André Lara Resende*
"Corrupção,
criminalidade e violência nas cidades, saúde pública, desigualdade de educação
e de riqueza são questões que há décadas nos atormentam e só se agravaram. São
questões eminentemente políticas, que dependem do poder público, questões
incapazes de serem resolvidas por iniciativas individuais, ou mesmo corporativas,
com ou sem fins lucrativos."
O
sentimento que hoje dá a tônica no Brasil é o de desalento. Depois de três anos
da mais grave recessão da história do país, a economia dá sinais de
recuperação, mas ainda não há investimento para garantir um novo ciclo de
crescimento. Não há investimento porque a confiança não se recuperou. O país
está à espera das eleições presidenciais de 2018. A esperança que ainda tempera
o desalento é que o presidente eleito em 2018 seja capaz de recolocar o país
nos trilhos. Recolocar o país nos trilhos tem diferentes interpretações, mas há
um relativo consenso sobre os problemas a serem enfrentados. Corrupção,
criminalidade e violência nas cidades, saúde pública, desigualdade de educação
e de riqueza são questões que há décadas nos atormentam e só se agravaram. São
questões eminentemente políticas, que dependem do poder público, questões
incapazes de serem resolvidas por iniciativas individuais, ou mesmo corporativas,
com ou sem fins lucrativos. Temos a impressão de que são problemas nossos, uma
especificidade do país que atravessou o século XX sem conseguir chegar ao
Primeiro Mundo, mas a verdade é que são problemas que afligem, em maior ou
menor grau, todas as grandes democracias contemporâneas. Basta observar os
Estados Unidos hoje. A lista acima, dos nossos grandes problemas, seria
integralmente aceita para descrever as questões que afligem a mais rica e e
bem-sucedida democracia contemporânea.
Num pequeno livro publicado originalmente em 1993, "O Fim da Democracia", Jean-Marie Guéhenno, diplomata francês, professor da Universidade de Columbia, defendia uma tese que, à época, parecia precipitada e provocadora. Sustentava que havíamos chegado ao fim de uma era. O período da modernidade, da democracia, iniciado com o Iluminismo do século XVII, cujo apogeu se deu no século passado, se encerrava com o fim do milênio. Diante do mal-estar que hoje se percebe, em toda parte, não apenas em relação à democracia representativa, mas em relação à própria política, a releitura do ensaio de Guéhenno nos deixa com a impressão de se tratar de uma reflexão profética sobre a crise deste início de século.
A modernidade se organizou a partir da crença nas instituições democráticas, na força das leis para organizar e controlar o poder. Difundiu-se a tese de que a melhor maneira de regular a convivência, organizar a sociedade era limitar o poder pelo poder, distribuindo-o entre vários polos e instâncias. As construções institucionais que organizam essa distribuição do poder, de maneira que impeça a usurpação por um deles, ou colusão entre eles, num delicado equilíbrio de distribuição, não apenas do poder, mas também da riqueza, é o que caracteriza a democracia moderna.
Num pequeno livro publicado originalmente em 1993, "O Fim da Democracia", Jean-Marie Guéhenno, diplomata francês, professor da Universidade de Columbia, defendia uma tese que, à época, parecia precipitada e provocadora. Sustentava que havíamos chegado ao fim de uma era. O período da modernidade, da democracia, iniciado com o Iluminismo do século XVII, cujo apogeu se deu no século passado, se encerrava com o fim do milênio. Diante do mal-estar que hoje se percebe, em toda parte, não apenas em relação à democracia representativa, mas em relação à própria política, a releitura do ensaio de Guéhenno nos deixa com a impressão de se tratar de uma reflexão profética sobre a crise deste início de século.
A modernidade se organizou a partir da crença nas instituições democráticas, na força das leis para organizar e controlar o poder. Difundiu-se a tese de que a melhor maneira de regular a convivência, organizar a sociedade era limitar o poder pelo poder, distribuindo-o entre vários polos e instâncias. As construções institucionais que organizam essa distribuição do poder, de maneira que impeça a usurpação por um deles, ou colusão entre eles, num delicado equilíbrio de distribuição, não apenas do poder, mas também da riqueza, é o que caracteriza a democracia moderna.
