terça-feira, 30 de janeiro de 2018

Rutger Bregman: “Devemos eliminar os intermediários, dar dinheiro diretamente às pessoas”. Autor de “Utopia para Realistas”



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Rutger Bregman

Autor de "Utopia para Realistas" diz que a inovação tecnológica vai levar-nos a largar "ideias obsoletas" e ter "coragem política" de tentar novas, sem preconceitos e sem 
o "paternalismo da esquerda".

A solução não é dar um peixe a um homem, mas também não faz sentido, ao contrário do que diz o ditado, limitarmo-nos a ensiná-lo a pescar. Também é preciso dar-lhe meios para comprar uma cana de pesca. Na defesa de um rendimento básico incondicional para todos, o historiador holandês Rutger Bregman escreveu “Utopia para realistas” [edição Bertrand], onde elogia o capitalismo mas diz que temos de lhe dar sequência. Com duras críticas à “esquerda contemporânea”, que na sua opinião abusa na dose de “paternalismo”, Bregman diz que ideias como o rendimento básico universal, entre outras (como a semana de trabalho de 15 horas), são “o corolário da social-democracia” e a resposta para o futuro que aí vem. Basta que haja “coragem política” para mudar os “disparates” que existem no Estado Social que temos.

A ideia de um rendimento básico universal e incondicional é antiga mas tem ganho algum mediatismo recentemente. Mas há diferentes modelos: qual é o que propõe no seu livro?
Há várias versões de rendimento universal, algumas que defendo, outras que acho que seriam desastrosas. A minha proposta é de um rendimento básico garantido, que funciona como um “chão” na distribuição de rendimentos, para que ninguém, absolutamente ninguém, viva na pobreza. Neste momento, é a opção mais exequível, mais realista no curto prazo. No fundo, significa que estar vivo sem estar na pobreza torna-se um direito, consagrado no 25º artigo da Declaração Universal dos Direitos do Homem, em vez de ser algo visto como um favor, que é o que acontece na prática.

Existe algo parecido em Portugal e noutros países, o chamado rendimento social de inserção, também conhecido como rendimento mínimo garantido. Mas não deixa de ser condicional, porque pressupõe um contrato de inserção, existe um processo individual, etc. No modelo que defende, a diferença é que seria um rendimento incondicional…
Sim, totalmente incondicional, sem burocracias, sem os processos individuais de que fala. Se olharmos para o Estado Social que temos hoje, o que é que ele faz? Pedimos às pessoas, constantemente, para provarem que estão suficientemente doentes, que estão suficientemente deprimidas, a cada duas semanas têm de se deslocar à segurança social e provar que, “sim, sim, continuo arduamente à procura de trabalho” ou “sim, sim, continuo doente ou deprimido”. Todo este processo cria depressão, cria doença, cria estigma, cria dependência. Está a agravar o problema que era suposto resolver.

Se existisse um rendimento básico, o que aconteceria, então?
Aí estaríamos a dizer às pessoas, a todas as pessoas, que acreditamos na sua responsabilidade e acreditamos que muitas delas podem ter ótimas ideias. A forma como tratamos as pessoas é um fator que ajuda muito a determinar a forma como elas se comportam. Se tratarmos as pessoas de forma degradante, elas vão ficar deprimidas, é claro.

Já esteve num centro de emprego, alguma vez?
Já estive em muitos, especialmente na Holanda. E sabe o que mais me surpreendeu? Foi que as pessoas que lá trabalham são, muitas vezes, os primeiros defensores do rendimento básico, porque eles sabem que o trabalho que fazem – esta ideia de Estado Social — é um disparate. Eles sabem-no, melhor do que ninguém, e também ficam deprimidos com isso. Veem com ótimos olhos um sistema diferente, ainda que isso implique provavelmente que perderiam os empregos.
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Rutger Bregman defende que a burocracia inerente ao Estado Social 
que temos hoje “agrava o problema que é suposto resolver”. 
FOTO: André Carrilho/OBSERVADOR

Voltando um pouco atrás: dizia há pouco que há modelos de rendimento básico com que não concorda. Pode dar exemplos?
Bem, nos Estados Unidos da América há algumas correntes de libertários que defendem que se acabe com o Estado Social, a saúde, a educação e quer-se trocar tudo por um cheque simples. Não defendo isso — acho que o rendimento básico deve ser um suplemento para atingir os objetivos da social-democracia. Na verdade, acho que seria o corolário da social-democracia — e seria barato, simples e avançará se houver vontade política para isso. O capitalismo trouxe-nos progressos inquestionáveis, mas temos de lhe dar sequência fazendo perguntas muito básicas como o que é o crescimento, o que é a produtividade e o que é o trabalho e a remuneração. Continuamos agarrados a noções de trabalho, de crescimento económico, que são dos séculos passados.

Porque é que o rendimento básico incondicional, neste caso o modelo que mais defende — o rendimento básico garantido –, seria uma boa ideia?
Um dos pensamentos cruciais do meu livro é que as pessoas merecem ter a liberdade para tomar as suas próprias decisões e, na minha opinião, um rendimento básico é algo essencial para que isso possa acontecer. Daria a todos a oportunidade para correr riscos, tentar algo novo, iniciar uma empresa, mudar de emprego, mudar-se para outra cidade, cometer erros… A inovação e a criatividade dependem da capacidade para correr riscos.

Há uma imagem que usa, que memorizei, no livro: não devemos dar um peixe a um homem, mas também não faz sentido, ao contrário do que diz o ditado, limitarmo-nos a ensiná-lo a pescar. Também é preciso dar-lhe meios para comprar uma cana de pesca. O que é que lhe garante que, na maior parte dos casos, este rendimento vai ser usado de forma produtiva?
Provas científicas. Vezes sem conta já testámos esta ideia e descobrimos que os verdadeiros entendidos naquilo que é a vida dos pobres são… os pobres. E não pessoas que se auto-intitulam especialistas. É este o grande problema com a esquerda contemporânea. Há muita, muita gente na esquerda que é extraordinariamente paternalista. Acreditam que sabem aquilo que é melhor para as pessoas. Isso é uma visão incrivelmente arrogante, querem ajudar os pobres mas nos seus termos — na realidade, não confiam em quem vota neles. Não devemos dar peixe às pessoas, nem ensiná-las a pescar, talvez elas não queiram nada disso, vamos admitir a possibilidade de que talvez as pessoas saibam melhor do que nós aquilo que querem para a sua vida.

"Há muita, muita gente na esquerda que é extraordinariamente paternalista. Acreditam que sabem aquilo que é melhor para as pessoas. Isso é uma visão incrivelmente arrogante, 
querem ajudar os pobres mas nos seus 
termos -- na realidade, não confiam e
m quem vota neles". 

É muito crítico de alguma esquerda neste aspeto. E que valores normalmente associados à direita podem encontrar-se nas propostas do rendimento básico universal?
Devemos olhar para o rendimento básico garantido como “capital de risco” (venture capital) virado para as pessoas, porque dá asas à criatividade. Em muitas coisas eu tenho visões muito próximas da direita liberal: acredito na liberdade individual, acredito na responsabilidade individual — só que defendo que, então, temos de dar às pessoas alguns meios para poderem fazer escolhas diferentes. Porque está provado que a pobreza tolda o raciocínio: o escritor George Orwell sentiu isso na pele e descreveu, mais tarde, como “a pobreza é a aniquilação do futuro”.

