Por Luís Ricardo Duarte Jornalista
O historiador inglês Tom Holland em entrevista à VISÃO
07.04.2024 às 19h00
Se lhe perguntar quantas vezes por dia pensa no Império Romano, é bem capaz de lhe responder: a toda a hora. Tom Holland é um apaixonado pela Roma antiga e acalenta o sonho de qualquer historiador que se preze: recontar as vitórias e as derrotas, os êxitos e os fracassos, as conquistas e os desperdícios de uma das maiores civilizações de todos os tempos. A essa ambição tem dedicado o seu talento, como se nota pelo seu último livro, Pax, que acaba de ser lançado em Portugal pela Vogais.
Nascido em Oxford, em 1968, é um dos historiadores ingleses mais respeitados, com estudos sobre toda a Antiguidade, incluindo as mais diversas geografias. A sua vontade de divulgar o passado passa ainda pelo popular podcast The Rest Is History, que assina com Dominic Sandbrook. Entre a atualidade e o Império Romano vê algumas semelhanças, sobretudo na ideia de uma era dourada que, dada por garantida, pode acabar rapidamente.
Primeiro um livro sobre Júlio César, depois
outro sobre Augusto e a sua dinastia. Agora, o que aconteceu depois de Nero…
Pois… Continuo com a ambição louca de tentar contar toda a história do Império
Romano, até à queda do Ocidente. Durante anos, pensava descontraidamente que ia
ter muito tempo para o fazer, mas, de repente, tenho 56 anos. Já não sei até
onde poderei chegar. Também por isso, e seguindo uma tradição forte no contexto
inglês, escrevi de forma a que cada livro tenha leitura autónoma.
E continua a haver novas formas de olhar para
o Império Romano?
Sim, claro. Aliás, os historiadores têm estado a reinterpretar e a recontar a
história de Roma praticamente desde o momento em que o império ruiu. Todo o
Ocidente foi fortemente moldado pelo conhecimento do Império Romano, o que em
parte continua a ser válido para o século XXI. Além disso, há sempre novos
materiais, descobertas e perspetivas. Não há outra civilização que continue tão
viva no nosso imaginário.
Além dessas novas descobertas e perspetivas, o
olhar do historiador pode fazer a diferença no recontar da história de Roma?
Não valeria a pena escrever História se não acreditássemos que é possível fazer
a diferença. E isso é válido para qualquer período ou aspeto da História.
O que quis sublinhar neste livro em concreto?
O título do livro, Pax, que em português, como em inglês, pode ser
traduzido por paz ou pacificação, indica o caminho. Mas o mais curioso da paz
romana é ter dependido, em última análise, de uma grande dose de violência. E
era César, o imperador, que detinha o monopólio dessa violência. Ele está à
frente dessa instituição extraordinária que é o exército. Mais: ele lidera um
exército que está preparado para a guerra, em permanência, sobretudo nos
limites do império. Hoje, tão habituados que estamos a um exército
profissionalizado, talvez não sejamos capazes de perceber quão radical foi essa
opção.
Na altura, isso deu muito poder ao exército?
Sim, em particular nos momentos de crise, o que hoje ainda continua a
acontecer. Como chefe do exército, o imperador detinha o poder total e a
narrativa das grandes vitórias. Foi o que permitiu uma paz duradoura, iniciada
por Augusto. Mas, quando surge um momento de crise, será inevitavelmente do
exército, de um líder carismático e não de uma família aristocrática, que sairá
a solução.
Foi o que aconteceu com Nero, onde começa o
seu livro?
Exato. Nero foi o último descendente direto de Augusto e, por vicissitudes
várias, teve muitas dificuldades em assegurar descendência. O homem que lhe
sucederá, depois de um ano muto agitado, Vespasiano, tinha o exército ao seu
lado.
Muitos historiadores olharam para o período
que cobre neste livro como uma época de ouro. Também a vê assim?