No
passado, antes do enriquecimento que acompanhou a era da razão e da indústria,
a riqueza fundiária era o único poder. O poder político não se distinguia do
poder econômico, ser poderoso era, sobretudo, escapar da miséria generalizada.
A democracia institucional da modernidade foi um extraordinário progresso em relação
à concentração do poder e da riqueza das épocas passadas, mas, nessa passagem
de século, as instituições democráticas se tornaram obsoletas. Há dificuldade em
admiti-lo, porque não temos o que pôr no lugar da democracia representativa.
Não conhecemos uma forma de melhor organizar a sociedade. As palavras
democracia, política, liberdade definem o espectro de nossa visão de um mundo
civilizado, mas não temos mais certeza de saber o seu verdadeiro sentido. Nossa
adesão, à construção institucional e aos valores da democracia moderna, é mais
um reflexo condicionado do que uma opção refletida.
O poder voltou a estar
associado à riqueza e
ao dinheiro, agora desmaterializados, ao sabor
exclusivo das expectativas
Com a
densidade demográfica e o progresso tecnológico, sobretudo nas comunicações, a
sociedade dos homens se tornou grande demais para formar um corpo político. Não
há mais cidadãos, pessoas que compartilham um espaço físico e político, capazes
de expressar um propósito coletivo. Todos se percebem como titulares de muitos
direitos, e cada vez menos obrigações, num espaço nacional pelo qual não se
sentem responsáveis, nem necessariamente se identificam. Na idade das redes, da
mídia social, a vida pública e a política sofrem a concorrência de uma
infinidade de conexões estabelecidas fora do seu universo. Longe de ser o
princípio organizador da vida em sociedade, como o foi até algumas décadas
atrás, a política tradicional passa a ser percebida como uma construção
secundária e artificial, incapaz de dar resposta aos problemas práticos da vida
contemporânea. Sem a política como princípio organizador, sem homens públicos
capazes de definir e representar o bem comum, a pulverização dos interesses,
longe de resultar num consenso democrático, leva à radicalização na defesa de
interesses específicos e corporativos. Na ausência de um princípio regulador,
universalmente aceito como acima dos interesses específicos, a tendência é a da
radicalização na defesa de seus próprios interesses. Não há mais boa vontade
com os que discordam de nós, nem crédito quanto à suas intenções.
Sem
confiança e boa-fé, os elementos essenciais do chamado capital cívico, não há
como manter viva a ideia de nação, de uma memória e de um destino compartilhado.
Num primeiro momento, tem-se a impressão de que a confiança e a boa-fé, vítimas
da sociedade de massas, poderiam ser substituídas, sem prejuízo do bom
funcionamento da sociedade, pela institucionalização e pela formalização
jurídica das relações. O que é um avanço, o domínio da lei, quando levado ao
paroxismo, quando se depende da lei, dos contratos jurídicos para regular até
mesmo as mais comezinhas relações cotidianas, é sinal inequívoco da erosão do
capital cívico. O sistema jurídico, os advogados, se tornam o campo de batalha,
os exércitos, de uma guerra onde cada um, cada grupo, se agarra obstinadamente
aos seus interesses e "direitos" particulares. Quebrar um contrato, desobedecer
à lei, é passível de punição, mas fora dos contratos e da lei tudo é permitido,
não há mais princípios nem obrigação moral. Quando não existe mais terreno
comum fora dos contratos jurídicos, quando não é mais possível, de boa-fé,
baixar as armas e confiar, é porque não há mais terreno comum e a decomposição
da sociedade atingiu um um estado avançado. O estágio final é a decomposição
das próprias instituições que fazem e administram as leis.