O que é que faz com que o rendimento básico seja uma boa solução tanto para uma favela no Rio de Janeiro como para as nossas sociedades, para mim e para si, em Lisboa ou em Amesterdão?
No imediato, estas propostas são mais promissoras para os países em desenvolvimento. Por uma razão simples. Veja um país como a Índia: têm centenas e centenas de programas anti-pobreza mas a quantidade de dinheiro que realmente chega às pessoas que realmente precisam dele é muito pequena. Devemos eliminar os intermediários, dar o dinheiro diretamente às pessoas, isso é muito mais eficaz.

E nos países desenvolvidos? Na Holanda, em Portugal, que lugar é que estas propostas podem ter?
Na Europa, pelo menos no país em que cresci, a Holanda, não há um problema tão grande de corrupção, mas mesmo assim acredito que o rendimento básico teria potencial para mudar muita coisa. E faria sentido por uma simples razão: porque a pobreza sai-nos caríssima: estamos a gastar milhares de milhões em custos com saúde, taxas de criminalidade mais elevadas, miúdos a não terem sucesso escolar, tudo isso vem da pobreza. É mais barato erradicar a pobreza na origem do que combater os sintomas da pobreza — e não devemos criar um rendimento básico por uma questão de superioridade moral, mas porque também será bom para toda a gente.

Bom para os pobres e para os ricos?
Os ricos também teriam muito a ganhar com o rendimento básico, porque todos ganhamos em viver numa sociedade mais próspera, em que todos podem contribuir e em que não há sem-abrigo na rua. Além disso, temos de olhar para o rendimento básico, pelo menos no meu modelo, em termos líquidos — alguém mais abastado ao receber também iria pagar mais impostos, pelo que esta pode (e deve) ser uma ferramenta de redução de desigualdade. Numa primeira fase, claro, teríamos de financiar esta medida com impostos, não concordo que se deva imprimir dinheiro para dar às pessoas, e o Banco Central Europeu também não será muito adepto dessas soluções.

Mas quanto é que custaria tirar as pessoas da pobreza por estas vias?
Seria muito barato. Basta pensar que no país com a maior taxa de pobreza no mundo desenvolvido — os EUA — um rendimento básico garantido custaria 0,6% do PIB. É algum dinheiro — são cerca de 350 mil milhões de dólares — mas é algo perfeitamente exequível. Comparado com os benefícios, quanto se iria poupar em custos com saúde, com o crime? Há um estudo que estima que o custo da pobreza infantil nos EUA é de mais de 500 mil milhões de dólares. É só fazer as contas…

Certo, mas temos de provar que o custo com o rendimento básico incondicional seria totalmente eficaz ou, pelo menos, muito eficaz, na eliminação dos problemas…
Os dados que temos mostram que seria muito eficaz, mas a impressão intuitiva de muita gente é que se toda a gente recebesse um mínimo muita gente iria deixar de trabalhar e produzir. Claro que, se assim fosse, seria uma muito má ideia, porque o valor do rendimento seria ofuscado pelo aumento dos preços que seria consequência de uma quebra na produção (que faria subir os preços).

Acredita que não seria assim?
Deixe-me responder-lhe da seguinte forma: se perguntarmos a alguém o que fariam, eles próprios, se tivessem um rendimento básico incondicional normalmente a resposta é algo do género: “Sim, claro, tenho ótimas ideias e ambição, iria usar o dinheiro para fins produtivos”. Mas quando se pergunta o que acham que as outras pessoas iriam fazer com o dinheiro, é aí que surge o ceticismo, achar-se que os outros vão esbanjar o dinheiro. Por isso é que os críticos do rendimento básico universal têm de olhar para os dados científicos que existem, e não confiar em intuições ou juízos de valor.

E o que dizem os dados científicos?
Em todos estes países, ao longo da História, sempre que se experimentou, deu bom resultado. No livro Utopia para Realistas descrevo em pormenor o sucesso retumbante que foi um exercício que foi feito numa pequena vila canadiana chamada Dauphin — um programa que não teve sequência e caiu no esquecimento porque o governo mudou, a nível nacional. Não há um único caso de um programa que tenha corrido mal, todos melhoraram a saúde, a vida familiar das pessoas, cortaram drasticamente as taxas de criminalidade. Só é preciso coragem política para discutir estes temas e perceber que é preciso uma nova resposta para um mundo novo, marcado pela inovação tecnológica e os impactos que ela já está a ter.
 
“Os críticos do rendimento básico universal têm de olhar para os dados científicos que existem,
 e não confiar em intuições ou juízos de valor”, defende Rutger Bregman. 
FOTO: André Carrilho/OBSERVADOR

Existem, ou não, empregos que ninguém gosta mas que são necessários, portanto a única forma de alguém os fazer é pagando? Quem os fará se puder receber, em vez disso, um rendimento básico incondicional? Não é realista pensar que a inovação tecnológica vá dispensar todos estes empregos…
Vamos imaginar que trabalha na recolha de lixo. E odeia o seu emprego. Acredito que algumas pessoas que trabalham na recolha de lixo não odeiam o emprego, mas vamos assumir que, no seu caso, odeia este trabalho. Passa a receber um rendimento básico. O que vai fazer? Possivelmente vai dizer: “Sabem que mais, estou disposto a continuar a fazer este trabalho mas terão de pagar-me mais, e dar-me as melhores condições possíveis”. Caso contrário, sairei e tenho sempre a opção de receber o rendimento básico. Isto vai dar melhor posição negocial a quem tem estes trabalhos que são muito difíceis de fazer mas têm um grande valor. Professores, enfermeiros, cuidadores… o trabalho vai, cada vez mais, ser mais ou menos valioso consoante o seu valor para a sociedade e não consoante o ordenado que pagam.

Como?
Pense o seguinte: Imagine que tem um “emprego da treta”, como lhes chamo. Está num escritório a reencaminhar e-mails inúteis, de umas pessoas para outras, a escrever relatórios que nunca ninguém vai ler, como tem uma função pouco importante (e facilmente substituível, um dia destes, por um robô), não terá grande vantagem em exigir melhores condições, porque a função não tem valor para a sociedade. Assim, estes empregos vão perder valor, até à sua progressiva eliminação. Já o trabalho importante vai continuar a ser feito, e vai ser mais bem pago.

E os outros trabalhos?
Temos de refletir sobre a nossa definição de produtividade… Um matemático que trabalhou no Facebook lamentou, recentemente, que “os melhores cérebros da minha geração dedicam os seus dias a encontrar formas mais engenhosas de levar pessoas a clicarem em anúncios publicitários”. E vejo uma coisa parecida no meu país, na Holanda, onde tanta gente com quem cresci trabalha no setor financeiro e no planeamento fiscal — e diz-se que são altamente “produtivos”. Sabe porquê? Não há ditador internacional que não tenha dinheiro na Holanda e há milhares de jovens incrivelmente inteligentes que podiam ter-se tornado grandes matemáticos, ótimos médicos, investigadores na área da saúde, para descobrir a cura para o cancro, mas o que fazem? Estão a desperdiçar o tempo a ajudar os ricos e os ditadores a fugir aos impostos.

