sexta-feira, 19 de abril de 2024

Adam Curtis: “nós criamos a sociedade, portanto podemos fazê-lo novament

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Imagens do filme “HyperNormalisation”, de Adam Curtis (Fotos: cortesia do diretor/BBC)

Em sua conversa com o Le Monde Diplomatique Brasil, Adam Curtis fala sobre o papel da arte na sociedade, o poder revolucionário do jornalismo e como podemos construir uma nova sociedade


Nos últimos trinta anos, um diretor de documentário se destacou entre seus colegas ao criar uma forma única e característica para seus filmes. Com as imagens do arquivo da BBC, uma mistura de música pop e experimental e um voice-over onipresente narrando histórias ambiciosas, como a ascensão da psicanálise e das relações públicas servindo de armas políticas, Adam Curtis conquistou fãs ao redor do mundo, mesmo que seu trabalho só esteja oficialmente disponível no Reino Unido.

Jornalista da BBC, o órgão público de comunicação do Reino Unido, Curtis lança seus documentários desde o início dos anos 1990 e, com a ascensão da internet, suas reportagens são rapidamente legendadas e republicadas no YouTube para seus fãs não britânicos. Entre os trabalhos mais famosos do cineasta de 68 anos estão HyperNormalisation, filme de 2016 que trata da ascensão de um mundo falso criado pela política e pelo mercado financeiro desde 1970, e TraumaZone, sua série mais recente que mostra a queda da União Soviética.

Suas reportagens não são simples investigações ou narrações de episódios históricos. Curtis mergulha nas emoções, nas consequências ignoradas e nas versões não oficias da história, que desafiam como ela tem sido escrita e contada pelos vencedores. O documentarista tem admiradores e detratores tanto na esquerda quanto na direita, e seu trabalho camaleônico bebe de influências diversas como o falecido antropólogo anarquista britânico David Graeber e o filósofo brasileiro Roberto Mangabeira Unger.

Em sua conversa com o Le Monde Diplomatique Brasil, Adam Curtis fala sobre o papel da arte na sociedade, o poder revolucionário do jornalismo e como podemos construir uma nova sociedade. Confira:

Você prefere ser chamado de jornalista, e não de cineasta. Por quê? Qual a diferença?

Eu não vejo problema em ser chamado de cineasta. Meu problema é com a palavra “artista”. Essa eu realmente não gosto. Não sei se isso também é verdade no seu país, mas aqui [no Reino Unido], há uma fetichização do artista acima de praticamente qualquer outra coisa em certos setores da burguesia liberal. Eu acho isso um pouco arrogante, porque eu considero o jornalismo muito mais importante e influente historicamente do que a arte.

A arte é muito, muito boa em descrever o que é o mundo em um momento particular, às vezes até de forma instintiva, enquanto o jornalismo é sobre realmente mudar o mundo. Você sai e você reporta as coisas que são muito ruins para as pessoas. As pessoas ficam raivosas, põem pressão nos legisladores e, então, os jornalistas realizaram seu papel em mudar o mundo. Até certo ponto, isso não acontece mais hoje em dia, mas é por isso que eu considero o jornalismo mais importante que a arte.

Eu roubo da arte, roubo inúmeras ideias da arte, mas eu as coloco a serviço de tentar reportar sobre o mundo para o povo, o que eu, pessoalmente, considero mais importante.

Eu não sei se é verdade onde vocês estão, mas há uma certa obsessão com autoexpressão entre certos setores das classes médias liberais e de esquerda. Eu acho que isso está relacionado com o fato de que eles foram marginalizados do poder na década de 1980, quando os governos radicais de direita entraram em cena. Em resposta a isso, eles disseram “oh, nós somos mais importantes. Nós podemos nos expressar”. Se você olhar para a história, no começo, eles realmente usaram a sua arte para criticar a política. Mas, lá pelo meio dos anos 1990, a política havia desaparecido e tudo só virou autoexpressão.

