Por Leão Serva*
Para historiador Fernando Rosas, possível reeleição de Trump e não afastamento definitivo de Bolsonaro favorecem regressão a formas do fascismo histórico
Quando o senhor começou a produzir o seu livro Salazar e os fascismos, imaginava que o clima político no mundo iria torná-lo tão atual?
Na
realidade, as coisas andaram depressa. O livro é sobre o fascismo
paradigmático, histórico, na Europa. Ao fim da publicação, ensaio uma
relação entre o fascismo dos anos 30 e os movimentos de extrema direita,
que ganhavam força, àquela altura, na Europa, sobretudo na França e na
Itália. Mas é claro que houve, desde então, uma mudança qualitativa de
extrema gravidade, que coloca neste momento a extrema direita à beira do
poder na França, no poder na Itália e com sondagens superiores a 20% na
Alemanha, acima até do Partido Social-Democrata do primeiro-ministro
alemão. Lá, ainda por cima, essa extrema direita está intimamente ligada
a projetos de deportação de milhões de pessoas, em função das
características étnicas ou opiniões políticas. Portanto, se somarmos a
isso as possibilidades da reeleição do Trump nos Estados Unidos e do não
afastamento definitivo do ex-presidente Bolsonaro no Brasil, temos uma
situação internacional, do ponto de vista dos direitos humanos e da
regressão a formas parecidas com o fascismo histórico, que não pode
deixar de merecer a atenção dos cidadãos em geral e dos historiadores em
particular.
Nós
associamos sempre o fascismo a líderes carismáticos: Mussolini, Hitler,
Franco… mas Salazar tinha um perfil mais discreto. Como ele conseguia
ser um líder fascista sem ser um pavão como os outros?
O
fascismo histórico, paradigmático, do entreguerras, não gera regimes de
natureza única. Prefiro mesmo falar em fascismos, no plural.
Historicamente, surge de um casamento com uma parte da direita
tradicional, assustada pela iminência da revolução social, da Revolução
Russa, pelo impacto da Primeira Guerra Mundial e, depois, pela
instabilidade causada pela Grande Depressão, de 1929. A aliança da
direita tradicional com os movimentos do fascismo plebeu surge no
rescaldo da Primeira Guerra, a partir de 1919, na Itália, e depois na
Alemanha e em outros países, que têm uma base social nas classes médias,
na pequena burguesia, sobretudo em setores mais atingidos pelo impacto
econômico-social da crise do capitalismo e dos sistemas liberais que o
fim da guerra desperta. Digamos que é o encontro entre essa direita
tradicional, que alguns autores chamam de rendição do liberalismo, com
esse fascismo plebeu violento, interpretado por líderes carismáticos. A
junção dos dois cria um tipo de ditadura, a que temos chamado de
ditaduras fascistas, de partido único, xenófobas e racistas, com culto
da violência ilegal e irrestrita, de discursos sobre a restauração da
grandeza da nação doente pelo regresso da força, do retorno aos velhos
impérios, o ultranacionalismo expansionista imperial como solução para o
renascimento da pátria, tal qual a fénix renasce das cinzas.
Esse discurso e essas características do novo regime têm realizações históricas relativamente diferenciadas, de acordo com o peso que, nessa aliança, tem a direita tradicional ou a direita populista. Na Itália, tem um equilíbrio. O regime italiano é um equilíbrio entre o Partido Nacional Fascista e a dinastia bourbônica. Ela vai buscar o Mussolini quando a burguesia italiana se sente ameaçada e o despede quando a Itália começa a perder a guerra. Na Alemanha, há um predomínio claro do Partido Nacional Socialista sobre a burguesia alemã que o apoia. Mas o partido domina o Estado, cria um Estado paralelo. O primeiro franquismo, que vai da vitória na Guerra Civil [Espanhola], em 1939, até 1945, é claramente fascista, de partido único e com um rastro de sangue de 200 mil execuções, uma coisa brutal.