Professores, enfermeiros, cuidadores... o trabalho vai, 
cada vez mais, ser mais ou menos valioso consoante o 
seu valor para a sociedade e não consoante 
o ordenado que pagam. 

Como é que o rendimento básico ajudaria em matérias como o meio-ambiente e as alterações climáticas, ou nas taxas de natalidade baixas e nos desafios demográficos?
Sabemos que se dermos mais flexibilidade às mulheres e às famílias, isso leva a um aumento das taxas de natalidade. E o rendimento básico seria, também, de certa forma, o reconhecimento do trabalho doméstico como algo muito valioso que não é pago e foi, ao longo da História, feito sobretudo pelas mulheres. Quanto ao meio-ambiente, acredito que a par do rendimento básico viriam semanas de trabalho mais curtas, de 15 horas, como previu John Maynard Keynes, o que seria não só ótimo para as famílias como para a pegada ecológica, como já foi estudado. O sistema que temos atualmente, além de contribuir para a insatisfação com a vida, estimula o consumismo desenfreado, o que é péssimo para o ambiente, e o que o rendimento básico iria encorajar era comprar menos coisas de que não precisamos.

Nota um aumento do interesse por este tema do rendimento básico, nos últimos anos?
Só para terminar, e para ser claro: não acho que o rendimento básico seja a panaceia que fará com que todos estes problemas acabem. Mas acho que nos ajudaria a mover no sentido de uma sociedade muito diferente, onde as pessoas se dedicam a fazer trabalho com mais significado. Mas, sim, quando comecei a escrever o livro, em 2014, o tema do rendimento básico estava um pouco morto. Agora está em todo o lado, na Finlândia estão a fazer experiências, no Canadá, na Escócia também já anunciaram alguns programas-piloto, estão a fazer uma experiência enorme no Quénia. Até em Silicon Valley há muita gente interessada neste tema.

Por falar em Silicon Valley, uma das figuras que tem aparecido a defender a ideia de um rendimento universal é Mark Zuckerberg, o multimilionário fundador do Facebook. É um apoio bem-vindo?
Se ajuda a dar à ideia mais notoriedade, ótimo, mas desconfio muito das verdadeiras intenções destes tipos. Se olharmos para empresas como o Facebook e o Google, estas não são empresas que tenham como objetivo fazer-nos mais felizes. Estão apenas a tentar obter a nossa atenção, e são muito bons nisso. Há montanhas de estudos que mostram que as pessoas que apagam a conta do Facebook se tornam, instantaneamente, mais felizes. Então porque é que não o fazem, se as provas são inquestionáveis? Será pela mesma razão por que não deixam de fumar? Há alguma viciação num modelo económico que nos está a deixar doentes. E se Zuckerberg quer mesmo ajudar, talvez uma boa forma de começar é a empresa pagar todos os impostos que seria justo que pagasse.

 
 “Utopia para Realistas” é uma edição da Bertrand Editora, a partir de um livro cuja publicação 
foi financiada por um projeto de crowd-funding e que desencadeou um movimento nacional de 
apoio ao rendimento básico incondicional, trazendo o tema
 à discussão um pouco por toda a Europa.


"Um dos jovens pensadores mais promissores da atualidade"

Historiador, jornalista, autor, Rutger Bregman nasceu em 1988 e é “um dos jovens pensadores mais promissores da atualidade”, na opinião da instituição Ted Talks (o autor tem uma Ted Talk que esteve no Top 10 de 2017 e que pode ouvir nesta ligação). Publicou quatro livros sobre história, filosofia e economia. Em 2013 ganhou o prémio Liberales (Bélgica) para o melhor livro de não-ficção do ano e foi nomeado duas vezes para o European Press Prize pelo seu trabalho jornalístico para a plataforma The Correspondent. Além de defender propostas como o rendimento básico incondicional, tem estudado ideias como as fronteiras abertas e a semana de trabalho de 15 horas, que também são analisadas nesta obra.
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Reportagem por  Edgar Caetano

segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

As novas formas de coabitação na perspectiva ética e espiritual


Leonardo Boff*
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Ao lado das famílias-matrimônio que se constituem no marco jurídico-social e sacramental, mais e mais surgem as famílias-parceria (coabitações e uniões livres), que se formam consensualmente fora do marco tradicional e perduram enquanto houver a parceria, dando origem à família consensual não conjugal.

Crescem no Brasil e no mundo todo as uniões entre homoafetivos, que lutam pela constituição de um quadro jurídico que lhes garanta estabilidade e reconhecimento social.

Não é lícito emitir um juízo ético sobre essas formas de coabitação sem antes entender o fenômeno. Concretamente: como conceituar a família face às várias formas como ela está se estruturando nos dias atuais?

Marco Antônio Fetter, criador da Universidade da Família, assim a define: “a família é um conjunto de pessoas com objetivos comuns e com laços e vínculos afetivos fortes, cada uma delas com papel definido, onde naturalmente aparecem os papéis de pai, de mãe, de filhos e de irmãos”.

Transformação maior ocorreu na família com a introdução dos preservativos e dos anticoncepcionais, hoje incorporados à cultura como algo normal, ajudando a evitar as doenças sexualmente transmissíveis. Com isso, a sexualidade ficou separada da procriação e do amor estável.

Mais e mais a sexualidade, bem como o matrimônio, é vista como chance de realização pessoal, incluindo ou não a procriação. A sexualidade conjugal ganha mais intimidade e espontaneidade, pois, pelos meios contraceptivos e pelo planejamento familiar, fica liberada do imprevisto de uma gravidez não desejada. Os filhos são queridos e decididos de comum acordo.

A ênfase na sexualidade como realização pessoal propiciou o surgimento de formas de coabitação que não são estritamente matrimoniais. Expressão disso são as uniões consensuais e livres, sem outro compromisso que a mútua realização dos parceiros ou a coabitação de homoafetivos.

Tais práticas, por novas que sejam, devem incluir também uma perspectiva ética e espiritual. Importa zelar para que sejam expressão de amor e de mútua confiança. Se houver amor, para uma leitura cristã do fenômeno, tem a ver com Deus, pois Deus é amor (1 Jo 4 - 12.16). Então, não cabem preconceitos e discriminações. Antes, cumpre ter respeito e abertura para entender tais fatos e colocá-los também diante de Deus. Se as pessoas comprometidas assim o fizerem e assumirem a relação com responsabilidade, não se pode negar a ela relevância religiosa e espiritual. Cria-se uma atmosfera que ajuda a superar a tentação da promiscuidade e reforça-se a estabilidade, diminuindo os preconceitos sociais.

Se há sexo sem procriação, pode haver procriação sem sexo com a procriação in vitro, a inseminação artificial e o “útero de aluguel”. A questão é polêmica em termos éticos e espirituais, e sobre isso parece não haver consenso.

A posição oficial católica tende a uma visão naturista, exigindo para a procriação a relação sexual dos esposos. O ser humano tem direito de nascer humanamente de um pai e de uma mãe que em seu amor o desejaram. Se, por qualquer problema, recorre-se a uma intervenção técnica, nunca pode-se perder a ambiência humana e o reto propósito ético.