É essa ideia de que se expressar é mais valioso do que qualquer outra coisa no mundo todo. Eu não sei… Uma das razões pelas quais eu odeio ser chamado de artista é porque eu acho que toda essa ideia de autoexpressão não é mais radical. Na verdade, é a coisa mais conformista que você pode fazer hoje em dia. Se você faz algo extraordinário e não conta a ninguém sobre, as pessoas não entendem porque você faria isso. Isso é parte de uma certa cegueira do nosso tempo: as pessoas sentem que estão sendo, de certa maneira, independentes e radicais, mas, na verdade, elas estão sendo exatamente como todos os outros que também estão sendo independentes e radicais, e eu não sei como sair dessa armadilha.

Nesse mundo de armadilha, a realidade muitas vezes não é o que parece. Qual o papel do jornalismo numa situação como essa? 

O jornalismo sempre foi, de certo modo, um contador de verdade, e eu acho que ele se perdeu um pouco nessa ideia do que é verdadeiro ou falso. Jornalismo sempre foi sobre pegar fatos e contar histórias sobre o mundo, mas há uma ideia quase religiosa e levemente inocente de que o trabalho é só encontrar os fatos e colocá-los à frente das pessoas.

O problema com o jornalismo, no momento, é que ele não encontrou uma maneira de contar histórias que se conectem com as pessoas. Eu não sei se isso é verdade no Brasil, mas a minha organização, a BBC, ainda tem uma obsessão pela ideia de jornalismo investigativo, onde um repórter vai, encontra algo ruim, como um ministro corrupto no governo, e escreve essas coisas esperando choque, mas nada acontece. O povo sabe que nós temos um governo incrivelmente corrupto, mas a reação às reportagens chocantes dos jornalistas é “sim, a gente sabe, mas a gente também sabe que, não importa o que você faça, nada vai acontecer”.

Alguma coisa está quebrada, e os jornalistas ainda não encontraram uma forma de narração que surpreenda ou inspire as pessoas. Eles contam a mesma velha história, que eu chamo de oh-céus-ismo. Eles só falam “oh céus, isso é terrível”, e todo mundo responde “sim, é terrível”, e o mundo continua como está.

Eu acho que todo mundo se sente sem poder na nossa sociedade, e o jornalismo um dia já foi sobre empoderar as pessoas, porque ele dava a elas informação que elas poderiam usar para pressionar os políticos. As pessoas se afastam do jornalismo porque elas acham que não faz sentido, já que ele só nos conta o que já sabemos.

Eu fico desconfiado de quem fala que tudo se resume a fake news, porque eu acho que vai além disso. O jornalismo não está configurando o mundo e contando histórias que se conectam às pessoas e à forma que elas estão experienciando o mundo. Mas ele vai fazer isso. Os jornalistas vão sobreviver.

Voltando para a pergunta sobre arte. Os artistas fingem que são radicais mas, no decorrer da história do mundo, até onde eu sei, os artistas, por causa de seus privilégios, puderam entrar nas salas dos ricos e poderosos, e retrataram eles muito bem, e é isso que sempre fizeram. Eu estou sendo um pouco provocativo, mas eu não acho que arte radical tenha, algum dia, transformado o mundo. Quando os pintores costumavam ir e pintar o estilo de vida dos ricos e famosos, de uma forma extraordinária isso deu ao povo uma ideia de como os poderosos eram, o que é muito importante, mas não é radical.

Você não acha que há alguma exceção para essa regra de que os artistas não mais podem mudar o mundo?

Bom, me diga quando os artistas mudaram o mundo. Se você olha para a história das grandes revoluções, os artistas sempre chegam atrasados para o jogo. A Revolução Russa não aconteceu por causa dos artistas. Eles apareceram no começo da década de 1920 e começaram a fazer arte muito boa, ótima em expressar as ideias do governo revolucionário e da sociedade revolucionária, mas não foi esse o motor que mudou o mundo. No fim da década de 1920 e no começo da década de 1930, na Alemanha, tinham artistas fazendo colagens radicais que mostravam quão péssimos os nazistas eram. Bom, eles realmente pararam os nazistas? 

