sábado, 13 de abril de 2024

No fim das contas, os outonos são mesmo iguais

 Sérgio Martins, de São Paulo

https://s3.amazonaws.com/uploads.piaui.folha.uol.com.br/wp-content/uploads/2024/04/11084705/Artistas-Nus-1.jpg

Como transgressão ou farsa, a nudez aparece no pop e no rock para deixar alguns recados (com frequência, de que algo mudou)

No dia 11 de abril, data em que comemorou seu 40º aniversário, Junior Lima (que ao lado da irmã, Sandy, formou um dos maiores fenômenos da música pop juvenil do país) lançou Seus Planos. A canção e o clipe trazem à tona uma faceta diferente daquela do bom moço que sempre foi sua marca registrada. Junior é o protagonista de um triângulo amoroso e ensaia momentos de violência, num rompante de ciúmes. Mas o que chama a atenção mesmo – além do single, um pop eletrônico – é a cena em que surge nu, na banheira, assistindo a uma cena de sexo entre os dois outros protagonistas do filme. 

“Tentamos naturalizar esse símbolo para integrar o personagem à cena, mas cientes de que essa passagem causaria furor entre os fãs”, explica João Monteiro, diretor de Seus Planos e que desde 2002 é um dos responsável pelo Criança Esperança, da Rede Globo, além de ter supervisionado vídeos de Pabllo Vittar, Gloria Groove e Urias. “O clipe se propõe a trazer o Junior para um contexto inesperado e ainda não visitado, misturando o pop com o underground que sempre fez parte da essência dele enquanto artista”, prossegue.

O instante ardente, bem como a sua repercussão, foi calculado. Nas suas redes sociais, Junior fez uma enquete com sobre qual trecho do videoclipe os fãs gostariam de assistir antes do lançamento – a tal “cena da banheira” ganhou com certa vantagem e teve suas fotos divulgadas no Instagram. É curioso perceber, no entanto, como o nu ainda é utilizado como uma forma de manifesto pelo universo pop. Ainda mais se for encabeçada por alguém que por muito tempo foi tido como “o certinho”. Mas Freud explica. Ou melhor, Jung tem a definição acertada. “Jung fala muito sobre a questão de persona, onde o músico pode dar vazão naturalmente a outros personagens que a gente não tem no dia a dia. O artista dá margem a uma vivência diferente”, explica Luiz Couto, psicoterapeuta de orientação junguiana.

O especialista aponta outro elemento das teorias de Jung para falar dessa ousadia presente no universo do showbiz. “Aqui se encaixa o arquétipo do puer e senex, que pode ser traduzido como o velho e a criança. O velho tem a ver com as tradições, o que foi estabelecido pela sociedade, ao passo que a criança afronta esses padrões. A nudez de Junior, portanto, poderia ser vista como um questionamento, uma contestação da moral que reprime a sexualidade”, resume.

O rock nasceu sob o signo da rebeldia. O gênero foi forjado no final dos anos 1950 como uma exaltação não apenas da contestação, mas também da sensualidade – “to rock and roll” nada mais é do que uma maneira disfarçada de resumir o ato sexual. Mas o rebolado de Elvis Presley e a petulância dos Rolling Stones eram o máximo de ousadia ao qual o gênero poderia se permitir. O nu como expressão de rebeldia (a tal puer e senex) surgiu somente em 1968, no musical Hair. O final do primeiro ato do espetáculo – cujo cancioneiro era inspirado no rock e na soul music – tinha como clímax apresentar os atores como vieram ao mundo –  sem “cobrir ou mostrar suas vergonhas”, como diria o escrivão Pero Vaz de Caminha.

John Lennon e Yoko Ono foram os primeiros nomes do universo do rock a fazerem uso da nudez como provocação. Two Virgins (1968), gestado depois de uma noite de amor proibido do casal – Cynthia, a mulher de Lennon, estava passando férias na Grécia com o filho do Beatle – trazia uma capa na qual os dois apareciam de frente e de verso como vieram ao mundo. “A gente subiu para o meu quarto e ficou compondo em vez de transar. Quando o sol nasceu, fizemos amor”, declarou Lennon para a imprensa. 

Lennon, óbvio, sabia que o disco tinha um quê de provocação. A EMI, gravadora dos Beatles, concordou em prensar Two Virgins contanto que fosse eximida de responsabilidade pelo lançamento. O disco foi embalado por um papel pardo, que normalmente era associado a material pornográfico, e muitos estabelecimentos se recusaram a colocar a obra em suas prateleiras. Nem adiantou um padre inglês aplaudir a iniciativa de Lennon e Yoko com uma citação do Gênesis, livro da Bíblia. “O homem e a sua mulher estavam nus e não se envergonhavam.” O fato de ser um trabalho experimental, repleto de ruídos, não ajudou a popularizar o conteúdo da noite de amor e música do casal.