O filho que daí procede deve poder ter nome e sobrenome e ser recebido socialmente. A identidade social, nestes casos, é mais importante, antropologicamente, que a identidade biológica. É importante que a criança seja inserida num ambiente familiar para que, em seu processo de individuação, possa realizar o complexo de Electra em relação à mãe ou o de Édipo em relação ao pai de forma bem-sucedida. Assim se evitam danos psicológicos.

Deve-se sempre entender a vida como a culminância da cosmogênese e o maior dom do Criador.
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* Teólogo. Escritor. 

Sexo no blockchain


Luiz Felipe Pondé*
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O tema assédio está na moda. Entre os extremos, a vida segue seu curso, às vezes, dando a impressão de que poderá se tornar irrespirável em algum momento.

Num lado extremo dessa realidade das relações sexuais, homens violentos (ou mulheres violentas, em bastante menor número) que tornam a vida no trabalho ou nos espaços de lazer um inferno para suas vítimas. No outro extremo, o sentimento de risco (real) que muitos homens sentem de que a simples demonstração de desejo por uma mulher poderá ser tachada de assédio.

Ou, pior, de que, mesmo tendo tido seu consentimento, ela poderá, posteriormente, dizer que o "retirou", ou que o cara mentiu sobre ela ter dado o consentimento, ou que a entendeu errado e que, portanto, o suposto "date" foi estupro.

É justamente na área privada do consentimento que residem algumas das paranoias contemporâneas que ameaçam transformar as relações cotidianas entre homens e mulheres num tédio contínuo preenchido por pessoas civilizadas, limpinhas e imóveis. Mas, como tudo mais no mundo contemporâneo, principalmente em se tratando de relações humanas e serviços, o espírito do Vale do Silício oferece uma solução.

Os holandeses criaram um aplicativo chamado Legal Fling, que visa garantir que pessoas (principalmente, homens) se defendam da acusação de assédio ou estupro quando houve consentimento prévio para o ato sexual ou a abordagem.

A expressão em inglês "fling" é ambivalente. Entre o substantivo, que nos remete à ideia de um momento de diversão, gostoso, e o verbo, que pode significar um arremesso violento de algo, ou seja, algum tipo de ato com risco de violência, reside a realidade ambivalente do tema.

"Legal fling" seria, portanto, essa ambivalência tornada "legítima", levando essa arriscada ambivalência para o universo "garantido" pelo novo oráculo, a tecnologia blockchain (base de registro que funciona como prova de um acordo ou transação). Será verdade um aplicativo assim?

Nem todos concordam que o aplicativo ofereça de fato a segurança absoluta contra acusações de que consentimentos supostamente dados se transformem em acusações supostamente falsas. O "supostamente" aqui é essencial.

Voltamos ao caráter privado do tema. É difícil saber o que acontece entre quatro paredes. O combate à violência sexual tem razão em se preocupar com os abusos em geral. A crítica feita à tentativa de judicializar as relações entre homem e mulher também tem razão quando aponta a cultura da paranoia como fato dado no mundo presente.

É possível um "meio-termo" ou "bom senso" nesse assunto? Não creio. O mundo vai, pouco a pouco, sucumbindo à ambivalência criada pela modernização, na sua contínua tentativa de organizar e limpar tudo.

Zygmunt Bauman (1925-2017) acertou em cheio no seu "Modernidade e Ambivalência" ao apontar para esse caráter de "jardineiro" que o Estado moderno (e a sociedade como um todo) tem em querer fazer do mundo um "jardim do bem".

O aplicativo funciona basicamente assim: você preenche um cadastro onde afirma aceitar ou não sair e fazer sexo com fulano, depois detalha o que gosta, tipo, sei lá, sexo anal, no carro, oral, se gosta ou não de apanhar, se gosta ou não de ser tratada ou tratado de forma humilhante, se gosta de ser chamado ou chamada por termos como "cachorra", "vadia", "filho da puta" e por aí vai.

Sei. Pensar numa lista assim parece ridículo. Mas, se você tiver como princípio de entendimento do mundo contemporâneo o fato de que caminhamos para um contrato social baseado no ridículo como forma de vínculo, não estranhará tanto assim um aplicativo como esse.

O aplicativo lançará então esse "contrato" numa plataforma blockchain e, portanto, você não terá como impedir que a "humanidade em cadeia" tenha ciência de que, sim, você gosta de apanhar no sexo ou que você, sim, aceitou ser amante do seu chefe, quem sabe, em troca de uma promoção no trabalho.

O que salvaguardará juridicamente a legitimidade do ato sexual em questão será de uma ordem análoga à de uma moeda virtual, como o bitcoin. Neste caso, a "moeda" é a exposição pública da intimidade, em nome da segurança de cada cidadão envolvido em atos sexuais.
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*  Filósofo, escritor e ensaísta, pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de Tel Aviv, discute temas como comportamento, religião, ciência.
Fonte:  http://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2018/01/1954002-sexo-no-blockchain.shtml
Imagem da Internet

domingo, 28 de janeiro de 2018

Boaventura: Mensagem aos democratas brasileiros


Boaventura de Sousa Santos*

Que fazer? A democracia brasileira está em perigo, e só as forças políticas de esquerda e de centro-esquerda a podem salvar. Mas só podem ter êxito nesta exigente tarefa caso se unam.

Dirijo-me aos democratas brasileiros porque só eles podem estar interessados no teor desta mensagem. Vivemos um tempo de emoções fortes. Para alguém, como eu e tantos outros que nestes anos acompanhamos as lutas e iniciativas de todos os brasileiros no sentido de consolidar e aprofundar a democracia brasileira e contribuir para uma sociedade mais justa e menos racista e menos preconceituosa, este não é um momento de júbilo. Para alguém, como eu e tantos outros que nas últimas décadas se dedicaram a estudar o sistema judicial brasileiro e a promover uma cultura de independência democrática e de responsabilidade social entre os magistrados e os jovens estudantes de direito, este é um momento de grande frustração. Para alguém, como eu e tantos outros que estiveram atentos aos objetivos das forças reacionárias brasileiras e do imperialismo norte-americano no sentido de voltarem a controlar os destinos do país, como sempre fizeram mas pensaram que desta vez as forças populares e democratas tinham prevalecido sobre eles, este é um momento de algum desalento.

As emoções fortes são preciosas se forem parte da razão quente que nos impele a continuar, se a indignação, longe de nos fazer desistir, reforçar o inconformismo e municiar a resistência, se a raiva ante sonhos injustamente destroçados não liquidar a vontade de sonhar. É com estes pressupostos que me dirijo a vós. Uma palavra de análise e outra de princípios da ação.

Porque estamos aqui? Este não é lugar nem o momento para analisar os últimos quinze anos da história do Brasil. Concentro-me nos últimos tempos. A grande maioria dos brasileiros saudou o surgimento da operação Lava Jato como um instrumento que contribuiria para fortalecer a democracia brasileira pela via da luta contra a corrupção. No entanto, em face das chocantes irregularidades processuais e da grosseira seletividade das investigações, cedo nos demos conta de que não se tratava disso mas antes de liquidar, pela via judicial, não só as conquistas sociais da última década como também as forças políticas que as tornaram possíveis. Acontece que as classes dominantes perdem frequentemente em lucidez o que ganham em arrogância.