O que eu acho que há de radical na arte é que, de alguma maneira, ela percebe instintivamente o que o mundo se tornou, e encontra formas muito imaginativas de contar a mim e a você como o mundo é. A arte pode capturar o mundo, mas não mudá-lo.

 

No livro Realismo capitalista, Mark Fisher escreve que “no capitalismo, tudo o que é sólido se desmancha nas relações públicas”. Parece que você ecoa essa mensagem em HyperNormalisation. Será que as relações públicas são o grande contraponto, o inimigo do jornalismo hoje em dia?

Não, nós [jornalistas] somos nossos próprios piores inimigos. Eu não acredito que o inimigo esteja nas coisas sendo manipuladas pelas relações públicas ou algo assim. 

Eu e o Mark Fisher éramos grandes amigos, na verdade. Costumávamos fazer palestras juntos. Toda época tem um realismo, e com isso eu não quero dizer o que é real, mas sim realismo como uma maneira de descrever o mundo que realmente se conecta com a forma como as pessoas estão experienciando a realidade naquele momento histórico.

Quando Charles Dickens e [Honoré de] Balzac estavam escrevendo seus romances, aquilo parecia real. O que ninguém está fazendo hoje é produzir um tipo de contação de história que se conecte com a forma como as pessoas se sentem. As pessoas mais próximas de descrever a falta de poder do nosso tempo são os romancistas millennials, como a Sally Rooney, porque o que ela faz é descrever um sentimento em todos seus personagens de querer mudar o mundo, mas nunca fazer nada sobre isso. Então, eles vagueiam por essa neblina de falar a linguagem de quem quer mudar o mundo, mas sabendo que nunca vão realmente fazê-lo. Isso é o mais próximo que chegamos de um realismo da nossa época.

Os jornalistas contam com formas velhas de contar histórias, e é nossa culpa que não conseguimos explicar o mundo e esse sentimento de falta de poder. Não estamos sozinhos, mas nós temos um grande papel em não assumir a responsabilidade e encontrar uma forma imaginativa de fazer isso. Há momentos em que o jornalismo muda, e eu acho que nós estamos provavelmente esperando por um desses.

Você tem um estilo de documentário muito único, que as pessoas reconhecem. De onde veio a ideia de trabalhar com os arquivos de vídeo da BBC e usar esses fragmentos audiovisuais?

A resposta a essa pergunta é que eu não faço ideia. Só foi o jeito que eu decidi que poderia fazer isso. Quando eu entrei na BBC, os jornalistas mais velhos estavam satisfeitos consigo mesmos, e eu estava tão entediado pelo jeito que eles faziam as coisas, então eu só comecei a brincar. Eu tinha sido influenciado muito mais pela literatura do que pela arte. Quando eu era criança, meu pai, que é um esquerdista meio sem graça, me deu um livro do escritor americano John dos Passos. E isso foi muito antes de quando eu deveria ter lido aquilo, eu devia ter uns dez anos. No livro, ele faz essas colagens de coisas, experiência crua e manchetes de jornal para contar histórias. Eu acho que aquele livro teve um grande efeito em mim, porque me fez perceber que você poderia criar uma narrativa e ter um conjunto de coisas montado em volta dela.

Toda geração tem uma nova sensibilidade, e, na minha, nós estávamos mais confortáveis em brincar com a mídia. Estávamos começando a perceber que a cultura era essa coisa com a qual poderíamos brincar. Eu sou da geração do sampling

Eu entrei com aquilo que era chamado de edição não linear. Eu sei que isso soa chato, mas a tecnologia tem um papel importante nisso. Pela primeira vez, você poderia pegar imagens e só colocá-las sem ter que mudar toda a estrutura do seu filme. Portanto, você podia brincar.

