Papa Francisco na Capela Sistina no dia de Natal (Dave Yoder/National Geographic)
Prestes a completar cinco anos de pontificado, Francisco enfrenta uma batalha na missão de arejar a Igreja — e os inimigos estão dentro do próprio Vaticano
Como faz todos os anos desde 2013,
quando assumiu o Trono de Pedro depois da renúncia de Bento XVI, o papa
Francisco reuniu os cardeais na sala Clementina do Palácio Apostólico
do Vaticano para os votos de Natal. Aos amados “irmãos e irmãs” —
estavam ali também funcionárias da Cúria —, fez um pronunciamento duro
em favor das reformas na Igreja, obsessão deflagrada nos
primeiros minutos de seu pontificado. Rindo, lembrou uma frase
“simpática e significativa” do arcebispo belga Frédéric-François-Xavier
de Mérode (1820-1874), conselheiro do papa Pio IX: “Fazer as reformas em
Roma é como limpar a esfinge do Egito com uma escova de dentes”.
Testemunhas disseram ter percebido sorrisos amarelos, olhares de
esguelha, ao que Francisco prosseguiu na peroração, como se precisasse
explicar o que acabara de resumir na tirada espirituosa.
Fez
alusão à “lógica desequilibrada e degenerada de conluios ou de pequenos
clubes que representam um câncer que leva à autorreferencialidade” e
emendou com um comentário ainda mais ácido: “Permiti-me aqui uma palavra
sobre outro perigo: os traidores da confiança ou os que se aproveitam
da maternidade da Igreja, isto é, as pessoas que são cuidadosamente
selecionadas para dar maior vigor ao corpo e à reforma, mas — não
compreendendo a alçada da sua responsabilidade — deixam-se corromper
pela ambição ou pela glória vã e, quando delicadamente são afastadas,
autodeclaram-se falsamente mártires do sistema, do ‘papa desinformado’,
da ‘velha guarda’, em vez de recitar o mea culpa”.
A contundência, dois tons acima do usual, e pouco natalina,
não foi inesperada. Ao contrário. Francisco enfrenta uma batalha — e
seus maiores inimigos estão dentro do próprio Vaticano. Ele luta para
arejar a Igreja Católica e atrair mais fiéis, mas o fogo amigo é só
boicote. A guerra é fria, as armas são palavras, mas ferem como lança.
Em entrevista ao jornal italiano Corriere della Sera, o
vaticanista americano John Allen, reputado pelas informações dos
bastidores e pela aguda clareza, afirmou: “Os papas costumam ser
contestados pela esquerda da Igreja. Este, porém, é atacado pela
direita, e isso faz a contestação adquirir grandes proporções”. O que
significa ser alvejado pela direita, ou seja, pelos conservadores? Jorge
Mario Bergoglio, o papa do fim do mundo, das favelas de Buenos Aires,
do confronto com a ditadura militar argentina, tem um ideário muito
nítido, traduzido em sua retórica, minuciosamente atrelada a temas
delicados para o catolicismo.
Defendeu o acolhimento de homossexuais (“Se uma pessoa é
gay, quem sou eu para julgá-la?”), de mães solteiras (“Essa mulher teve a
coragem de continuar a gravidez”) e admitiu o divórcio (“Existem casos
em que a separação é inevitável”). Fez muito mais, em sua toada
modernizadora: desestimulou as missas em latim, destituiu prelados
influentes sob a acusação de desvio de dinheiro, deu poder a laicos e
condenou o clericalismo exacerbado. Mexeu num vespeiro milenar — ainda
que não tenha sido o primeiro pontífice a fazê-lo, foi pioneiro em
tempos de redes sociais, em que tudo corre muito mais rapidamente,
inclusive a lentíssima movimentação da religião dos discípulos de Jesus.
Em nenhuma seara comportamental Francisco provocou mais
ruído que na do divórcio, mais até do que com sua postura em relação à
homossexualidade. Em um de seus recentes documentos, a exortação
apostólica Amoris Laetitia (A Alegria do Amor), de 2016, texto
com poder de disseminar caminhos para o clero, Francisco imprimiu uma
nova visão sobre a relação da Igreja com os divorciados em segunda
união. Na doutrina católica, quem se separa e se casa novamente comete
adultério e, portanto, não pode receber o sacramento da comunhão nas
missas. No pontificado de João Paulo II, a Igreja reconheceu o acesso
aos sacramentos da confissão e da eucaristia aos divorciados recasados
no caso de viverem sob o mesmo teto como irmão e irmã. Em Amoris Laetitia,
Francisco foi além, ao afirmar que a separação pode se tornar
moralmente necessária quando se trata de defender o cônjuge mais frágil
ou os filhos pequenos. E mais: “Em certos casos, poderia haver também a
ajuda dos sacramentos. Por isso, aos sacerdotes, lembro que o
confessionário não deve ser uma câmara de tortura, mas o lugar da
misericórdia do Senhor”.
