Luiz Felipe Pondé*
Ricardo Cammarota | ||
O tema do ateísmo me interessa pouco. Tampouco me interessam as
entediantes "provas" da existência de Deus. Grande parte dos ateus que
conheço é chata e sofre de dois dos seguintes sintomas:
O primeiro é a raiva de Deus. Evidentemente, trata-se de "daddy issues"
(problemas com papai). A fúria com a qual alguns ateus se movem trai seu
ressentimento escondido.
O segundo é a tentativa, risível, de atestar que, apesar de ateus, são
bons cidadãos. Se o primeiro sintoma revela um traço de insegurança,
este aqui trai seu ridículo.
Quem ainda crê, pelo amor de Deus, que ser ateu implica querer comer criancinhas?
Sei. Você me dirá que existem pessoas que, sim, pensam que ateus "matam
mais". Você tem razão em dizer isso, mas quem pensa assim é tão risível
quanto um ateu que quer provar seu compromisso com "um mundo melhor".
Ateus assim, quando possuem mais repertório, além de sua referência
"discovery", buscam o filósofo alemão Immanuel Kant (1724 - 1804) como
lastro: o bem é racional, não religioso. Logo, posso ser ateu e ser
ético.
Verdade evidente, mas só quem tem uma percepção infantil do comportamento humano se esconde atrás de um enunciado filosófico como garantia de sua própria sanidade.
O ateísmo é a forma mais simples de filosofia. Ainda mais quando se
afirma que "Deus é amor". O mundo é mau, logo, se "Deus é amor", ele não
existe. Esse argumento em filosofia é conhecido como "argumento a
partir do mal" contra a existência de Deus. A fé é infinitamente mais
complexa do que a descrença. Dizer que religião é uma bengala é coisa de
iniciantes em matéria de religião.
Mas é possível ser ateu e ter espiritualidade? Sei. Você dirá que
evidentemente sim porque ateus podem ser pessoas "legais". Pessoais
"legais" não merecem confiança, direi eu em resposta a você. Isso se
você supuser que pessoas "espiritualizadas" são pessoas legais. Eu não
tenho tanta certeza, principalmente agora que você pode ser
"espiritualizado" graças ao Face.
Independentemente dessas questões risíveis, creio, sim, ser possível um
ateu ter vida espiritual, claro, se você não associar "vida espiritual" a
vida religiosa institucional.
A questão que normalmente soa estranha é que a espiritualidade parece
nos levar diretamente a Deus ou similares. Mas isso não é,
necessariamente, uma verdade evidente.
O darwinista Edward O. Wilson, no seu livro "The Meaning of Human
Existence" (o significado da existência humana), da editora W. W. Norton
& Company, de 2014, defende que existe, sim, uma espiritualidade
ateia e esta está intimamente associada à indagação acerca do
significado último da existência humana.
A indagação está presente, principalmente, em momentos em que o
significado parece desaparecer, como no momento de grandes perdas na
vida. Não é à toa que a sociologia da religião mostra que conversões
espirituais ocorrem, majoritariamente, em momentos de grandes perdas na
vida.
O fato é que a espiritualidade, em geral, lida diretamente com
indagações como essa. As religiões respondem a questões como essa,
costumeiramente, oferecendo práticas (leituras, rituais, liturgias e
narrativas cosmológicas) que respondem à indagação acerca do sentido da
vida e do sofrimento. A espiritualidade estaria ligada a questões de
sentido da existência, mas não, necessariamente, dependentes de crenças
em divindades.
Para Wilson, quando um ateu se indaga acerca do sentido último da
existência, ele está pensando em nossa condição humana num cenário de
solidão cósmica (não é à toa que tanta gente busca em ETs um "resto"
religioso qualquer) e contingência absoluta.
Não há um sentido último da existência humana a não ser enfrentar essa
contingência absoluta a partir dos meios (frágeis, sim) de que dispomos
para enfrentar um universo que nos devora a cada minuto. Esse sentido
passa pela busca de compreender (cientificamente) este universo e lidar
com ele.
O darwinismo nos ensina que a existência é uma batalha sem fim cujo
sucesso não é garantido. O darwinismo carrega em si uma cosmologia
trágica. Enfim, arrancamos o sentido das pedras.
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* Filósofo, escritor e ensaísta, pós-doutorado em epistemologia pela
Universidade de Tel Aviv, discute temas como comportamento, religião,
ciência.
p(tagline). @lf_ponde
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2018/01/1947264-quem-ainda-cre-que-ser-ateu-implica-querer-comer-criancinhas.shtml
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