quarta-feira, 10 de abril de 2024

“A principal consequência das identificações recentes com o Império Romano é que gerou nos europeus um sentimento contra o militarismo que, em parte, explica as dificuldades que a Europa tem em lidar com Putin”

 Por Luís Ricardo Duarte Jornalista

O historiador inglês Tom Holland em entrevista à VISÃO

Ideias

07.04.2024 às 19h00

Se lhe perguntar quantas vezes por dia pensa no Império Romano, é bem capaz de lhe responder: a toda a hora. Tom Holland é um apaixonado pela Roma antiga e acalenta o sonho de qualquer historiador que se preze: recontar as vitórias e as derrotas, os êxitos e os fracassos, as conquistas e os desperdícios de uma das maiores civilizações de todos os tempos. A essa ambição tem dedicado o seu talento, como se nota pelo seu último livro, Pax, que acaba de ser lançado em Portugal pela Vogais.

Nascido em Oxford, em 1968, é um dos historiadores ingleses mais respeitados, com estudos sobre toda a Antiguidade, incluindo as mais diversas geografias. A sua vontade de divulgar o passado passa ainda pelo popular podcast The Rest Is History, que assina com Dominic Sandbrook. Entre a atualidade e o Império Romano vê algumas semelhanças, sobretudo na ideia de uma era dourada que, dada por garantida, pode acabar rapidamente.

Primeiro um livro sobre Júlio César, depois outro sobre Augusto e a sua dinastia. Agora, o que aconteceu depois de Nero…
Pois… Continuo com a ambição louca de tentar contar toda a história do Império Romano, até à queda do Ocidente. Durante anos, pensava descontraidamente que ia ter muito tempo para o fazer, mas, de repente, tenho 56 anos. Já não sei até onde poderei chegar. Também por isso, e seguindo uma tradição forte no contexto inglês, escrevi de forma a que cada livro tenha leitura autónoma. 
 

E continua a haver novas formas de olhar para o Império Romano?
Sim, claro. Aliás, os historiadores têm estado a reinterpretar e a recontar a história de Roma praticamente desde o momento em que o império ruiu. Todo o Ocidente foi fortemente moldado pelo conhecimento do Império Romano, o que em parte continua a ser válido para o século XXI. Além disso, há sempre novos materiais, descobertas e perspetivas. Não há outra civilização que continue tão viva no nosso imaginário.

Além dessas novas descobertas e perspetivas, o olhar do historiador pode fazer a diferença no recontar da história de Roma?
Não valeria a pena escrever História se não acreditássemos que é possível fazer a diferença. E isso é válido para qualquer período ou aspeto da História.

O que quis sublinhar neste livro em concreto?
O título do livro, Pax, que em português, como em inglês, pode ser traduzido por paz ou pacificação, indica o caminho. Mas o mais curioso da paz romana é ter dependido, em última análise, de uma grande dose de violência. E era César, o imperador, que detinha o monopólio dessa violência. Ele está à frente dessa instituição extraordinária que é o exército. Mais: ele lidera um exército que está preparado para a guerra, em permanência, sobretudo nos limites do império. Hoje, tão habituados que estamos a um exército profissionalizado, talvez não sejamos capazes de perceber quão radical foi essa opção.

Na altura, isso deu muito poder ao exército?
Sim, em particular nos momentos de crise, o que hoje ainda continua a acontecer. Como chefe do exército, o imperador detinha o poder total e a narrativa das grandes vitórias. Foi o que permitiu uma paz duradoura, iniciada por Augusto. Mas, quando surge um momento de crise, será inevitavelmente do exército, de um líder carismático e não de uma família aristocrática, que sairá a solução.

Foi o que aconteceu com Nero, onde começa o seu livro?
Exato. Nero foi o último descendente direto de Augusto e, por vicissitudes várias, teve muitas dificuldades em assegurar descendência. O homem que lhe sucederá, depois de um ano muto agitado, Vespasiano, tinha o exército ao seu lado.

