Ilustração de Ricardo Cammarota para coluna de Luiz Felipe Pondé - Folhapress
Lutas políticas, nas redes sociais, são um terreno fértil para o uso pragmático do discurso, que esvazia o valor da linguagem
21.abr.2024 às 18h00
Não leio comentários acerca do que escrevo ou falo. Interesse zero. Tampouco tenho interesse em "debates". Debates são um fetiche quando tomados como forma para se "avançar" no entendimento de questões complexas e que mobilizam muitos interesses e paixões das partes em contenda.
Mas, às vezes, leio, por curiosidade mórbida talvez, comentários feitos a textos de colegas colunistas ou artigos em geral e constato que são, em sua imensa maioria, uma enorme perda de tempo.
Claro que há exceções nesse balaio de inconsistências —usemos um termo chique hoje— que são os comentários, mas em geral não justifica o tempo perdido.
O caso da guerra entre Israel e Hamas é um exemplo que beira a caricatura. Articulistas, jornalistas e colunistas são no Brasil, em sua total maioria, contra Israel, mas nos comentários um monte de gente acusa os veículos de "estarem a serviço do sionismo". O que fazer diante de tal absurdo?
Aliás, vale salientar que argumentos como este são herdeiros diretos da peça antissemita russa czarista "Os Protocolos dos Sábios de Sião" —os judeus mandam no mundo com seu dinheiro.
Essa epidemia de inconsistências que as redes geram —muitas vezes, como no caso dos comentários, apresentados como democratização da informação e opinião— é uma das manifestações de uma situação estrutural mais profunda, que é a relação delinquente que a humanidade sempre teve com a fala, a linguagem e a emissão de opiniões.
Não aprendemos a falar "para" o conhecimento consistente de nada. Aprendemos a falar, na melhor das hipóteses, "para" garantir a sobrevivência, a defesa e convencer as fêmeas a aceitar o sexo de forma suave.
E, por sua vez, sendo o sexo frágil, as fêmeas aprenderam a falar "para" garantir o melhor dos mundos possível para elas e sua prole, muito antes de Leibniz (1646-1716) ter concebido sua filosofia do melhor dos mundos possível criado por Deus na sua teodiceia.
No restante dos casos, a linguagem está a
serviço do delírio, da mentira, da fofoca, da manipulação das mentes e dos
corações. Portanto, é mais fácil ser inconsistente no uso da linguagem do que
seu contrário.
Por isso, o trabalho do jornalismo decente, não preguiçoso, e do intelectual
decente não enviesado ideologicamente, é tão difícil e raro.
A única forma de combater as fake news seria derrubar as redes sociais, ideia absurda, claro —e nem assim, porque a mentira é proporcional ao simples aumento da circulação da palavra, porque amamos a mentira em si, sem nenhuma razão especial, como dizia o escritor francês Georges Bernanos (1888-1948).
Mas podemos ir mais além do que as lamúrias e os clichês de ocasião no que se refere ao problema das fake news. Suspeito que o lamento ao redor das fake news e as lágrimas de crocodilo a elas associadas aumenta a cada momento simplesmente porque quem domina as redes é a direita.
Fosse o contrário, não sei, não. Os bolcheviques praticaram fake news —como todo mundo— largamente. Talvez uma das mais famosas tenha sido quando espalharam que o czar Nicolau 2° era um agente alemão na Primeira Guerra Mundial —Nicolau 2° era muito idiota para tal.
A prática do pragmatismo revolucionário no uso da moral e da linguagem foi comum entre comunistas. Lenin, Trótski e Stálin o usaram a larga. Marx veria as fake news como úteis para o pragmatismo revolucionário da linguagem, se usado para o lado "certo".
Toda luta política acirrada é um terreno
fértil para esse uso pragmático revolucionário da linguagem. O
importante é acuar a palavra do outro, esvaziá-la de valor, gerar mais
engajamento de uma determinada
narrativa. Isso não vai mudar.
Se as leis conseguirem infringir duras perdas financeiras às grandes plataformas da internet, pode-se atingir algum resultado tímido, lembrando que quem criará e aplicará as leis serão os mesmos sapiens que adoram a mentira a favor do que creem.
A delinquência moral é estrutural em nossa
espécie. O que nos confunde são os salamaleques, recurso clássico de quem detém
o monopólio legítimo da
violência no uso da linguagem.
*Escritor e ensaísta, autor de "Notas sobre a Esperança e o Desespero" e “A Era do Niilismo”. É doutor em filosofia pela USP.
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