Regimes fascistas paradigmáticos surgem do casamento com parte da direita tradicional
O caso português é diferente. É um acontecimento em que a direita tradicional tem mais peso sobre a populista fascista, interpretada pelo Movimento Nacional-Sindicalista do doutor Rolão Preto [1893-1977]. O peso do autoritarismo conservador da direita tradicional no Estado Novo português é sempre predominante. É uma modalidade de regime fascista, com partido único, com uma polícia política no centro de todo o aparelho repressivo e judicial, com uma milícia fascista chamada Legião Portuguesa, com uma milícia de juventude, com uma organização corporativa do Estado decalcada no Estatuto do Trabalho Nacional do Mussolini e nas leis do corporativismo italiano e com uma retórica imperial colonial. Portanto, eu diria que o regime salazarista é uma modalidade particular de fascismo.
O salazarismo durou até mais do que o próprio Salazar. Como uma ditadura sobreviveu quando a Europa estava toda democratizada?
Havia,
na Europa, três regimes ditatoriais: Portugal, Espanha e Grécia. E caem
todos quase em seguida: Portugal e Grécia em 1974, o Franco morre em
1975 e, em seguida, ocorre a transição democrática na Espanha. Há várias
razões que explicam a durabilidade salazarista. Em primeiro lugar, a
violência: uma ditadura que cortou todas as liberdades fundamentais, que
tinha uma polícia política servida por polícias, tribunais, cadeias e
um aparelho repressivo absolutamente onipresente no cotidiano das
pessoas. Em segundo lugar, o longo controle político do Exército por
parte do regime, que logrou impedir que a resistência social tivesse
tradução militar até a Guerra Colonial. É este conflito, que se inicia
em 1961 e se arrasta até 1974, que coloca os oficiais intermédios como
intérpretes do descontentamento e do cansaço social com a ditadura e a
guerra. Em terceiro lugar, a Igreja Católica, que teve um papel muito
importante na legitimação do regime. Repare que Portugal era um país
rural e a igreja considerava Salazar uma espécie de doação da
providência divina. Finalmente, a criação de um aparelho totalitário do
cotidiano, ou seja, de controle da família, do trabalho, dos lazeres.
Essa conjugação de fatores permitiu ao regime durar, sempre com
contestação social, política, do primeiro ao último ano.
Seu
livro faz um raio X dos diversos fascismos para afirmar o que é
estrutural e essencial ao regime. Nesse contexto, o integralismo
brasileiro foi um fascismo? E Getúlio Vargas um líder fascista?
Do
que eu conheço da realidade brasileira, o integralismo do Plínio
Salgado é um movimento tipicamente fascista. O integralismo português,
não. Era um movimento contrarrevolucionário, monárquico,
restauracionista e de autoritarismo conservador. Mas o brasileiro é um
movimento cujas características são tipicamente fascistas: um
integralismo miliciano, revolucionário, partidário do assalto ao poder. O
regime do Getúlio Vargas é diferente. Ainda que namore com o fascismo, é
sobretudo uma ditadura autoritária populista. Basta ver que Vargas,
quando Roosevelt aperta a pressão para que os países da América Latina
ponham esforço de guerra na Europa, manda o Exército brasileiro competir
ao lado do norte-americano e combater o nazismo e o fascismo na Europa.
Nesse sentido, o peronismo argentino se aproxima mais do regime
fascista, até pela grande influência que a Itália tem na Argentina.
Vargas vai com os norte-americanos quando eles fazem pressão, o Perón,
não.
Nos casos atuais de lideranças de regimes autocratas, quais têm a marca mais acentuada do fascismo paradigmático?
Eu
acho que a Europa do Leste é um caso particular, porque a nova extrema
direita só surge por lá depois da implosão da União Soviética, em 1989. E
é uma extrema direita muito fascista, radical, racista, violenta,
miliciana, que tem bastante força na Hungria, Polônia, Rússia, com
várias organizações neonazistas ou neofascistas. Se considerarmos no
chamado Ocidente, a gênese dessa extrema direita vem toda da nostalgia
do fascismo no pós-guerra. Mas há dois períodos: até os anos 70, essas
organizações de extrema direita são abertamente neofascistas,
nostálgicas do nazismo, racistas, de um antissemitismo que, depois, vai
evoluindo para islamofobia. Proclama uma unidade da Europa branca contra
um welfare étnico, ou seja, o Estado de bem-estar social para
os brancos, com claro repúdio de invasão imigrante vinda da África, da
Ásia ou dos países muçulmanos.
