P. Gonçalo Portocarrero
de Almada*
Graças a Deus, no nosso país não constam clérigos com relevância
eclesial, ou presença significativa nos meios de comunicação social, que
publicamente sejam críticos do Papa Francisco.
Se o pomo da discórdia é, segundo a etimologia e a mitologia, uma maçã,
o papa da discórdia é, sem dúvida, Francisco. Andrew Brown, num extenso artigo do The Guardian e do Público, fez uma
declaração bombástica: “O Papa Francisco é actualmente um dos homens mais
odiados do mundo. E quem mais o odeia não são ateus, protestantes ou
muçulmanos, mas alguns dos seus próprios seguidores”.
Desculpe-se ao jornalista o manifesto exagero da sua afirmação, mas
reconheça-se o que é patente: o Papa Francisco tem sido muito criticado por
alguns católicos. Todos os papas, de algum modo, o foram. Mesmo São João Paulo
II, não obstante a santidade da sua vida, não só foi contestado por alguns
teólogos – L. Boff, H. Kung, etc. – como também por bispos e até cardeais:
Martini, arcebispo de Milão, assumia-se publicamente como o cardeal da mudança;
e Casaroli, que foi cardeal secretário de Estado de João Paulo II, tinha pontos
de vista muito diferentes dos de Wojtyla.
A novidade da oposição a Francisco está, talvez, na sua dimensão
mediática, potenciada pelo facto do próprio Papa ter dado relevo e publicidade
a essas críticas. Já em 2015, na tradicional mensagem de Boas Festas à cúria, o
Papa Francisco acusou alguns dos seus colaboradores de “arrogância, de
‘Alzheimer espiritual’, de hipocrisia típica dos medíocres e progressivo vazio
espiritual (…) bem como de vão materialismo e gosto pela bisbilhotice e maledicência”.
Esta crítica, que fez as delícias dos anticlericais do mundo inteiro, “não é –
como anota Andrew Brown – o tipo de coisa que se quer ouvir do chefe na festa
de Natal da empresa”. Em 2017, o tom da pontifícia alocução natalícia não foi
mais conciliador: “Permiti-me aqui uma palavra sobre outro perigo: o dos
traidores da confiança ou os que se aproveitam da maternidade da Igreja, isto
é, as pessoas que (…) se deixam corromper pela ambição ou a vanglória e, quando
delicadamente são afastadas, se autodeclaram falsamente mártires do sistema”.
É lamentável que o Papa Francisco não seja respeitado e querido por
aqueles que lhe são mais próximos, mesmo que se pense, como Andrew Brown, que
uma mensagem de Natal talvez não seja a melhor ocasião para um ajuste de contas
público, sobretudo quando essa aparente retaliação poderia erradamente parecer
eivada de um amargo ressentimento. É verdade que o Santo Padre tem nas suas
mãos os meios necessários para afastar quem entenda menos digno da sua
confiança, como aliás já fez, segundo o mesmo jornalista, com alguns membros da
cúria, como o Cardeal Raymond Burke, que destituiu da presidência do Tribunal
Supremo da Assinatura Apostólica, relegando-o para um cargo, mais honorífico do
que executivo, na Soberana Ordem Militar de Malta. Talvez o dramático apelo do
Santo Padre se propusesse evitar outras destituições mas, se é esse o caso,
seria porventura preferível que a dura advertência tivesse sido feita apenas
aos visados, evitando-se que uma injusta suspeição de deslealdade recaísse
sobre todos os cardeais, na sua esmagadora maioria venerandos prelados, com
muitos anos de serviço à Igreja e fiéis ao Papa, que aliás elegeram por larga
maioria.
