvagens, uma vez que olham para as “pequenas vidas”. O último, a partir da figura trágica de Joe Christmas, questiona o racismo sulista e coloca a racialidade como um construto social excludente, ao passo que a saga dos Bundren para enterrar a matriarca em Enquanto agonizo traça um retrato melancólico da depressão.
Em entrevista a Paris Review, Faulkner afirma ter unido as duas narrativas de Palmeiras selvagens porque, juntas, elas criam imagens contrapontísticas. Curiosamente, ambas culminam em prisões.
Em 1927, o condenado de “O velho” tem uma década acrescentada à sua pena – embora tenha retornado com a mulher, o bebê e o barco em segurança. Dessa forma, ele ainda está lá quando Harry é preso pela morte de Charlotte, após operar um aborto malsucedido.
A leste do Éden atravessa os séculos XIX e XX, simbolizando tanto a crença no progresso dos novos tempos como a desesperança do fin de siècle. As ilusões perdidas estão na mira dos dois autores. Afinal, o novo século foi inaugurado pela Grande Guerra, na qual o pouco valor da vida humana tornou-se claro. “Sempre há muita carne. Eles descobriram isso há vinte anos, preservando nações e justificando lemas”, pensa Harry em Palmeiras selvagens. O narrador de A leste do Éden conta: “A nação caminhou, sem perceber, para a guerra, assustada e ao mesmo tempo atraída. As pessoas não sentiam a emoção vibrante da guerra há quase sessenta anos”.
Do mesmo modo, a Grande Depressão abalou a crença na prosperidade econômica. O médico alerta Harry, quando ele chega à residência: “Mas já não há prédio algum, expansão ou progresso por aqui. Isso acabou nove anos atrás.”.
O espírito bélico da sociedade estadunidense é examinado, especialmente, por Steinbeck. Cyrus, o primeiro Trask que conhecemos, forja uma identidade baseada nas guerras, com fábulas sobre batalhas da Secessão em que nunca esteve. Na Primeira Guerra, o vale do Salinas reconhece a vocação para a luta. Para eles, os Estados Unidos eram a mais forte nação do globo.
Os dois autores olham para sistemas penitenciários rudimentares. O protagonista de “O velho” está em uma “plantação de algodão cuidada por condenados sob as espingardas e as carabinas dos guardas”. Em A leste do Éden, Adan Trask é retido por “vagabundagem” – ser um homem errante ou solitário. Ele é julgado vadio e colocado num grupo de trabalhos forçados, no qual era algemado pelo tornozelo, preso a uma corrente e vigiado por homens armados.
Steinbeck e Faulkner enfrentam o mito da prosperidade estadunidense, que atraiu tantos imigrantes na primeira metade do século XX. Na prática, muitas vezes, a imigração era o fim do American Dream. Lee, um dos personagens de Steinbeck, oferece uma reflexão do imigrante como um construto social – o outro, de fora. Além dos chineses, aqueles vindos de outros países, então marginalizados – como os que trabalham na mina de Utah em Palmeiras selvagens, onde Harry e Charlotte buscam refúgio –, chegam atrasados ao progresso. As sobras são a pobreza e o subemprego.
Em sua temporada no exército, Adam Trask combate povos indígenas em nome do “desenvolvimento” do país. Apenas essa imagem é suficiente para traçar uma aproximação entre Brasil e Estados Unidos. Compartilhamos um conservadorismo arraigado, permeado pelo poder patriarcal e pelo racismo. As obras de Steinbeck e Faulkner podem dizer muito sobre uma modernidade complexa – até mesmo controversa e embaraçosa – e suas consequências, bem conhecidas pelos brasileiros.
Nas duas histórias de Palmeiras selvagens, as personagens saem de um confinamento inicial. Para Harry e Charlotte, este é o estilo de vida burguês; para o condenado, a prisão concreta. Eles passam, então, para uma liberdade insustentável, seguida por um novo confinamento. Dessa vez, definitivo. Em A leste do Éden, as personas criadas por Steinbeck estão embrenhadas em uma teia entre o Bem e o Mal, cabe a elas a decisão – Timshel, tu poderás. Da leitura das duas obras, o que é reluz é o olhar minucioso dos autores para os limites da liberdade.
Falta uma coletividade plena, que acaba confundida com o fenômeno das massas. O indivíduo é fragmentado, sem espaço para a alteridade – a valorização das diferenças – ou uma comunhão efetiva. Como escreve a autora americana Carson McCullers, essa é uma falha do amor, a ponte que leva do “eu” para o “nós”. Para McCullers, essa ausência é a gênese da xenofobia, tão criticada por Faulkner e Steinbeck.
As palavras de John Steinbeck abriram este artigo. Agora, encerramos com Faulkner e uma reflexão sobre a memória. Esses dois grandes autores dos Estados Unidos usam suas obras como memorial. Por meio da literatura, eles lembram os estadunidenses de suas angústias nacionais, ressoando o último pensamento de Harry em Palmeiras selvagens: “entre a dor e o nada, escolherei a dor”.
Giovana Proença Gonçalves é pesquisadora na área de Teoria Literária e Literatura Comparada na FFLCH-USP, com ênfase em autores estadunidenses. Escreve sobre livros. Tem textos publicados nas revistas Quatro cinco um, Cult e CartaCapital e nos jornais Rascunho, O Estado de S. Paulo e Folha de S.Paulo.
Obras citadas
LEVINE apud. GRAY, Richard. “The Social and Historical Context”. The Literature of Memory: Modern Writers of the American South. Baltimore: The John Hopkins University Press, 1977.
McCULLERS, Carson. “Solidão… um mal norte-americano”. In: Coração Hipotecado. Osasco: Novo Século, 2010.
TOCQUEVILLE, Alexis. Democracy in America. London: Penguin, 2003.
Fonte: https://diplomatique.org.br/os-limites-da-liberdade/
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