A destituição de Dilma Rousseff, a Presidente que foi talvez o Presidente mais honesto da história do Brasil, foi o sinal que a arrogância era o outro lado da quase desesperada impaciência em liquidar o passado recente. Foi tudo tão grotescamente óbvio que os brasileiros conseguiram afastar momentaneamente a cortina de fumo do monopólio mediático. O sinal mais visível da sua reação foi o modo como se entusiasmaram com a campanha pelo direito do ex-Presidente Lula da Silva a ser candidato às eleições de 2018, um entusiasmo que contagiou mesmo aqueles que não votariam nele, caso ele fosse candidato. Tratou-se pois de um exercício de democracia de alta intensidade.

Temos, no entanto, de convir que, da perspectiva das forças conservadoras e do imperialismo norte-americano, a vitória deste movimento popular era algo inaceitável. Dada a popularidade de Lula da Silva, era bem possível que ganhasse as eleições, caso fosse candidato. Isso significaria que o processo de contra-reforma que tinha sido iniciado com a destituição de Dilma Rousseff e a condução política da Lava Jato tinha sido em vão. Todo o investimento político, financeiro e mediático teria sido desperdiçado, todos os ganhos econômicos já obtidos postos em perigo ou perdidos. Do ponto de vista destas forças, Lula da Silva não poderia voltar ao poder. Se o Judiciário não tivesse cumprido a sua função, talvez Lula da Silva viesse a ser vítima de um acidente de aviação, ou algo semelhante. Mas o investimento imperial no Judiciário (muito maior do que se pode imaginar) permitiu que não se chegasse a tais extremos.

Que fazer? A democracia brasileira está em perigo, e só as forças políticas de esquerda e de centro-esquerda a podem salvar. Para muitos, talvez seja triste constatar que neste momento não é possível confiar nas forças de direita para colaborar na defesa da democracia. Mas esta é a verdade. Não excluo que haja grupos de direita que apenas se revejam nos modos democráticos de lutar pelo poder. Apesar disso, não estão dispostos a colaborar genuinamente com as forças de esquerda. Por quê? Porque se vêem como parte de uma elite que sempre governou o país e que ainda não se curou da ferida caótica que os governos lulistas lhe infligiram, uma ferida profunda que advém do facto de um grupo social estranho à elite ter ousado governar o país, e ainda por cima ter cometido o grave erro (e foi realmente grave) de querer governar como se fosse elite.

Neste momento, a sobrevivência da democracia brasileira está nas mãos da esquerda e do centro-esquerda. Só podem ter êxito nesta exigente tarefa se se unirem. São diversas as forças de esquerda e a diversidade deve ser saudada. Acresce que uma delas, o PT, sofre do desgaste da governação, um desgaste que foi omitido durante a campanha pelo direito de Lula a ser candidato. Mas à medida que entrarmos no período pós-Lula (por mais que custe a muitos), o desgaste cobrará o seu preço e a melhor forma de o estabelecer democraticamente é através de um regresso às bases e de uma discussão interna que leve a mudanças de fundo. Continuar a evitar essa discussão sob o pretexto do apoio unitário a um outro candidato é um convite ao desastre. O patrimônio simbólico e histórico de Lula saiu intacto das mãos dos justiceiros de Curitiba & Co. É um patrimônio a preservar para o futuro. Seria um erro desperdiçá-lo, instrumentalizando-o para indicar novos candidatos. Uma coisa é o candidato Lula, outra, muito diferente, são os candidatos de Lula. Lula equivocou-se muitas vezes, e as nomeações para o Supremo Tribunal Federal aí estão a mostrá-lo.

A unidade das forças de esquerda deve ser pragmática, mas feita com princípios e compromissos detalhados. Pragmática, porque o que está em causa é algo básico: a sobrevivência da democracia. Mas com princípios e compromissos, pois o tempo dos cheques em branco causou muito mal ao país em todos estes anos. Sei que, para algumas forças, a política de classe deve ser privilegiada, enquanto para outras, as políticas de inclusão devem ser mais amplas e diversas. A verdade é que a sociedade brasileira é uma sociedade capitalista, racista e sexista. E é extremamente desigual e violenta. Entre 2012 e 2016 foram assassinadas mais pessoas no Brasil do que na Síria (279.000/256.000), apesar de este último país estar em guerra e o Brasil estar em “paz”. A esquerda que pensar que só existe política de classe está equivocada, a que pensar que não há política de classe está desarmada.

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* Boaventura de Sousa Santos nasceu em Coimbra, 15 de Novembro de 1940. É doutor em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale (1973), além de professor catedrático jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e distinguished legal scholar da Universidade de Wisconsin-Madison. Foi também global legal scholar da Universidade de Warwick e professor visitante do Birkbeck College da Universidade de Londres. Seu livro mais recente é A difícil democracia: reinventar as esquerdas (Boitempo, 2016). Pela Boitempo, publicou também Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social (2007). Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente.
Fonte:  https://blogdaboitempo.com.br/2018/01/26/boaventura-mensagem-aos-democratas-brasileiros/

sábado, 27 de janeiro de 2018

As virgens loucas

 Lya Luft*
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As virgens loucas do Novo Testamento - não preciso verificar e citar ao pé da letra porque aqui só me interessa a metáfora - não cuidaram do azeite de suas lamparinas e sofreram algum castigo (talvez o noivo que escolheria uma delas se perdesse na escuridão, deixando-as mais loucas ainda). 

Mas gosto da expressão, da loucura, do quanto reflete a nossa condição atual, o tsunami de confusões, ameaças, protestos, coisas honradas e outras distorcidas, nem tantas tão dignas. 

O chamado povo brasileiro, que alguns qualificam de preguiçoso, desatento, conformado, eu o vejo como heroico, honrado, sacrificado, em parte desinformado e por isso iludido. É o meu povo. Há cinco ou seis gerações, minha família vive aqui, ajudou com sacrifício a construir esse gigante de momento tão atrapalhado. 

Quem somos? O que sabemos? O que queremos? Oscilamos entre os pregadores da esculhambação, os oradores complicados que ninguém entende, os gritalhões adolescentes eternos e irresponsáveis. Mas, de repente, vejam só: num tribunal de desembargadores aqui, em Porto Alegre, minha amadíssima cidade adotiva (Gramado é a outra, sendo Santa Cruz meu berço), magistrados relativamente jovens, preparadíssimos mas não metidos a eruditos, sem rasgados falsos elogios mútuos, começam a botar as coisas em seus devidos lugares e a apresentar a verdade - devidos, porque é justo, porque é questão de justiça. Não há política nem politicagem, não há exibicionismo de erudição jurídica, não há nada palavroso nem olhares fulminantes ou peitos estufados. 

Apenas, com a simplicidade de quem de verdade sabe e sabe que está com a verdade, fizeram uma faxina moral e conceitual nas nossas cabeças. Isto é, de quem quis ou soube escutar. 