A reação foi imediata, mercurial. Por meio de uma carta
aberta, um grupo de cardeais, liderado pelo influente americano Raymond
Burke, pediu explicações ao pontífice com uma justificativa sem meias
palavras: “É nossa intenção ajudar o papa a prevenir divisões e
contraposições na Igreja, pedindo-lhe que dissipe todas as
ambiguidades”. Em entrevista ao site católico americano LifeSiteNews,
Robert Sarah, cardeal africano que defende ritos ultraformais, como a
celebração das missas com padres “na mesma direção dos fiéis”, de costas
para a plateia, o que era comum nas tradicionais missas em latim,
chegou a afirmar em outra ocasião que “a unidade da Igreja está sendo
ameaçada”. Em manifestação ainda mais vigorosa, um grupo de quarenta
padres e teólogos assinou um manifesto no qual acusa Francisco de
heresia. O primeiro parágrafo é direto: “Santo Padre, com profunda
aflição, mas movidos pela fidelidade ao Nosso Senhor Jesus Cristo, pelo
amor à Igreja e ao papado, e pela devoção filial a Sua Pessoa, vemo-nos
obrigados a dirigir a Sua Santidade uma correção, devido à propagação de
heresias produzida pela exortação apostólica Amoris Laetitia e de outras palavras, atos e omissões de Sua Santidade”.
Heresia é uma rejeição ou mera dúvida de um dogma da fé
divina e católica, praticada por uma pessoa batizada. É uma designação
gravíssima para um papa. Inúmeros pontífices cometeram atos hereges
explicitamente, como ensina a história, mas poucos foram chamados como
tal. Em 1331, o papa João XXII recebeu a alcunha quando numa série de
sermões ensinou que “as almas benditas, depois de terem terminado o seu
designado tempo no purgatório, não veriam a Deus até após o juízo
final”. Pelos princípios católicos, o purgatório não é um tribunal, mas
um tempo de purificação. Confrontado por cardeais, João XXII retratou-se
anos depois, um dia antes de sua morte.
Francisco não se pronunciou ante as acusações, e
dificilmente o fará. O papa não quer mudar a orientação da Igreja em
relação ao matrimônio. Nem poderia. Diz o Evangelho de São Mateus: “O
homem deixa seu pai e sua mãe para se unir a sua mulher e os dois se
tornam uma só pessoa. Assim, já não são duas pessoas, mas uma só.
Portanto, que ninguém separe o que Deus uniu”. O pontífice, no entanto,
pode atualizá-la sem desrespeitar os princípios católicos. Diz Juarez de
Castro, pároco da Igreja da Assunção de Nossa Senhora, em São Paulo:
“Francisco interpreta a doutrina com o olhar da compaixão. Não se trata
de endossar o divórcio, mas de valorizar a misericórdia”.
Francisco, apesar de sua língua ferina, prefere sempre o
perdão a qualquer gesto que soe a confronto — embora, ressalve-se, seja
muito hábil ao esgrimir com palavras, como fez no discurso pré-natalino a
seus pares. Sua postura é quase sempre misericordiosa, atributo
precioso aos católicos. No entanto, não é raro que um gesto de compaixão
provoque estranheza aos olhos dos leigos. Em 21 de dezembro, ele foi ao
funeral do cardeal americano Bernard Law, acusado de encobrir um dos
maiores escândalos de pedofilia da Igreja Católica, entre os anos de
1984 e 2002, caso contado no filme Spotlight, vencedor do Oscar
em 2016. É praxe a participação de um papa nas exéquias de um cardeal —
mas, ao homenagear protocolarmente Law, Francisco deflagrou a discussão:
afinal, não seria sua obrigação condenar a pedofilia, a qual Bento XVI
se viu sem forças de combater, o que o levou à renúncia? Bergoglio não
teria sido feito papa justamente para enfrentar situações como essa —
além de exercer o controle mais severo das finanças da Cúria e combater o
exagerado centralismo? Estar ao lado do corpo estendido de Law pode ter
sido um passo em falso, mas seria praticamente impossível evitá-lo. Os
avanços na Igreja, quando ocorrem, são morosos, feitos de sístoles e
diástoles.
