Marcelo Roubicek
O ‘Nexo’ conversa com Marcos Nobre, presidente do novo Centro para Imaginação Crítica, do Cebrap, sobre as alternativas que emergem da crise do neoliberalismo
O neoliberalismo, enquanto ordem global, está em crise. E o que se desenha no mundo inteiro — com particularidades em cada local — é uma disputa pelo que vem depois. Em outro momento, embate similar resultou em guerra, algo que é preciso evitar.
É o que disse ao Nexo Marcos Nobre, professor titular de filosofia política da Unicamp e presidente do CCI (Center for Critical Imagination, ou Centro para Imaginação Crítica), lançado no âmbito do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) na sexta-feira (26).
Com apoio da organização Open Society Foundations, o novo centro de pesquisa se propõe a discutir a crise do neoliberalismo, as diferentes crises que derivam dela e os caminhos alternativos. Também pretende trazer a discussão para o debate público brasileiro, considerando também o contexto do país.
O Nexo conversou com Nobre sobre o momento do neoliberalismo e sobre os cenários que se desenham na disputa sucessória da ordem global.
Como o sr. define ‘neoliberalismo’?
MARCOS NOBRE ‘Neoliberalismo’ é um termo em disputa. Portanto, a compreensão do que seja neoliberalismo muda ao longo do tempo. Por exemplo, a noção de neoliberalismo, tal como foi empregada nos anos 1990, 2000 e até mais ou menos meados da década de 2010, foi majoritariamente no sentido de um processo de economicização das relações sociais no seu todo. É como se uma determinada concepção do que deva ser a economia invadisse todas as esferas da vida social.
A partir de meados da década de 2010, passa a ser predominante uma concepção — não negando o caráter de economicização — de incluir também o neoliberalismo como um projeto de organização da sociedade num sentido mais amplo, o que envolve uma determinada concepção do que seja a moral e o bom comportamento dos sujeitos em uma sociedade. A partir daí, você começa a ter uma concepção do neoliberalismo que é muito mais ampla do que só um imperialismo da economia sobre o conjunto da sociedade.
A ordem neoliberal não é só uma ordem econômica que a partir da economia invade toda a sociedade. Ela é uma ordem econômica, moral, política, social… É realmente uma ordem.
O termo ‘neoliberalismo’ é muito usado no debate político. Por exemplo, uma parte da esquerda diz que o atual governo Lula encampou premissas neoliberais na sua condução da política econômica. É o mesmo sentido da palavra?
MARCOS NOBRE É preciso fazer uma distinção. Uma coisa é usar os termos ‘neoliberal’ e ‘neoliberalismo’ na disputa política, como um elemento de caracterização do adversário. E outra coisa é o neoliberalismo como ordem global.
É importante essa distinção, porque, por exemplo, não há a menor dúvida de que o PT, ao chegar ao poder federal em 2003, se colocou contra [o neoliberalismo] e se apresentou desta maneira. Esse é o sentido político, narrativo da palavra ‘neoliberal’.
Mas há um sentido no qual não há como não ser neoliberal. Porque a ordem global é neoliberal. Não tem como um país, dentro de uma ordem global neoliberal, não ser neoliberal. O que dá para fazer é, dentro da ordem global neoliberal, resistir e tentar encontrar a margem de ação possível para ir contra o princípio dessa própria ordem.
Por que o sr. traça a mudança da concepção do neoliberalismo a meados da década de 2010?
MARCOS NOBRE A crise de 2008 é o marco geral do início do declínio do neoliberalismo. Uma crise como a de 2008 é um sinal de que essa maneira de organizar o capitalismo entrou em crise. Afinal, ela produziu uma crise global de efeitos sociais devastadores. Nenhuma ordem social sobrevive a uma crise dessas dimensões sem algum tipo de transformação.
Nos momentos em que o capitalismo entra em crise, é que ele se mostra claramente. É a crise que revela as estruturas do próprio capitalismo.