E quando começa a “segunda fase”?
As
coisas passam a mudar nos anos 70, quando começa a declinar o
capitalismo do pós-guerra, da grande rentabilidade dos capitais. Quando
esse modelo entra em crise e começa a evoluir para um novo estado, o
capitalismo neoliberal que vem anunciado pelo governo de [Margaret]
Thatcher, na Inglaterra, e Reagan, nos Estados Unidos. Há uma espécie de
agravamento da crise sistêmica e a extrema direita começa a mudar, a
colher apoio social no desemprego, na instabilidade, no medo. Ela vai
pescar nesse desespero, na incerteza sobre o futuro, como ocorreu no
período entreguerras. Vai se apresentar de gravata, por assim dizer,
tenta parecer um movimento respeitável. Passa a olhar para a
possibilidade de participar da vida parlamentar e política e crescer.
É com a exploração do medo, da incerteza sobre o futuro das pessoas, que a extrema direita cresce
A partir dos anos 80 e sobretudo do início do século 21, esses movimentos têm os olhos postos na conquista ou, pelo menos, na participação no governo. São movimentos que, neste momento, já participam do poder na Itália, nos países nórdicos. E na Hungria há hoje um regime que não tem nada de democrático… A única coisa que o mantêm são eleições, mas altamente condicionadas pelo controle da Justiça, da comunicação social e da liberdade de imprensa por parte do Estado, pela existência de partidos de extrema direita milicianos na própria organização do poder. Portanto, considerar o regime húngaro de Orbán como democracia parlamentar é um esforço, porque não é isso que se passa.
E o caso da Rússia?
A
implosão da União Soviética e, sobretudo, depois daquele período de
crise e de decadência do regime, a substituição do [Boris] Iéltsin pelo
grupo dos oligarcas, tendo como árbitro e dirigente o [Vladimir] Putin,
levou a um regime que eu diria que é uma espécie de sistema neoimperial,
neoczarista. Um regime que pretende restaurar a grandeza da Rússia como
potência imperial, absolutamente autoritário, em que há um pobre
simulacro de pluralismo, toda gente que protesta é presa, não há
liberdade de imprensa. E um imperialismo que tenta resistir à decadência
com a guerra, a agressão à Ucrânia — ainda que, neste caso, no meu
entender, há responsabilidade das duas partes: daquele que, como dizem
os brasileiros, tentou cutucar a onça com vara curta e dos russos, que
responderam de maneira inaceitável, violando a soberania de um país
independente.
É possível imaginar a democracia gerando esses regimes antidemocráticos?
Claro! Se eles ganharem as eleições de governo.
É o caso do Trump, por exemplo?
É
o caso do Trump ou do Bolsonaro, no Brasil. Pode ser o caso da França,
se a Marine Le Pen tiver a vitória nas eleições presidenciais. Isso
acontece. O problema é que as democracias não conseguem se manter sem
regular a economia. Portanto, a primeira linha de defesa da democracia é
a regulação econômica, do movimento de capitais, a defesa do estado
social. Só há base social para o autoritarismo se a democracia não for
capaz de resolver os problemas tremendos que as pessoas têm: habitação,
emprego, precariedade, segurança social. Se as próprias democracias se
deixarem embrulhar na lógica e nas prioridades da acumulação neoliberal,
o que vai acontecer é que serão engolidas. As democracias se defendem
respondendo aos problemas das pessoas, à ansiedade, ao medo, à incerteza
sobre o futuro, porque é com a exploração desse sentimento que a
extrema direita cresce na Europa e no mundo.
* É diretor internacional de jornalismo e correspondente em Londres da TV Cultura e autor de A fórmula da emoção na fotografia de guerra (Edições Sesc).
Fonte: https://quatrocincoum.com.br/noticias/50-anos-da-revolucao-dos-cravos/direita-volver/?utm_source=news-doslivros&utm_medium=email&utm_campaign=newsletter
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