Houve contrações, como sístoles, durante o pontificado de
João Paulo II, de 1978 a 2005, e do breve Bento XVI, de 2005 a 2013. O
papa polonês não priorizou a chamada colegialidade, o compartilhamento
das decisões da Igreja com cardeais e bispos. Ele as centralizou em
reação ao fortalecimento de movimentos católicos ligados a bispos
locais, como a Teologia da Libertação. O papa alemão alimentou uma
Igreja mais fechada em si mesma, concentrada no aparato administrativo,
burocrático e político da Santa Sé — atalho para malfeitos. O papa
argentino, em processo de diástole, tomou caminho diferente do de seus
antecessores, com olhar para o momento histórico de reforma da Igreja,
que ele parece querer reanimar. Esse momento foi o Concílio Vaticano II,
a assembleia religiosa realizada na década de 60, marco na modernização
litúrgica e doutrinal da Igreja. Iniciado por João XXIII (1958-1963) e
concluído por Paulo VI (1963-1978), o concílio buscava uma Igreja mais
simples, mais próxima do rebanho — uma Igreja, enfim, com a cara de
Francisco. Popular, talvez populista. Ele dispensa, sempre que lhe é
permitido, o vidro do papamóvel para ficar mais exposto. Diz o cardeal
Odilo Scherer, arcebispo de São Paulo: “O papa se comunica muito bem, e
sua mensagem e exemplo alcançam multidões”. Os frutos são concretos: no
levantamento do Escritório Central de Estatística do Vaticano realizado
em 2016, o terceiro ano de pontificado de Francisco, o número de
católicos no mundo — depois de décadas em estagnação ou queda — passou
de 1,11 bilhão para 1,27 bilhão (há 172 milhões no Brasil).
Francisco age com a convicção de sua formação jesuítica. O cardeal
argentino foi membro de uma corporação fundada pelo ex-soldado Santo
Inácio de Loyola (1491-1556), que inseriu princípios militares em sua
governança interna, cujo principal compromisso é associar o espírito
missionário na propagação e defesa da fé católica à obediência e
disciplina férrea. Diz o sociólogo Francisco Borba Ribeiro Neto,
coordenador do Núcleo de Fé e Cultura da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP): “Enquanto os dois papas antecessores
tinham a preocupação de pôr ordem na casa, Francisco radicalizou a
postura reformista”
Tudo somado, um personagem como Francisco parece peça de
ficção, inventado para uma Igreja em maus bocados. Ele já foi ficção,
curiosamente. Em 1979, quase um ano depois da eleição de João Paulo II,
um livro intitulado The Vicar of Christ (O Vigário de Cristo), do
jurista americano Walter F. Murphy, apresentava um improvável candidato
ao Trono de Pedro chamado Declan Walsh. Ele havia sido um herói de
guerra da Coreia. No romance, que ficou treze semanas na lista dos mais
vendidos do The New York Times, o autor mostra a ascensão de
Walsh como papa… Francisco. O pontífice, então, começa a fazer uso do
ofício de forma extraordinária, lançando uma cruzada contra a fome,
financiada pela venda de tesouros do Vaticano. Intervém em conflitos
mundiais, a ponto de voar para Tel Aviv durante uma campanha de
bombardeio árabe contra Israel. Estabelece planos para reverter
gradualmente os ensinamentos da Igreja sobre a contracepção e o celibato
clerical e manda cardeais conservadores para a vida monástica, quando
flagrados em escancarada conspiração. Nada muito distante do que o papa
Francisco faz hoje, não mesmo. E, no entanto, Bergoglio lida com a
realidade, nada a seu redor é ficcional.
O papa passou dos 80 anos. Com dores no nervo ciático e
problemas no joelho, locomove-se com dificuldade. Em entrevista no ano
passado ao jornal espanhol El País, aventou a possibilidade de
renunciar: “Quando sentir que não consigo mais, o grande mestre Bento já
me ensinou como tenho de fazer”. À exceção dos eventos para fins de
canonização (veja o quadro na pág. 57), reduziu o ritmo de
viagens internacionais — foram apenas quatro em 2017, contra seis em
2016. Cuidadoso, por não querer que seu legado seja subtraído pela
“lógica desequilibrada e degenerada de conluios ou de pequenos clubes”,
desenhou o perfil da Igreja que sonha para o futuro. No atual quadro de
cardeais eleitores em futuro conclave, quase a metade foi escolhida
durante seu período em Roma. São líderes missionários com pulso forte,
habituados a propagar e defender a fé católica em situações adversas.
Assim como o papa Francisco, que não perde uma oportunidade de expor seu
estilo.