Muitos historiadores olharam para o período que cobre neste livro como uma época de ouro. Também a vê assim?
De certa forma, sim. O consulado de Nero foi muito agitado e o ano dos quatro imperadores – 69 – não lhe ficou atrás. Mas não houve uma mudança de ciclo. Foi mais um espasmo do que um golpe de morte. A paz foi restaurada pouco depois e viveu-se, de facto, o que ficou conhecido como uma época de ouro. Na altura, essa ideia já era veiculada, mas foi o historiador inglês Edward Gibbon o primeiro a afirmar que era a época em que preferia ter vivido.

O mais curioso da paz romana é ter dependido, em última análise, de uma grande dose de violência. E era César, o imperador, que detinha o monopólio dessa violência

Quais eram os seus argumentos?
Não deixa de haver uma certa ironia na forma como Gibbon apresenta os seus argumentos. Ele está consciente de que se trata de uma autocracia sustentada em violência. Que existem extremos de riqueza e pobreza. Mas tenta ir para lá do que poderíamos chamar de ceticismo em relação ao imperialismo e procura ver a partir dos padrões da Antiguidade. Nesse sentido, Roma atingiu níveis espantosos. Um Mediterrâneo totalmente controlado por um mercado único que facilita o crescimento. Estima-se que as pessoas eram mais ricas do que em qualquer outro período, até ao aparecimento do capitalismo moderno. Será insensato minimizar o que se alcançou com o império, tal como é ingénuo pensar que se tratou de uma idade de ouro em que todos eram felizes.

Com personagens como os imperadores Nero ou Vespasiano é mais fácil fazer história?
Se pensarmos que em muitas dimensões a história de Roma se escreve com cores muito primárias, sim. Há a violência de que falei, mas também esta imagem de um dinossauro, um T-rex, tão ajustada aos imperadores, ao mesmo tempo sedutores e assustadores. Eram figuras carismáticas, na mesma medida em que eram predadores no topo da cadeia. Tinham de ser muito bons a criar uma boa imagem pública e a gerir lealdades.

O livro acaba com Adriano. Depois da sua morte, há algum ponto de viragem?
Nem por isso. Escolhi acabar com ele porque em todos os livros me interessou abarcar uma figura com uma vida muito longa, para tentar chegar às dinâmicas que vão para lá da guerra e que se centram na gestão política do dia a dia. Depois da sua morte, houve lutas por poder, claro, mas não foram introduzidas mudanças profundas. Estamos no momento em que o império atingiu as suas fronteiras mais avançadas.

As sementes da queda do Império Romano já estão lançadas à terra no tempo destes imperadores?
O que sempre me espantou no Império Romano não foi ele ter caído, mas o facto de ter sobrevivido tanto tempo. Os pontos de fratura estiveram sempre lá, dentro do império, e o principal é a geografia. Podemos compará-lo com o Império Chinês da mesma época e que, apesar das grandes mudanças e de hoje ser governado pelo Partido Comunista, mantém-se igual na sua base. É um espaço fechado sobre si e mais homogéneo. No mundo romano, todos os elementos geográficos impõem divisões. Desde logo o Mediterrâneo, mas também as montanhas e as diferenças entre leste e oeste. Com um poder forte, tudo se une. À mínima fragilidade, implode. Foi um grande feito conter todos estes pontos de fratura nos séculos I e II. Mas no V já não foi possível.

Estava a referir-se ao Império Romano, mas parecia que estava a descrever os desafios da União Europeia…
[Risos.] A diversidade é um grande desafio. No Império Romano esse desafio foi superado pelo poder do imperador e por uma eficaz rede de comunicações, que podia ser uma estrada ou um Mediterrâneo livre de piratas. Hoje, temos muitos meios para assegurar a comunicação…