Também em relação aos padres, o Papa Francisco nem sempre tem sido
compreendido nas suas declarações que, dado o seu carácter marcadamente
crítico, são logo reproduzidas com indisfarçável satisfação pela imprensa
laica. Por vezes, acusa-os de serem meros funcionários da Igreja, burocratas
que dificultam aos fiéis o encontro salvífico com a graça de Deus e que estão
mais interessados na sua carreira eclesiástica do que no bem das almas, de que
era suposto serem dedicados ministros. Mais uma vez, a crítica é certeira e
oportuna mas, ao ser injustamente generalizada pela imprensa, favorece uma
imagem negativa de todos os presbíteros, pagando os justos – que são, graças a
Deus, a esmagadora maioria dos padres – pelos pecadores, que infelizmente
também há. Ora estas abusivas generalizações debilitam a confiança dos
católicos na Igreja e nos seus pastores, fragilizada já pelo escândalo da
pedofilia. Também não facilitam que os não católicos procurem no padre a ajuda
de que podem precisar para o seu aperfeiçoamento espiritual e para a salvação
das suas almas.
Andrew Brown, no seu extenso artigo, diz que, “sempre que dois padres se
encontram, falam de quão horrível Bergoglio é”! Felizmente, a afirmação não
corresponde à realidade portuguesa, pois entre nós não constam clérigos com
relevância, ou presença significativa nos meios de comunicação social, que
publicamente se oponham ao Papa Francisco. Mesmo os que foram críticos dos
papas anteriores, são agora, graças a Deus, muito favoráveis ao Papa Francisco,
cujos propósitos reformistas não se cansam de louvar. Portanto, pelo menos em
Portugal, a nação ‘fidelíssima’ pela sua histórica união à sede de Pedro, o
Papa Francisco logrou uma significativa unanimidade.
Se se me permite uma confidência, aproveito para esclarecer o que é
óbvio para os leitores das minhas crónicas ao longo deste pontificado: depois
de superada uma inicial surpresa pelo estilo de Francisco, não tive dificuldade
em transferir para o actual Papa a mesma efectiva e afectiva fidelidade que
sempre professei, pública e privadamente, aos seus antecessores, reservando-me
o direito de manter as minhas opiniões sobre o que é, também em questões de fé
e de moral, discutível. Se adiro ao magistério pontifício, qualquer que seja o
papa, não é por inércia, oportunismo carreirista ou respeitos humanos, mas por
uma questão de coerência na fé e de amor à comunhão eclesial.
É certo, contudo, que alguns católicos, pouco numerosos mas muito
combativos, contestam, sobretudo nas redes sociais, as supostas heresias do
Papa Francisco, tema a desenvolver numa próxima ocasião. É verdade que a
‘Amoris laetitia’, que é susceptível de uma leitura coerente com o precedente
magistério da Igreja, foi também interpretada por alguns eclesiásticos de forma
contrária à doutrina católica. Mas convirá recordar que Cristo prometeu a
infalibilidade da sua Igreja (cfr. Mt 16, 18) e rezou, eficazmente, por Pedro e
pelos seus sucessores, para que, não obstante as suas deficiências pessoais,
confirmem sempre os fiéis na verdadeira fé (cfr. Lc 22, 32).
Outros há ainda que, fora da Igreja católica e da razoabilidade da sua
doutrina, levam o seu zelo até ao limite do paradoxo, como aquele disparatado
devoto que dizia: “Eu faço a vontade de Deus, quer ele queira ou não!”
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* O Padre Gonçalo Nuno
Ary Portocarrero de Almada nasceu em Haia, Holanda, a 1 de Maio de
1958. Licenciou-se em Direito na Universidade de Madrid (Complutense) e,
posteriormente, doutorou-se em Filosofia pela Universidade Pontifícia da Santa
Cruz, em Roma. Ordenado sacerdote em 1986, exerce desde então o
respectivo ministério no âmbito da prelatura do Opus Dei. Além de escrever
regularmente na imprensa periódica, é autor, entre outras obras, de Histórias
e Morais (Alêtheia, 2011) e co-autor de Auto-de-Fé, a Igreja na inquisição da opinião pública
Imagem da Internet
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