De certa forma, sim. O consulado de Nero foi muito agitado e o ano dos quatro
imperadores – 69 – não lhe ficou atrás. Mas não houve uma mudança de ciclo. Foi
mais um espasmo do que um golpe de morte. A paz foi restaurada pouco depois e
viveu-se, de facto, o que ficou conhecido como uma época de ouro. Na altura,
essa ideia já era veiculada, mas foi o historiador inglês Edward Gibbon o
primeiro a afirmar que era a época em que preferia ter vivido.
O mais curioso da paz romana é ter dependido, em última análise, de uma grande dose de violência. E era César, o imperador, que detinha o monopólio dessa violência
Quais eram os seus argumentos?
Não deixa de haver uma certa ironia na forma como Gibbon apresenta os seus
argumentos. Ele está consciente de que se trata de uma autocracia sustentada em
violência. Que existem extremos de riqueza e pobreza. Mas tenta ir para lá do
que poderíamos chamar de ceticismo em relação ao imperialismo e procura ver a
partir dos padrões da Antiguidade. Nesse sentido, Roma atingiu níveis
espantosos. Um Mediterrâneo totalmente controlado por um mercado único que
facilita o crescimento. Estima-se que as pessoas eram mais ricas do que em
qualquer outro período, até ao aparecimento do capitalismo moderno. Será
insensato minimizar o que se alcançou com o império, tal como é ingénuo pensar
que se tratou de uma idade de ouro em que todos eram felizes.
Com personagens como os imperadores Nero ou
Vespasiano é mais fácil fazer história?
Se pensarmos que em muitas dimensões a história de Roma se escreve com cores
muito primárias, sim. Há a violência de que falei, mas também esta imagem de um
dinossauro, um T-rex, tão ajustada aos imperadores, ao mesmo tempo sedutores e
assustadores. Eram figuras carismáticas, na mesma medida em que eram predadores
no topo da cadeia. Tinham de ser muito bons a criar uma boa imagem pública e a
gerir lealdades.
O livro acaba com Adriano. Depois da sua
morte, há algum ponto de viragem?
Nem por isso. Escolhi acabar com ele porque em todos os livros me interessou
abarcar uma figura com uma vida muito longa, para tentar chegar às dinâmicas
que vão para lá da guerra e que se centram na gestão política do dia a dia.
Depois da sua morte, houve lutas por poder, claro, mas não foram introduzidas
mudanças profundas. Estamos no momento em que o império atingiu as suas
fronteiras mais avançadas.
As sementes da queda do Império Romano já
estão lançadas à terra no tempo destes imperadores?
O que sempre me espantou no Império Romano não foi ele ter caído, mas o facto
de ter sobrevivido tanto tempo. Os pontos de fratura estiveram sempre lá,
dentro do império, e o principal é a geografia. Podemos compará-lo com o
Império Chinês da mesma época e que, apesar das grandes mudanças e de hoje ser
governado pelo Partido Comunista, mantém-se igual na sua base. É um espaço
fechado sobre si e mais homogéneo. No mundo romano, todos os elementos
geográficos impõem divisões. Desde logo o Mediterrâneo, mas também as montanhas
e as diferenças entre leste e oeste. Com um poder forte, tudo se une. À mínima
fragilidade, implode. Foi um grande feito conter todos estes pontos de fratura
nos séculos I e II. Mas no V já não foi possível.
Estava a referir-se ao Império Romano, mas
parecia que estava a descrever os desafios da União Europeia…
[Risos.] A diversidade é um grande desafio. No Império Romano esse
desafio foi superado pelo poder do imperador e por uma eficaz rede de
comunicações, que podia ser uma estrada ou um Mediterrâneo livre de piratas.
Hoje, temos muitos meios para assegurar a comunicação…
Diz que tenta ver a época romana como os
romanos a viam. O que muda nesse olhar?