Um velho professor com quem muitíssimo aprendi sempre me dizia: "Só quem sabe o mais consegue dizer com clareza e verdade o menos". De modo que, assim, aprendi então que o caminho da sabedoria é também o da simplicidade, sobre as calçadas da verdade. 

Difícil, sim. Na vida pessoal, mais ainda na vida pública. Não quero nenhum imitador de Cristo populista, não quero incitação à desobediência, não quero irresponsabilidade nem borbulhas de champanhe francês atrás dos bastidores enquanto nós, o povo brasileiro, trabalhamos até o fim para pagar contas e impostos, morremos nas filas, no chão dos hospitais, na pobreza e falta de higiene nos nossos barracos, porque nem esgoto decente nos deram, muito menos escola boa, e próxima. 

Quero, sobretudo, paz. Decência. Honradez. Alguma liderança de cara e mãos limpas, que nos dê esperança de não estarmos nos últimos lugares em quase todas as avaliações globais: infraestrutura, educação, saúde, Previdência, orgulho natural disto que somos. 

Deus nos ajude.
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* Escritora. Colunista da ZH.
Fonte:  http://flipzh.clicrbs.com.br/jornal-digital/pub/gruporbs/acessivel/materia.jsp?cd=9ea06a8d8fab507a3061e3b60382bc96
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sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

“Guru é como o WAZE”

Psicólogo paulistano conta como deixou a vida mundana, virou líder de um retiro de meditação e ioga na Índia e se tornou guia espiritual de celebridades

Quando estava prestes a comple­tar 33 anos, o psicólogo paulistano Jan­derson Fernandes de Oliveira foi sur­preendido por uma aparição: um guru o convocava para ir até um dos muitos retiros de meditação e ioga de Rishikesh, na Índia, cidade célebre por ter recebido os Beatles, em 1968. Ele foi, encontrou-­se, dessa vez em carne e osso, com o guru que apareceu em sua visão, tornou-se guia espiritual e, em 2002, passou a se chamar Sri Prem Baba, o que, traduzido do sânscrito, significa “pai de amor”. Hoje, aos 52 anos, tem mais de 550 000 seguidores somados no Instagram, no Facebook e no YouTube — nessa última rede, há vídeo com mais de 600 000 visualizações. O centro de meditação e ioga que ele agora comanda em Rishikesh já recebeu mais de 10 000 visitantes. Sua fama ultrapassa fronteiras e seus adeptos vão de celebridades como Will Smith, Alessandra Ambrosio e Reynaldo Gianecchini a políticos como João Doria, Marconi Perillo e integrantes de movimentos como o Agora!, do qual Luciano Huck faz parte. Prem Baba falou a VEJA em seu retiro mantido em São Paulo, um dia antes de embarcar para sua viagem anual de quatro meses à Índia.

Um movimento espiritual sempre precisa ter um líder? Não necessariamente. Há grupos de pessoas com diferentes necessidades. Algumas vão encontrar o caminho do autoconhecimento por elas mesmas. Outras vão precisar de um guia. Eu precisei.

Por que as pessoas buscam gurus? Vejo mais as pessoas buscando um caminho do que um guru. Hoje, no­ta-se uma ânsia maior de encontrar um propósito para justificar a própria existência, principalmente entre os mais jovens. Há uma mudança de cultura que tem feito o processo de autoconhecimento chegar com naturalidade à vida de uma pessoa, sem a necessidade de ser precedido por uma crise interna ou de saúde. Mas chega um momento em que essa busca se torna árida. É como andar em uma cidade desconhecida sem GPS, sem Waze. E um guia, como eu, é um GPS, um Waze, que pode indicar caminhos por já ter percorrido boa parte deles.

Essa é a principal razão que leva as pessoas a buscá-lo? Há três razões principais. A primeira é o propósito. As pessoas estão perdidas e não sabem por que acordam de manhã. E aí estou falando de gente com um relativo sucesso no mundo, mas que carrega uma angústia que não sabe explicar. A segunda é o relacionamento. Muita gente vem a mim em busca de clareza para saber como se relacionar com o outro de maneira construtiva, não egoísta. E há ainda os que vêm em busca de um mestre espiritual porque querem desenvolver a espiritualidade.

Como surgiu a ideia de ser guru espiritual? Nasci com uma tremenda curiosidade sobre as questões mais profundas da vida. Com 7 anos, eu perguntava à minha mãe: “Quem criou o mundo?”. Ela dizia: “Menino, não pense nisso, senão você vai ficar louco”. Conforme fui me desenvolvendo, notei que o ser humano sofre demais. As pessoas brigam muito, estão sempre tentando provar para o outro seu ponto de vista. Há uma competição contínua. Em dado momento, entendi que meu objetivo era encontrar respostas para esse sofrimento. Comecei a fazer ioga aos 13 anos, virei vegetariano. Aí me dediquei a estudar. Primeiro, por meio de religiões e escolas de autoconhecimento. Depois, pela ciência. Estudei física, matemática, mas nada disso era suficiente. Recorri à psicologia e me formei psicólogo, seguidor de Carl Jung. Eu era relativamente bem-sucedido, dava palestras, workshops, clinicava, mas ainda sentia que não havia encontrado meu caminho. Então recebi um chamado e decidi ir para a Índia. Foi aí que tudo fez sentido.

Como foi isso? Eu estava próximo de completar 33 anos e vivia um momento de muito ceticismo. Não acreditava em nada e achava as questões espirituais uma grande bobagem, apenas criações da mente humana. Mas vivia uma crise existencial tão profunda, uma depressão tão terrível, que fiz uma oração: pedi que meu caminho se revelasse, pois eu já não sabia mais o que fazer. Foi aí que tive uma visão de um velho de barbas brancas, ao pé do Himalaia, que dizia: “Você vai completar 33 anos, venha para a Índia, em Rishikesh”. Então me lembrei que esse mesmo velho, que veio a ser o Maharaj Ji, meu mestre, já havia aparecido em meus pensamentos quando eu tinha 13 anos, durante uma aula de ioga, dizendo a mesma mensagem. Mas isso havia desaparecido da minha cabeça. Com a segunda mensagem, não tive dúvida e fui. Estava prestes a me casar e sugeri que a lua de mel fosse na Índia.

E como o senhor se tornou um guru? Não foi de imediato. Na primeira vez que fui, em 1999, não fiquei, pois havia acabado de me casar. Mas foi tão poderoso meu encontro com o Maharaj Ji, em Rishikesh, que tive a certeza de que aquele era o meu caminho. Voltei à Índia no ano seguinte e em todos os outros. E, em 2002, fui reconhecido pelo Maharaj Ji como mestre da linhagem Sachcha. Então deixei de ser Janderson e me tornei Sri Prem Baba. Em 2011, com a passagem do Maharaj (ele evita a palavra “morte”), assumi seus trabalhos em Rishikesh.

O senhor continua casado? Eu me separei. Minha mulher se tornou minha amiga, e minha energia foi se direcionando para o trabalho espiritual, e aí não sobra energia para mais nada. Tornei-me celibatário.