E a ideia de usar música pop e eletrônica, de onde veio? Isso é algo muito distinto no seu trabalho. Sempre dizemos que o jornalismo deveria ser imparcial e objetivo, mas o jeito que você usa as montagens com as canções fala diretamente à emoção das pessoas, é bem subjetivo.

Quando comecei a fazer jornalismo, algo que eu percebi foi que essa ideia de que você poderia ser objetivo era bobagem. Os jornalistas mais velhos não eram objetivos de forma alguma, mas o que eles estavam fazendo era disfarçar isso. Então, o que decidi fazer foi mostrar que eu não estava manipulando, eu estava criando um ambiente para tentar dizer às pessoas: “olha, você já pensou em ver o mundo dessa maneira?” Você pode olhar para o mundo de várias formas diferentes. E muitas vezes as formas que nos ensinaram são um pouco limitadas ou possivelmente erradas.

Eu pensei que, de um jeito engraçado, estava sendo mais verdadeiro. Acho que as pessoas da minha geração apreciaram isso. Além disso, os documentários sempre usaram música, mas a música era péssima. Era terrível.

Como com os saltos que faço na narrativa, essa é minha forma de construção, porque acho que é uma maneira mais honesta de relatar o mundo do que usar a pretensão de que você está sendo completamente objetivo. Estou apenas provocando um pouco para tentar dizer às pessoas, “você já pensou nisso?”

Nos seus filmes, os voice-overs servem como uma linha que guia o público aonde você quer chegar. Por que abandonar o recurso em TraumaZone, sua série mais recente? 

Duas razões. Primeiro, eu tinha um material extraordinário, rushes que foram filmados por equipes de notícias da BBC ao longo de trinta anos na Rússia. Eu achei que era simplesmente errado colocar a minha narração por cima, por que não apenas deixar o vídeo correr?

Além disso, acho que os tempos estão mudando. Acho que é hora de recuar e apenas permitir que as pessoas experienciem as coisas. Jornalistas pomposos falam sobre como ninguém mais tem capacidade de concentração nos dias de hoje, mas tudo o que você tem que fazer é criar um mundo onde as pessoas se percam, e elas ficam fascinadas. Eu simplesmente pensei que estava construindo um mundo, então não deveria comentar sobre ele, deveria apenas deixar que ele fosse.

Na minha edição, é claro que eu estou comentando sobre esse mundo. Acho que o que percebi muito cedo é que você precisa realmente colocar sua própria sensibilidade em um filme: a música que você gosta, as atitudes que você pensa. Não crenças profundas, apenas a maneira como você pensa sobre um assunto e a maneira como você o dramatiza.

Imagens da série “TraumaZone”, de Adam Curtis (Fotos: cortesia do diretor/BBC)

Em Can’t Get You Out Of My Head, você apresenta a história contemporânea por meio de teorias de conspiração que moveram as pessoas. E quando você e seu trabalho são chamados de teorias da conspiração por críticos?

Eu diria que nunca, jamais levantei uma teoria da conspiração. Eu as reportei. O que sempre tentei fazer, e acho que é uma função muito boa do jornalismo, é dizer que a maneira como vemos o mundo tem se tornado cada vez mais estreita. Eu só quero fazer filmes que digam a você: “já pensou em ver o mundo a partir deste ponto de vista?” É como um ensaio provocativo.

No meu país, nos últimos vinte ou trinta anos, nós tivemos dois partidos políticos principais que são essencialmente idênticos. Eles entram em conflito sobre coisas pequenas, mas, essencialmente, a faixa do que é considerado normal na política e na sociedade tornou-se incrivelmente estreita. Em resposta a isso, quando pessoas como eu saem e dizem, “já pensaram em olhar para isso dessa maneira?”, as pessoas dizem, “oh, isso é uma conspiração”. Então, a palavra conspiração começou a mudar de significado. O que ela significa muitas vezes é que você está discutindo coisas fora dos termos da faixa acordada.