As lutas sociais que se instalam na década de 2010 são lutas sociais sobre o que será o pós-neoliberalismo. Então você tem as revoltas de 2011 até 2013. Depois, você tem, na segunda metade [da década de 2010], a eleição de líderes que na época eram chamados de populistas. Tudo isso é a crise do neoliberalismo.
Quando na segunda metade da década de 2010 há todos esses fenômenos autoritários emergindo, inclusive em democracias consolidadas, é que fica claro que aquele projeto lá no início, há 40 anos, não era apenas um projeto de liberalização da economia para, a partir da liberalização da economia, alcançar um imperialismo dessa lógica econômica sobre o restante da sociedade. Não. Era algo muito mais amplo, com alianças políticas e coalizões sociais muito mais amplas do que simplesmente uma coalizão econômica.
É possível comparar com a crise de 1929, que também produziu uma grande crise no capitalismo?
MARCOS NOBRE A crise de 1929 foi a crise do liberalismo, enquanto a crise de 2008 foi a crise do neoliberalismo. Esse paralelo é importante. Da crise do liberalismo no final da década de 1920 veio o surgimento de vários modelos de organização social — nazismo, fascismo, o New Deal nos EUA, o nacional-desenvolvimento no Brasil, e havia ainda naquele momento a alternativa da União Soviética.
Na situação em que nos encontramos [agora], também já ficou claro — mesmo para as elites que acumularam poder e que estão estabelecidas na ordem neoliberal — que não é mais possível sustentar essa ordem. Não é algo só acadêmico, é algo prático.
Já estão acontecendo movimentos de transformação interna dessa ordem neoliberal. Mas isso está em disputa. Ou seja, uma ordem pós-neoliberal tem alternativas, assim como havia alternativas na década de 1930.
Quais são as principais alternativas?
MARCOS NOBRE Hoje parece que temos quatro em disputa. Temos a alternativa das autocracias; a alternativa do regime de partido único; a saída do novo progressismo dentro dos países que ainda são democráticos; e a saída autoritária dentro dos países que ainda são democráticos.
Não são as mesmas possibilidades da década de 1930, mas elas estão aí. A enorme diferença é que não temos diante de nós — pelo menos neste momento — um conflito de escala global certo, como foi a Segunda Guerra Mundial, que foi uma solução bélica para essas alternativas.
A tentativa hoje é de transitar da crise do neoliberalismo para uma nova ordem, sem que sempre se passe por um conflito de natureza global. É isso que está em jogo hoje. E essa saída pode ser tanto uma saída autoritária como uma saída democrática.
Não temos ainda uma vitória definitiva de alguns modelos — porque é claro que não vamos ter um modelo só, assim como na década de 1930 havia modelos diferentes. Não sabemos qual vai ser o resultado, mas esperamos que não seja necessária uma guerra global para resolver essa disputa.
O modelo para superação do neoliberalismo é necessariamente capitalista? Ou há espaço para alternativas?
MARCOS NOBRE Não está no horizonte uma alternativa não-capitalista de superação da crise do neoliberismo. A não ser, claro, para as pessoas que consideram a China como uma alternativa não-capitalista. Mas não acho que seja o caso. Pode ser que surja algo nos próximos anos. Mas hoje não é possível enxergar isso.
O sr. destacou que duas das alternativas se dão dentro dos países democráticos. Por que esse destaque?
MARCOS NOBRE É aquela velha discussão sobre a tal da terceira via. A terceira via nas opções como estão configuradas hoje simplesmente não existe. Dentro das democracias consolidadas, você tem uma disputa entre um bloco que eu chamo de novo progressismo, que é um herdeiro do neoliberalismo progressista.
E você tem um outro bloco que é o que chamo de direita sem medo. É a parte da direita que não tem medo de se aliar à extrema direita. Essa é a disputa hoje nos países ainda democráticos.
Esses campos não têm nada em comum do ponto de vista político. É uma divisão política, não uma polarização, porque são dois projetos de sociedade pós-neoliberal que não podem ser compatibilizados.