Convém não fazer julgamentos. Há muitos aspetos da vida romana que continuam a
ser inquietantes para nós. A escravatura é um aspeto óbvio, já que os romanos a
tinham por adquirida. Chega-se ao ponto de se considerar que um homem livre é
aquele que também tem um escravo, pois sem ele a liberdade não tem valor.
Também é radicalmente diferente a vivência da sexualidade. A dinâmica binária
aqui é entre quem tem e não tem poder. Mas o exemplo mais claro da estranheza
que a sociedade romana nos suscita, embora hoje romantizada pelo cinema, é o
Coliseu. O que se passava lá dentro era expressão de uma moral em que se
acreditava profundamente. Os jogos, as execuções, as lutas de feras eram
justificados pelo governo do mundo concedido pelos deuses. O que para nós pode
parecer repugnante, para os romanos era o oposto. E isso é fascinante.
Em que sentido?
Porque nos lembra – e esse é um dos sortilégios do estudo da História – que há
infinitas formas de se ser humano. Os nossos valores e a nossa forma de ver o
mundo podem, em última análise, ser contingentes. Devemos evitar assumir que
existe uma forma absoluta de se ser humano.
Além de estudos sobre o Império Romano e a
emergência do mundo cristão, tem publicado livros sobre os persas e os árabes.
É importante conhecer os dois lados que tantas vezes se defrontaram ao longo da
História?
É fundamental. Só assim se consegue perceber a realidade que os romanos
enfrentavam. Só assim alcançaremos uma visão panorâmica do mundo de então. E
não há dúvida de que os romanos estão sempre conscientes de que existe um mundo
para lá deles. Mas nem sempre reconhecem o direito à autonomia aos estados ou
às regiões dentro da sua esfera de influência. Nesse aspeto, não é muito
diferente do que se vê hoje na Rússia de Putin.
Vivemos hoje numa época em que não se tenta
conhecer o outro?
É da natureza humana estarmos mais interessados no nosso país. E as histórias
patrióticas, hoje tão usadas por todo o lado, têm o poder de emocionar as
pessoas. O problema é que essas histórias são demasiado simples para problemas
e realidades muito complexos.
Os políticos que exploram o nacionalismo e o
populismo são maus historiadores?
Um político no ativo é sempre um mau historiador, porque tem de ser capaz de
articular narrativas simples e facilmente compreensíveis que raramente
correspondem à realidade confusa do passado.
Vê nos conflitos contemporâneos alguma vontade
imperial inspirada na Roma antiga?
Penso que não. Essa filiação era mais direta nos fascismos, nomeadamente em
Mussolini e em Hitler, o que a simbologia e a arquitetura rapidamente
denunciavam. Roma deu a Hitler, por exemplo, a ideia de que uma política de
conquista global era viável. A principal consequência das identificações
recentes é que gerou nos europeus um sentimento contra o militarismo. Esse
sentimento explica, em parte, as dificuldades que a Europa tem em lidar com
Putin.
Putin não lhe traz à memória nenhum imperador
romano?
Há semelhanças, sim. A principal será a de considerar que o alargamento das
fronteiras é uma batalha justa. É uma atitude bastante romana.
Estaremos hoje a acabar uma idade de ouro como
a que os romanos viveram durante o período que abarca neste livro?
É a minha preocupação: que olhemos para as últimas décadas, desde 1989, como
uma idade de ouro, mas muito mais efémera do que a dos romanos. Não me sinto
particularmente animado com o que o futuro reserva. A paz nunca pode ser tida
por garantida.
E pode o leitor tirar lições do Império Romano
para a sua vida?
Não me parece que seja possível tirar um programa de ação, do género, “devias
estudar bem antes de decidires o que vais fazer” ou qualquer coisa do género,
embora os políticos possam aprender muito com os erros do passado romano e não
só. Mas, para mim, a verdadeira lição é a ideia de que os humanos são
infinitamente mais interessantes do que muitas vezes imaginamos, em Roma e em
qualquer outro período da História.
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