O sexo é incompatível com a espiritualidade? Não. Tenho, inclusive, ensinado os caminhos do sexo tântrico, para levar a meditação para a relação sexual. Dou valor à sexualidade dentro do caminho espiritual. Mas, conforme a consciência vai se expandindo, realmente a energia vai sendo direcionada para outro lado. É como uma criança que ganha uma bicicleta. No início, não larga o presente. Depois que brincou o suficiente, já não liga mais para ele. Não tem mais aquele apego, aquela dependência. É nesse sentido que eu vejo a sexualidade. Mas quero deixar claro que isso não acontece com todos. Apenas com algumas pessoas, a minoria, eu diria.

As religiões falharam em promover autoconhecimento e espiritualidade? Sem dúvida. É claro que há grupos dentro das religiões que ainda mantêm alguma conexão com o espiritual. A cabala, no judaísmo, e o sufismo, no islamismo, são alguns exemplos. Há cristãos sinceros que vivem o ensinamento original do Cristo. Mas são poucos. De modo geral, percebo que houve uma distorção da trilha proposta. É comum que isso aconteça. Quando o mestre não está mais presente para guiar, o caminho muitas vezes se perde.

Já houve grupos que propagaram suas ideias de forma deturpada? Até agora, não. Mas sei que isso pode acontecer. Ao mesmo tempo, hoje nós temos mais condições de proteger o discurso. Quem quer conhecer nosso trabalho pega um livro, um vídeo, acessa o site. Está tudo ali, na internet. Procuro ser o mais claro possível, falo de maneira simples, objetiva, para não criar dúvidas. E sempre tomo o cuidado de evocar a autorresponsabilidade, propondo que cada um ande com as próprias pernas. Não digo a ninguém que faça o que eu falo, mas sim que ouça a si mesmo. Não há doutrina. O trabalho do mestre espiritual é acordar a intuição do indivíduo.

Celebridades como Reynaldo Gianecchini, Alessandra Ambrosio e Juliana Paes são seus seguidores. Por que o senhor caiu no gosto dos artistas? Isso começou no início de 2013, quando percebi que tinha de sair para a rua, aumentar nosso alcance. A primeira atitude que tive foi me organizar e criar um movimento, chamado Awaken Love. No dia de sua inauguração, em Fortaleza, no Beach Park, um amigo convidou alguns artistas (estavam presentes Juliana Paes, Astrid Fontenelle, Marina Ruy Barbosa, entre outros). A partir daí, foi um desdobramento natural. Um falou para o outro. Fizemos em Fortaleza porque, naquele momento, ali vivia a pessoa que estava podendo nos patrocinar (o empresário João Gentil, dono do Beach Park, é um dos grandes doadores do Awaken Love).

Há muitos políticos que vão aos seus retiros? Um ou outro. Mais os jovens, em especial esses grupos de jovens lideranças que estão surgindo. Eles estão bem próximos de mim. Acredito que muitas pessoas que partilham comigo esse trabalho de desvendar o propósito estão se reconhecendo como lideranças políticas e decidiram entrar nesse mundo, como os jovens do Agora!. E assumi a função de empoderá-los. Luciano Huck aposta nesses movimentos, mas nunca me encontrei com ele.

Todos os seus cursos e retiros são pagos (um curso de três dias custa em torno de 1 500 reais, com alimentação e hospedagem). A renda interfere na busca por espiritualidade? Tenho feito um esforço para popularizar o autoconhecimento e fazer com que a renda não seja um obstáculo. Criamos conteúdo on-line, o livro Propósito tem uma versão mais barata, a 15 reais, tentamos estar em todas as mídias. Mas há também o ditado: “Quando o discípulo está pronto, o mestre aparece”. Eu mesmo, quando queria ir para a Índia, em uma das ocasiões, fiquei sem dinheiro. Fiz uma oração sincera ao universo, focando o Maharaj. No dia seguinte, uma pessoa veio e me deu a viagem de presente. Disse que sonhou comigo e sentiu que tinha de me dar esse presente. Dei uma grande gargalhada. E olhe que naquela época eu nem era o Prem Baba, era só o Janderson.

Como o senhor se mantém? Por meio de doações e cursos. Muito desse dinheiro se destina a alimentar a obra. Algumas palestras, eu dou de graça. Em outras, faz parte do esquema de organização do evento pagar aos palestrantes, e o dinheiro é direcionado para o movimento. Há também subsídio em passagens, e, às vezes, quando não pagam cachê, pagam passagens e hotel. Isso eu exijo, senão não vou. Não dá. É o mínimo.

Qual objetivo o senhor ainda não alcançou? Tornar o autoconhecimento uma política pública. Tenho me esforçado muito para isso, pois só assim ele vai acontecer em escala. E um dos melhores caminhos para iniciar esse processo é no ensino fundamental, na disciplina que chamamos de desenvolvimento das habilidades socioemocionais, que vai constar da base nacional curricular comum a partir de 2019. Com isso, a criança poderá desde cedo aprender a gerenciar a emoção, meditar, encontrar dentro dela os recursos para lidar com as dificuldades da vida.

O senhor acha que o currículo incluiu a disciplina por sua causa? Penso que a própria criação dessa disciplina na base curricular é fruto de nosso trabalho, já que nos reunimos com algumas pessoas que estavam elaborando o documento. Então, considero que estou influenciando de alguma maneira.
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Foto:  (Antonio Milena/VEJA)
Publicado em VEJA de 31 de janeiro de 2017, edição nº 2567
Fonte:  https://veja.abril.com.br/revista-veja/guru-e-como-o-waze/

Meu amigo cobot

 Juremir Machado da Silva*
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Em 2017, entrevistei, em Paris, Bruno Latour. Ele é um dos mais famosos filósofos da ciência da atualidade. Um entusiasta da revolução tecnológica. Criou uma teoria muito citada chamada “ator-rede”, que diz mais ou menos o seguinte: tudo se relaciona. No fundo, é uma variante da teoria da complexidade de Edgar Morin. Na entrevista, fiz o papel de pessimista sobre o futuro da humanidade. Em que nós, homens, vamos trabalhar se a automação vai fazer tudo por nós. Latour riu. Sugeriu que ficaremos livres para trabalhos mais criativos. Será?

Falei-lhe do desaparecimento de caixas de supermercado. Ele sorriu como quem diz não se perderá nada, será uma libertação. O problema é que essa atividade enfadonha sustenta milhões de famílias. Sobre a passagem do trabalho repetitivo ao criativo, José Manuel Salazar-Xirinachs, diretor regional da OIT para a América Latina e Caribe, questiona:  “Isso soa muito legal, mas a questão é: quantos trabalhos para pessoas criativas serão gerados?” Estima-se que só o Brasil perca 16 milhões de empregos até 2030, gerando no máximo dois milhões nas novas plataformas e possibilidades. O mundo deve perder cerca de 800 milhões de postos de trabalho nos próximos 12 anos.

Aqueles que continuarem empregados dividirão a mesa com um novo tipo de profissional, o cobot, um robô mais eficiente que humanos, cumpridor de metas sem sofrer de burnout, alheio a fofocas, programado para não paquerar colegas e sem filiação a sindicatos ou partidos. Quem diria, hein! Vamos sentir saudades de empregos duros, alguns humilhantes, dessa exploração nossa de cada dia! As utopias políticas prometiam um paraíso onde todos seriam artistas e intelectuais. As utopias tecnológicas vendem o bilhete premiado para um mundo onde todos serão criativos, trabalharão pouco, em toda liberdade, e serão felizes no universo virtual. Ficaremos livres para ver dez jogos da Champions League por dia ou dez séries da Netflix por jornada. Uau!