Ser provocativo e desafiar uma sociedade que tem uma visão muito estreita da política atrai críticas e conflitos, mas isso faz parte do processo. Às vezes, penso que essa estreiteza levou a um tipo de jornalismo muito desidratado e, se você o desafia, todos ficam zangados. Não sei se é verdade no jornalismo em seu país, mas os jornalistas estão muito satisfeitos consigo mesmos. Sentimos que sabemos mais sobre o mundo do que todo mundo, mas talvez isso não seja verdade.

 

Quando você fala sobre o estreitamento da visão política, me lembro da frase com a qual você abre e fecha a série Can’t Get You Out Of My Head, do antropólogo anarquista David Graeber, que afirma que “a verdade oculta do mundo é que ele é algo que fazemos, e que poderíamos facilmente fazer de um modo diferente”. Por que estamos tão presos em fazer as coisas do mesmo jeito?

Eu não sei! Acho que essa é a questão chave do nosso tempo, por que estamos tão estagnados. Tenho essa teoria latente de que, embora muitas coisas tenham acontecido nos últimos trinta anos, a sociedade talvez não tenha realmente mudado. Estou falando da macrosociedade, a estrutura de poder não mudou tanto assim. Tome como exemplo  o governo Trump, de 2016 a 2020. A histeria foi extraordinária nos Estados Unidos, mas, se você é um historiador implacável da era Trump, verá que ele não fez nada. Ele reduziu os impostos para os ricos, mas todo republicano faz isso. Ele retirou as tropas da Síria, o que acho que é provavelmente uma coisa boa. Ele não fez mais nada, essa sensação de que a sociedade estava indo a algum lugar simplesmente parou.

Tenho uma teoria de que nos tornamos viciados em apocalipse. Eu estive querendo fazer um filme chamado Apocalipse Now and Then (Apocalipse Agora e Depois). Desde 2001, ou talvez um pouco antes, com a virada do ano 2000, nos tornamos viciados nessa ideia de que haverá uma catástrofe. Os jornalistas adoram isso, porque é algo para gerar histeria.

É como com a Ucrânia hoje. Acho que há um argumento muito forte de que estamos loucos por estar enviando todas essas armas para a Ucrânia para que jovens sejam mortos repetidamente, e deveria haver um movimento pela paz pedindo algum tipo de cessar-fogo, mas isso não está acontecendo. Você tem esse mundo estático onde apenas enviamos armas para lá e ninguém discute como resolver isso.

Não estou tentando ser bruto demais, mas é quase como se nos deleitássemos na histeria para evitar o terrível fato de que na verdade não sabemos como mudar o mundo para melhor. Não sabemos. Então, o que fazemos é apreciar os apocalipses porque nos dá uma desculpa para evitar enfrentar o terrível fato de que as pessoas vêm e vão com ideias estranhas, mas nada nunca acontece.

No Reino Unido, tivemos quatro primeiros-ministros dentro de uma administração, que fazem coisas estranhas, mas nada nunca acontece. A única coisa que acontece é que a distribuição da riqueza fica mais extrema e as pessoas fora da faixa de normalidade ficam mais zangadas.

Há uma mulher fantástica que encontrei no TikTok outro dia, dizendo “estou cansada de ter uma opinião sobre o mundo, estou cansada de ter teorias sobre o mundo, estou simplesmente cansada de tudo isso. Vou lhe dizer, para 2022, tenho um slogan: sem pensamentos, apenas vibes” e pensei “é onde estamos agora”. As pessoas desistiram dessa ideia de que os pensamentos podem realmente ter um efeito, e elas sabem que nós sabemos que elas sabem, o que leva a um ciclo de ódio total.

A maioria dos jornalistas agora odeia pessoas comuns porque não as entendem, mas nota-se uma coisa realmente interessante sobre Trump – e isso também foi verdade sobre o Brexit: os jornalistas nunca se perguntam por que tantas pessoas continuam o apoiando. Mesmo ele sendo um criminoso condenado, quase 50% dos americanos ainda o apoiam.