Talvez a
mais polêmica das teses de Guéhenno, à época da publicação de seu ensaio, fosse
a de que o princípio organizador do poder no mundo contemporâneo fragmentado é
a riqueza. Não mais o capital, capaz de organizar e explorar o trabalho, como
queria a tradição marxista, mas a riqueza em abstrato. Com a desmaterialização
da economia, provocada pela revolução digital, o capital e o trabalho caminham
rapidamente para se tornar dispensáveis. A riqueza é criada e destruída com
extraordinária velocidade e de forma completamente dissociada do que restou do
sistema produtivo do século XX. No mundo contemporâneo o poder voltou a estar
associado à riqueza e ao dinheiro, agora desmaterializados, ao sabor exclusivo
das expectativas, das percepções coletivas, que tanto se expressam como se
validam na criação de riquezas abstratas, tão impressionantes como voláteis.
Para Guéhenno, é sob este prisma, do dinheiro como o princípio organizador do poder, que se deve analisar a corrupção no mundo contemporâneo. Longe de ser um fenômeno arcaico, lamentável sinal de uma sociedade subdesenvolvida, incapaz de distinguir entre a fortuna particular e o bem público, a corrupção é um elemento característico da sociedade contemporânea. Quando o Estado e a política deixam de ser o princípio organizador do bem comum, quando políticos e funcionários passam a serem percebidos e a se perceber como meros prestadores de serviços para uma multiplicidade de interesses específicos, é natural que sejam remunerados, diretamente pelos interessados, pelos serviços prestados.
Para Guéhenno, é sob este prisma, do dinheiro como o princípio organizador do poder, que se deve analisar a corrupção no mundo contemporâneo. Longe de ser um fenômeno arcaico, lamentável sinal de uma sociedade subdesenvolvida, incapaz de distinguir entre a fortuna particular e o bem público, a corrupção é um elemento característico da sociedade contemporânea. Quando o Estado e a política deixam de ser o princípio organizador do bem comum, quando políticos e funcionários passam a serem percebidos e a se perceber como meros prestadores de serviços para uma multiplicidade de interesses específicos, é natural que sejam remunerados, diretamente pelos interessados, pelos serviços prestados.
No mundo
onde o relacionamento vale mais do que o saber, onde o poder público é visto
apenas como facilitador de interesses particulares, a chamada corrupção, desde
que não saia de controle, é apenas uma forma de aumentar a eficiência da
economia. O valor supremo é a eficiência da economia na geração de riqueza. A
política e a alta função pública, há tempos, perderam importância e prestígio.
Os sucessivos "escândalos" de corrupção com recursos públicos nas
democracias contemporâneas não são uma anomalia, mas a consequência lógica do
triunfo do único valor universal que sobrou no mundo pulverizado das redes, o
dinheiro, como indicador de sucesso pessoal e de sucesso das sociedades. A
riqueza se tornou o gabarito comum, a única referência através da qual é
possível estabelecer comunicação entre indivíduos e tribos que nada mais
compartilham, a não ser a reverência em relação à riqueza.
O tempo
deu razão a Guéhenno. Suas teses, hoje, parecem menos extravagantes. A
revolução digital, a pulverização das identidades, a desmaterialização da economia
e o fim do emprego industrial tornaram obsoleta a política das democracias
representativas. Nosso desalento não é exclusividade nossa. O que poderia
servir de consolo é, na verdade, evidência de que o problema é mais grave do
que se imagina. É bom que se tenha consciência, para não depositar esperanças
infundadas nas eleições de 2018. Para recolocar o país nos trilhos, para dar fim ao desalento, não basta evitar os
radicalismos. É preciso ir além de uma proposta moderada reformista, pautada
pelo que o país deveria ter conseguido ser no século passado. É preciso ter o
olhar voltado para o futuro, e o futuro é o da economia digitalizada, da
inteligência artificial, com profundas repercussões na forma de se organizar a
economia e a sociedade. Pode ainda não estar claro onde a estrada nos levará,
mas é preciso estar na estrada para não ficar definitivamente para trás.
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Economista
Fonte: http://www.valor.com.br/cultura/5246289/o-que-esperar-do-brasil-em-2018 05/01/2018
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