Diz que tenta ver a época romana como os romanos a viam. O que muda nesse olhar?
Convém não fazer julgamentos. Há muitos aspetos da vida romana que continuam a ser inquietantes para nós. A escravatura é um aspeto óbvio, já que os romanos a tinham por adquirida. Chega-se ao ponto de se considerar que um homem livre é aquele que também tem um escravo, pois sem ele a liberdade não tem valor. Também é radicalmente diferente a vivência da sexualidade. A dinâmica binária aqui é entre quem tem e não tem poder. Mas o exemplo mais claro da estranheza que a sociedade romana nos suscita, embora hoje romantizada pelo cinema, é o Coliseu. O que se passava lá dentro era expressão de uma moral em que se acreditava profundamente. Os jogos, as execuções, as lutas de feras eram justificados pelo governo do mundo concedido pelos deuses. O que para nós pode parecer repugnante, para os romanos era o oposto. E isso é fascinante.

Em que sentido?
Porque nos lembra – e esse é um dos sortilégios do estudo da História – que há infinitas formas de se ser humano. Os nossos valores e a nossa forma de ver o mundo podem, em última análise, ser contingentes. Devemos evitar assumir que existe uma forma absoluta de se ser humano.

Além de estudos sobre o Império Romano e a emergência do mundo cristão, tem publicado livros sobre os persas e os árabes. É importante conhecer os dois lados que tantas vezes se defrontaram ao longo da História?
É fundamental. Só assim se consegue perceber a realidade que os romanos enfrentavam. Só assim alcançaremos uma visão panorâmica do mundo de então. E não há dúvida de que os romanos estão sempre conscientes de que existe um mundo para lá deles. Mas nem sempre reconhecem o direito à autonomia aos estados ou às regiões dentro da sua esfera de influência. Nesse aspeto, não é muito diferente do que se vê hoje na Rússia de Putin.

Vivemos hoje numa época em que não se tenta conhecer o outro?
É da natureza humana estarmos mais interessados no nosso país. E as histórias patrióticas, hoje tão usadas por todo o lado, têm o poder de emocionar as pessoas. O problema é que essas histórias são demasiado simples para problemas e realidades muito complexos.

Os políticos que exploram o nacionalismo e o populismo são maus historiadores?
Um político no ativo é sempre um mau historiador, porque tem de ser capaz de articular narrativas simples e facilmente compreensíveis que raramente correspondem à realidade confusa do passado.

Vê nos conflitos contemporâneos alguma vontade imperial inspirada na Roma antiga?
Penso que não. Essa filiação era mais direta nos fascismos, nomeadamente em Mussolini e em Hitler, o que a simbologia e a arquitetura rapidamente denunciavam. Roma deu a Hitler, por exemplo, a ideia de que uma política de conquista global era viável. A principal consequência das identificações recentes é que gerou nos europeus um sentimento contra o militarismo. Esse sentimento explica, em parte, as dificuldades que a Europa tem em lidar com Putin.

Putin não lhe traz à memória nenhum imperador romano?
Há semelhanças, sim. A principal será a de considerar que o alargamento das fronteiras é uma batalha justa. É uma atitude bastante romana.

Estaremos hoje a acabar uma idade de ouro como a que os romanos viveram durante o período que abarca neste livro?
É a minha preocupação: que olhemos para as últimas décadas, desde 1989, como uma idade de ouro, mas muito mais efémera do que a dos romanos. Não me sinto particularmente animado com o que o futuro reserva. A paz nunca pode ser tida por garantida.

E pode o leitor tirar lições do Império Romano para a sua vida?
Não me parece que seja possível tirar um programa de ação, do género, “devias estudar bem antes de decidires o que vais fazer” ou qualquer coisa do género, embora os políticos possam aprender muito com os erros do passado romano e não só. Mas, para mim, a verdadeira lição é a ideia de que os humanos são infinitamente mais interessantes do que muitas vezes imaginamos, em Roma e em qualquer outro período da História.

Fonte: https://visao.pt/ideias/2024-04-07-a-principal-consequencia-das-identificacoes-recentes-com-o-imperio-romano-e-que-gerou-nos-europeus-um-sentimento-contra-o-militarismo-que-em-parte-explica-as-dificuldades-que-a-europa-tem-em-lidar/

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