Na homilia da tradicional Missa do Galo, na semana passada,
o papa denunciou o drama dos refugiados e fez um chamado aos fiéis por
caridade e hospitalidade. O pontífice lembrou que na noite em que os
católicos celebram o nascimento de Jesus, segundo a Bíblia, Maria
e José estavam em fuga devido a um decreto do rei Herodes. Eram
refugiados, portanto. “Nos passos de José e Maria, escondem-se tantos
outros passos. Vemos as pegadas de famílias inteiras que hoje são
obrigadas a partir, a separar-se de seus entes queridos, expulsas de
suas terras”, destacou Francisco, perante milhares de fiéis que lotaram a
Basílica de São Pedro, no Vaticano. Francisco foi mais Francisco do que
nunca: quase mundano, ao tratar de assunto de geopolítica
internacional, agindo como chefe de Estado, incomodando os grupos da
Cúria que desejam deixar tudo onde está e sempre esteve, porque a Igreja
exige tradição. Para eles, Francisco terminaria seus dias de escova de
dentes na mão, tentando inutilmente limpar a esfinge.
Quanto mais santos, melhor
Quebras de protocolo, discursos fora do padrão e encrencas
com conservadores são marcas do pontificado de Francisco, um papa
especialmente empenhado em aproximar a Igreja Católica dos fiéis do
século XXI. Em nome da reconquista do rebanho drenado pelas denominações
evangélicas, Francisco está batendo um curioso recorde: em menos de
cinco anos, é o maior fazedor de santos da história do catolicismo. São
mais de 870 canonizações, uma média de mais de 200 novos santos por ano,
superando de longe o papa João Paulo II, responsável por colocar 482
nos altares católicos. O tímido alemão Joseph Ratzinger, em oito anos,
acrescentou 45.
É bem verdade que seu primeiro ato de santificação foi
copioso: dois meses após se sentar no Trono de Pedro, Francisco
canonizou de uma tacada só os 800 “mártires de Otranto”, moradores de um
vilarejo italiano abatidos em 1480, em um ataque muçulmano.
Em outubro deste ano, engrossou consideravelmente a lista
dos santos latinos ao elevar ao altar, de uma só vez, trinta brasileiros
— um grupo de mártires que em 1645 foi dizimado por invasores
holandeses no Rio Grande do Norte. Mesmo contando-se os santificados por
número de processos, coletivos ou não, Francisco arrasa: finalizou 41
até agora, em menos de cinco anos, contra 105 de João Paulo II em 26
anos no trono. O volume não é a única peculiaridade das canonizações
deste papa: muitos dos santos nasceram ou são venerados fora do celeiro
habitual, a Europa. Além do Brasil, que só tinha um nativo — Santo
Antônio de Sant’Ana Galvão, canonizado em 2007 —, ganharam santos neste
pontificado o asiático Sri Lanka, o México e os EUA. “Francisco entendeu
que a energia da Igreja já não vive em Roma. Vive nas Américas, na Ásia
e na África”, disse a VEJA o historiador americano Christopher
Bellitto, especialista em catolicismo contemporâneo.
A trilha das santificações descomplicadas foi aberta por
outro papa preocupado com a perda de fiéis, João Paulo II — por sinal,
santificado por Francisco, em um dos processos mais rápidos da história.
Durante seu pontificado, as beatificações, etapa anterior à
canonização, passaram a tramitar e ser celebradas localmente, bastando
que na cerimônia estivesse presente o prefeito da Congregação para as
Causas dos Santos, e não mais o pontífice em pessoa. Ocupante da
prefeitura durante o papado de João Paulo II, o cardeal português José
Saraiva Martins, em entrevista a VEJA, chamou a mudança de uma “pequena
revolução”. “A beatificação tem uma dimensão decisiva para as igrejas
locais. É uma forma de permitir que a população homenageie seus heróis”,
explicou o cardeal.
Com Francisco, as canonizações foram ainda mais
facilitadas. Neste ano, às formas convencionais para chegar a santo —
martírio ou vida virtuosa comprovada por ao menos dois milagres —,
Francisco acrescentou a categoria oblatio vitae, do latim
“oferecer a vida”. Nela se encaixam aqueles que morreram por outra
pessoa — caso do padre polonês Maximilian Kolbe, que se sacrificou no
campo de concentração de Auschwitz para salvar um judeu. A nova regra
abre brecha para uma possibilidade antes impensável: a canonização de
santos não católicos. Para Bellitto, trata-se de um futuro possível, até
provável, mas distante. “Embora a Igreja ensine há mais de cinquenta
anos que a salvação não se restringe ao catolicismo, não acredito nesse
efeito a curto prazo”, diz. Mais uma tarefa para o irrefreável
Francisco.
---------------
Reportagem por Maria Clara VieiraPublicado em VEJA de 3 de janeiro de 2017, edição nº 2563
Fonte: https://veja.abril.com.br/revista-veja/de-costas-para-a-curia/
Nenhum comentário:
Postar um comentário