Mas eles têm em comum que partem da herança do neoliberalismo. O que os distingue é o que deve ser preservado e o que deve ser descartado do período de 40 anos de neoliberalismo. Essa é a disputa.
Como essa crise se espelha no cenário político brasileiro atual?
MARCOS NOBRE Nós temos essa divisão entre um novo progressismo e a direita sem medo aqui no Brasil. Temos, de um lado, o governo Lula. E, do outro, o bolsonarismo. São exemplos claros, para mim, dessa divisão global. O Brasil não escapa disso: existem dois projetos do que deve ser preservado e o que deve ser descartado do período neoliberal.
O que é imaginação crítica e por que ela é uma ferramenta para este momento de crise do neoliberalismo?
MARCOS NOBRE A imaginação crítica quer dizer muitas coisas. Porque a imaginação crítica não deve ser limitada previamente por uma descrição do que seja.
Existe um lado que é o de mapear alternativas pós-neoliberais que não estão limitadas a essa divisão entre o novo progressismo e a direita sem medo. Precisamos entender o resultado global. É entender o que tem de proposta para paradigma pós-neoliberal no debate atual. E poder apresentar para a sociedade como uma síntese daquilo que está sendo imaginado hoje como pós-neoliberalismo. Essa é outra maneira de entender imaginação [crítica].
Outra maneira é: se são as tendências globais de reorganização, como o Brasil se posiciona nesse contexto? A gente não pode só olhar as tendências globais, e também não pode olhar só o local. Temos que olhar as duas coisas. E nesse momento fica claro que o Brasil não está sozinho. Ele faz parte de um grupo de países que se inserem nessa ordem internacional de maneira subordinada. Precisamos entender a posição do Brasil nesse sistema global.
Precisamos também entender nossa própria história e como nos relacionamos com o neoliberalismo. Nesse sentido, nossa imaginação é a seguinte: o que foi o período neoliberal no Brasil? O que ele produziu? Quais as tendências que podemos ver no Brasil? Isso exige imaginação, porque temos que olhar para trás, na nossa história, de uma maneira diferente do que olhamos até hoje.
Quais são essas particularidades brasileiras que podem interferir no exercício de pensar alternativas ao neoliberalismo?
MARCOS NOBRE Um dos pontos que dividem o novo progressismo e a direita sem medo é a ideia de que é necessário fazer uma transição ecológica, o que começa por uma transição energética. Isso falando no sentido global.
No caso brasileiro, pensemos no caso do petróleo, da exploração mineral brasileira, o que vem sendo chamado de neo extrativismo. Para o novo progressismo que está no poder com o governo Lula, se ele abre mão de explorar petróleo e minérios, ele perde uma capacidade importante de produzir políticas de combate à pobreza e de combate às desigualdades, porque o Estado brasileiro está numa situação fiscal muito complicada, em termos de capacidade de investimento.
Então há uma situação em que o novo progressismo está no poder, a sua agenda necessariamente tem de ser a agenda de uma transição ecológica, mas ao mesmo tempo ele não pode abandonar o neoextrativismo se quiser continuar como a força política dominante. É uma armadilha.
E o Brasil não está sozinho. Vários países do sul global estão na mesma armadilha: para defender o projeto do novo progressismo em sentido nacional, você, ao mesmo tempo, tem que negar alguns elementos centrais do novo progressismo no seu sentido global, no sentido das suas articulações internacionais. Então existe um descasamento, um descompasso entre a política nacional e a geopolítica, entre o que é o novo progressismo num contexto nacional e o que é o novo progressismo em sentido global.
Fonte: https://www.nexojornal.com.br/entrevista/2024/04/27/periodo-neoliberal-como-superar-o-neoliberalismo-entrevista-marcos-nobre?utm_medium=email&utm_campaign=Nexo%20%20Hoje%20-%2020240429&utm_content=Nexo%20%20Hoje%20-%2020240429+CID_823384e77c90b6531402c25929b6ecc4&utm_source=Email%20CM&utm_term=Existe%20uma%20disputa%20pelo%20modelo%20de%20ordem%20ps-neoliberal
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