Embora tenha esse conteúdo – vá lá – romântico, o projeto de Lennon e Yoko utiliza a nudez como uma forma de contestação. Esse, aliás, é o recurso mais comum no universo do rock – a nudez provoca, ofende e desafia a ordem estabelecida. O cantor Jim Morrison, dos Doors, foi preso sob acusação de sacudir seu pênis para “uma multidão de jovens do sexo feminino”, segundo a polícia, durante um concerto do grupo americano na Flórida no ano de 1969. Vinte e quatro anos depois, os integrantes do quarteto de rock, funk e rap pesados Rage Against the Machine se postaram completamente nus e com fitas adesivas cobrindo suas bocas durante uma apresentação no festival Lollapalooza. O ato fazia parte de um protesto dos roqueiros contra o PMRC, comitê que censurava o conteúdo de letras lançados no país. Em 2010, o clipe de Window Seat, da cantora de soul music Erykah Badu, trazia a moça tirando a roupa aos poucos numa rua de Dallas até ser assassinada a tiros no exato ponto em que o presidente John Kennedy foi alvejado, em 1963. “Eu queria mostrar a América nua e crua”, justificou ela.

Muitas vezes, essa provocação é acompanhada pela galhofa pura e simples. Cada um dos Red Hot Chili Peppers, no início dos anos 1980, tinha o costume de fazer o bis de suas apresentações com uma meia e nada mais (e ela não estava nos pés). Eles relembraram esse recurso em 1999, durante sua performance no festival Woodstock – nada mais justo, visto que o evento era uma suposta celebração da liberalidade hippie. Dois anos depois do recordar é viver dos Chili Peppers, Nick Oliveri, então baixista do Queens of the Stone Age, tirou a roupa durante o show do grupo no Rock in Rio, de 2001. Ganhou voz de prisão assim que desceu no palco. “Todo mundo aparece nu na TV aqui no Carnaval”, defendeu-se. No mesmo festival, Cássia Eller mostrou os seios no meio de sua apresentação.

 

A nudez no rock pode também representar a manifestação da libido. O cantor e multi-instrumentista Prince sempre adorou exibir partes do seu corpo em público. A capa de Lovesexy, de 1988, trazia o músico completamente nu, de pernas cruzadas para não mostrar além do permitido. Mesmo assim, diversas cadeias de lojas dos Estados Unidos se recusaram a expor a capa do álbum. Prince atacaria de novo no Video Music Awards, de 1991, ao utilizar uma calça furada logo no bumbum. No caso do Brasil, poucos chegaram aos pés de Ney Matogrosso. Ele chegava a se trocar no palco durante um de seus shows nos anos 1970 (mas sua nudez era protegida por um biombo) e a capa de seu álbum de 1982 trazia o cantor debaixo d’água com uma tanga a cobrir a genitália. Que foi desvendada no livro Homens (1980), da fotógrafa Vânia Toledo, que o trazia au naturel numa banheira. Explícito, mas de extremo bom gosto.

David Bowie e Madonna, por seu turno, elevaram a nudez a um status artístico. O popstar inglês surgiu nu em pelo em O Homem que Caiu na Terra (1976), do cineasta inglês Nicholas Roeg, onde viveu um extraterrestre bissexual. Oito anos depois, no clipe de China Girl, ele surgiu nu ao lado de seu objeto de adoração, fazendo amor numa praia. O clipe foi impiedosamente censurado. Madonna foi a primeira popstar branca a falar abertamente sobre sexo em suas letras – suas antecessoras nas paradas cantavam temas bobinhos, enquanto as canções mais explícitas eram restristas às afro-americanas como Donna Summer e Patti Labelle. Em 1992, Madonna lançou Sex, álbum de fotografia onde aparecia nua de tudo quanto é jeito – de ser flagrada comendo pizza trajando nada mais do que um casaco de pele aberto, sendo agarrada por trás pelo rapper Vanilla Ice.

De volta ao caso Junior Lima na banheira (dessa vez, sem miojo), sua nudez se assemelha a um rito de passagem. É um recurso mais antigo do que se pensa. David Cassidy, ídolo juvenil, saiu peladão na capa de uma edição da revista Rolling Stone dos anos 1970. Michael Jackson surgiu como veio ao mundo ao lado da então mulher Lisa Marie Presley no vídeo de You Are Not Alone, de 1995. Foi excitante? Hmmm…. Valeu a tentativa. Justin Bieber mostrou mais do que devia – ou queria – num comercial de cuecas, o que levou seu fã-clube à loucura. Aliás, graças a esse comercial, soubemos até que o pênis dele tem nome – chama-se Jerry… E Miley Cyrus, ao se exibir nua em cima de uma bola de ferro no vídeo de Wrecking Ball, exterminou de vez a imagem de menina sapeca do seriado Hannah Montana. Seus Planos, além da nudez, traz a ideia de um triângulo amoroso. Quer dizer, quase isso. “Próximo do fim do clipe, percebemos tanto Junior desaparecendo quanto o outro rapaz pausando a música no rádio do carro, e então voltando a surgir quando a protagonista novamente dá play e segue seu caminho. Deixamos a interpretação aberta, mas basicamente Junior representa lembranças passadas de outro relacionamento, comparações inevitáveis. Aquele famoso ‘e se…’ que nos acompanha quando o fim é abrupto, quando o sentimento é de insistir no inevitável”, explica João Monteiro. E pensar que um dia ele cantou “outono é sempre igual”…

Sérgio Martins

trabalhou nas redações do jornal Notícias Populares e das revistas BIZZ, Época e Veja. Atualmente é editor sênior da revista Billboard Brasil e apresentador do podcast Sonoros, ao lado do produtor musical Dudu Borges

 

Fonte: https://piaui.folha.uol.com.br/no-fim-das-contas-os-outonos-sao-mesmo-iguais/?utm_campaign=a_semana_na_piaui_209&utm_medium=email&utm_source=RD+Station

Nenhum comentário:

Postar um comentário