Alguns políticos europeus já defendem a criação de um salário universal. Cada pessoa receberá uma quantia do Estado com uma única obrigação: consumir. Como seremos todos desempregados, viveremos todos de seguro-desemprego permanente. O que proponho? Quebrar as máquinas? Parar a evolução tecnológica? Nada disso. Não funcionaria. Apenas tento descrever o que pode vir por aí. Já fiz ficção-científica. Como não precisaremos mais nos deslocar, as pernas, salvo se realmente aderirmos às academias, serão novos apêndices em alguns séculos. Espero que não inflamem e não precisem ser extraídas em cirurgias. Em compensação, não haverá mais engarrafamentos.
Nem produção de carros.

O exagero pode ser apenas uma caricatura do medo crescente. Estaremos ficando obsoletos? O argumento de que a criatura nunca engoliu o criador não tranquila mais. Fiquemos com o mais simples: teremos mais tempo livre. O que faremos dele? Convidaremos nossos amigos cobots para uma ceva depois do expediente? A reforma da Previdência de Michel Temer poderá não surtir o menor efeito. A era do trabalho pode estar mesmo no fim. Trabalhadores, uni-vos? Já foi.
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 *Graduou-se em História (bacharelado e licenciatura) e em Jornalismo pela PUCRS, onde também fez Especialização em Estilos Jornalísticos. Passou pela Faculdade de Direito da UFRGS, onde também chegou a cursar os créditos do mestrado em Antropologia. Obteve o Diploma de Estudos Aprofundados e o Doutorado em Sociologia na Universidade Paris V, Sorbonne, onde também fez pós-doutorado. 
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Meias palavras


José de Souza Martins*
 

O escritor e membro da Academia Brasileira de Letras João Ubaldo Ribeiro colecionava fotos de placas, avisos e anúncios, disseminados pelo Brasil inteiro, escritos em português vulgar e frequentemente chulo, cheios de erros e indícios de alfabetização precária e educação restrita. Chamava sua coleção de "besteiroteca". Fomos amigos de mensagens durante muitos anos, até o fim de sua vida, desde que nos conhecemos no Júri do Prêmio Casa das Américas, em 1981. Trocávamos mensagens com alguma frequência, na maior parte das vezes sobre isso.

Esses anúncios são evidências de que muitos brasileiros se comunicam apenas no interior dos muros de uma precária fala coloquial. Prisioneiros de um analfabetismo disfarçado, nos escritos errados tentam atravessar a muralha desse confinamento cultural usando insegura colagem de palavras. Por meio dela fingem saber o que não sabem, supondo dizer o que de fato não compreendem. O rabisco da escrita simplória apenas atesta o esforço de copiar de memória formas de um dizer mercantil que é apenas o dos mal chegados ao mundo das mercadorias.

Para reforçar-lhes o gaguejar escrito, nos últimos anos, uma avalanche de palavras inglesas, específicas da comunicação eletrônica, veio complicar ainda mais nossa língua já desfigurada. Escreve-se "site", mas fala-se "saite". "Click", "clicar", "blogar", "deletar", ajustamentos para desenrolar uma língua enrolada vão preenchendo os vazios linguísticos de um mundo novo da fala.

Os divertidos anúncios que João Ubaldo colecionava continuam proliferando. Nestes dias, um amigo me mandou alguns: "Rejuvelhecimento facial: R$ 39,99"; "Pintamos casas a domicílio"; "Pé di Curi e Mão di Curi, R$ 25,00"; "Sem Ti Deiz" (com uma seta indicando uma tomada de energia elétrica); "É proibido esfolear os jornais" (numa banca de jornais); "Barbearia Darcy, corto cabelo e pinto". Neste último caso, uma indicação de que as palavras foram juntadas, mas se mantiveram isoladas no descuido com a significação da frase.

Em 2009, vieram da "besteiroteca" de João Ubaldo: "Bar e Danceteria Owver Naith"; "Servimos suco natural do pó do guaraná A Flor de Ziaco do Amazonas"; "Borracharia e Bicicletaria J-L $> Temos pesas e pineus para sua baig"; "Verdura cem agrotoxio"; "Aviso - Não remova esse aviso - Está aqui porque tem uma finalidade" (aviso oficial numa rua); "Proibido marrar animais" (numa árvore); "Batata 4.00, Sebola 1.50, Méu 4.00, Melansia 3.00, La Ranja 3.00" (na beira de uma estrada). Ainda que remotamente, formas de escrever que lembram um pouco a escrita brasileira do século XVII, quando, porém, havia regras para colocar no papel a língua falada. Colagens de palavras de nexos mal enunciados, que culminam em efeitos de remota intenção barroca. Resíduos de mentalidade nunca consumada, pura expressão de atraso social.

Algumas vezes, em diferentes lugares do Brasil ouvi e anotei frases ditas em estações rodoviárias ou em ônibus. Em Porto Velho uma senhora contava a uma amiga que tinha sido obrigada a "assustar o cheque" que dera a alguém. Para ela, "assustar o cheque" era dar um susto na pessoa que o recebera e descumprira a palavra e a contrapartida do pagamento. O moderno do cheque reduzido ao arcaico do susto.
Mesmo depois de concedido o direito de voto ao analfabeto, o pressuposto de todo o sistema político brasileiro continuou sendo o de que o eleitor brasileiro é corretamente alfabetizado. Isto é, ele se informa politicamente por meio da palavra escrita. A palavra falada está mesquinhamente reduzida ao inessencial, como naquela sucessão de retratos na TV, o candidato dizendo: "Meu nome é Zé dos Anzóis. Pelos direitos dos pescadores de lambari. Meu número é 00000". Ou aquele genial "Vote em Tiririca que pior não fica". O deputado paulista foi o mais votado do país, em 2010, com mais de 1,3 milhão de votos, e arrastou consigo mais três deputados federais. A língua popular elegeu quatro deputados, enquanto a língua formal elegeu apenas um.

Que cidadão resulta dessa alfabetização contorcida em que o pensado está divorciado do escrito? O regime político republicano, no Brasil, foi instituído com base no pressuposto de que o direito de voto estava circunscrito aos alfabetizados. E que a imensa maioria, a dos analfabetos ou semianalfabetos, ficaria na sala de espera do ingresso no elenco dos que têm direito de votar. O que só aconteceria em 1985, quando a concessão do direito de voto aos analfabetos decretou, também, que todos os brasileiros têm igual entendimento das mensagens políticas, faladas ou escritas. Agora já não é o direito ou não direito de voto que separa o povo do poder. É o silêncio de ouvir uma coisa e entender outra.
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*José de Souza Martins é sociólogo. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “O Coração da Pauliceia Ainda Bate” (Ed. Unesp/Imprensa Oficial).
Fonte: http://www.valor.com.br/cultura/5283023/meias-palavras 26/01/2018