 

Você já falou que lê e admira o trabalho do filósofo brasileiro Roberto Mangabeira Unger. Por que o pensamento dele te atrai?

Porque ele está tentando lidar com essas áreas, sobre como mudar alguma coisa. Sou jornalista, então leio tudo, e sou intrigado por qualquer um. É por isso que gosto de David Graeber, por exemplo, que realmente pensa fora do ciclo de desgraça, que é o verdadeiro problema da nossa era. Todos esperam o apocalipse, o que congela a imaginação. O que gosto é de qualquer um que tente imaginar alternativas, que realmente imagine que você pode imaginar.

O movimento ambientalista, em algum momento dos anos 1990, foi capturado por tecnocratas que simplesmente disseram: “você só precisa alterar o sistema técnico para que a temperatura caia, e a sociedade pode ficar como está”. Bem, isso não funcionou, e o que aconteceu com os ambientalista é que eles pensam “meu Deus, não está funcionando, isso significa que todos vamos morrer”, em vez de realmente dizer “a razão é porque você tem uma sociedade que força as pessoas a dirigirem carros para ir trabalhar e toda uma série de ações que levam ao problema”. Então, a resposta é mudar a sociedade. Mas ninguém nunca faz isso, porque todos se tornaram tão desligados da ideia de que você pode mudar as coisas. Nós criamos a sociedade, portanto podemos fazê-lo novamente, não é um dado inevitável, e é por isso que gosto de qualquer um que tente fazer isso.

Apenas acho que é óbvio que construímos essa coisa, então podemos reconstruí-la, mas o que aconteceu com minha classe [a jornalística], e acho que provavelmente é verdade em seu país também, é que eles se tornaram totalmente deprimidos e temerosos do futuro, e sentem que é muito perigoso tentar fazer alguma coisa. Apenas acho que essa é a visão cínica. Quero dizer, se você vai mudar o mundo, precisa conversar com pessoas que votaram em Trump, e precisa conversar com pessoas que votaram pelo Brexit.

Acho que a imaginação do jornalismo está congelada. Você me perguntou sobre música, e estou tentando fazer jornalismo de forma imaginativa porque acho que é assim que você se conecta com as pessoas. Você está mostrando a elas uma maneira imaginativa de ver o mundo, e se você acertar, as pessoas realmente gostam.

Nos anos 1980, foram feitos vários filmes trash que eram realmente bastante divertidos, de pessoas como John Carpenter, que frequentemente eram ambientados nas áreas urbanas, onde tudo estava se deteriorando, as fábricas estavam fechadas, mas estavam cheias de mutantes e pessoas estranhas com motosserras e coisas assim, e você entrava lá e tinha batalhas extraordinárias. Acho que a internet vai se tornar um pouco assim, será como um território mutante que você pode entrar e se divertir muito – mas toda a reportagem sobre o mundo se moverá para outro lugar, e acho que isso pode ser uma reinvenção do jornalismo. A internet permanecerá, será uma coisa boa e útil, mas, agora, ela é apenas chata, previsível.

Acho que tentei sugerir gentilmente isso em Hypernormalisation: se você tem um grande sistema como a Guerra Fria, no qual você tem as duas grandes estruturas de poder do mundo congeladas e equilibradas, juntas, por sessenta anos, quando ela desmorona, ambos os lados terão que desmoronar. O que talvez estejamos vivenciando agora pode ser equivalente ao que os russos passaram na década de 1990. Você tem um sistema econômico muito corrupto que está sendo saqueado por figuras oligárquicas.

No que você está trabalhando atualmente? 

Eu quero fazer um TraumaZone sobre o Reino Unido. Quero que seja uma espécie de comédia, porque tem tanta coisa engraçada acontecendo por aqui e porque gosto da ideia de fazer com que as pessoas vejam as coisas com um olhar mais fresco. Quero fazer uma grande épica que começa mais ou menos com Margaret Thatcher assumindo o poder. 

Fonte: https://diplomatique.org.br/adam-curtis-entrevista/

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