(Alcir N. Da Silva/VEJA)
Historiador Walter Scheidel analisa diferença de renda entre pobres e ricos através dos tempos e diz que ela só diminui em caso de ocorrências desastrosas
12 jan 2018
O combate à desigualdade é
uma das poucas brigas capazes de unir países em diferentes estágios de
desenvolvimento. No Brasil, políticas para reduzir o abismo entre pobres
e ricos visam a tirar pessoas da pobreza. Na Europa, a intenção é
sobretudo criar mais emprego (e, como consequência, minar a força dos
movimentos extremistas). O historiador Walter Scheidel, da Universidade
Stanford, acredita, contudo, que políticas públicas com esse fim
podem dar mais conforto à população mas tendem a ser pouco eficazes na
busca por diminuir diferenças de renda. Nas 528 páginas de seu livro The Great Leveler: Violence and the History of Inequality from the Stone Age to the Twenty-First Century
(O Grande Nivelador: Violência e a História da Desigualdade da Idade da
Pedra ao Século XXI), festejado como um dos melhores do ano passado,
Scheidel refaz o caminho da riqueza desde os primórdios da humanidade e
chega a uma constatação pouco animadora: o mundo só experimentou
momentos de redução contundente da desigualdade em períodos de terror,
grandes guerras, revoluções totalitárias, pragas e desastres naturais.
“Por mais que o mundo tenha evoluído, os maiores vetores para a redução
da desigualdade nunca foram o desenvolvimento econômico e as revoluções
tecnológicas”, explicou Scheidel a VEJA. A seguir, sua entrevista, feita
por telefone.
A desigualdade é um mal impossível de controlar?
Desde que o homem decidiu fincar os pés em uma região, com o advento
da agricultura, a desigualdade entrou no DNA da civilização. Nossos
ancestrais começaram a desenvolver utensílios que eram herdados por seus
descendentes, colocando algumas famílias em relação de vantagem sobre
outras. Mais tarde, com a formação dos impérios, os grupos próximos do
poder prosperavam à custa dos impostos da população, da corrupção e da
coação. É claro que, de lá para cá, o aprimoramento do comércio quebrou
essa dinâmica arcaica de ganhos. Mas, por mais que o mundo tenha
evoluído, os vetores para a redução da desigualdade nunca foram
desenvolvimento econômico e revoluções tecnológicas.
Quais foram esses vetores? Os grandes
choques trazidos por guerras, revoluções e epidemias. Mas somente os
ultraviolentos e socialmente invasivos, que levaram a sociedade a um
nível de destruição que permitiu um “recomeço” do zero. Nos gráficos que
retratam o movimento da desigualdade ao longo dos anos, só é possível
ver quedas relevantes em períodos de catástrofe. No caso das duas
grandes guerras mundiais, a redistribuição foi ainda acentuada pelo
confisco, aumento de impostos, intervenção estatal e, consequentemente,
pela redução do fluxo de capital entre os mais ricos. Em um processo
traumático como esse, ricos têm sempre mais a perder. Na época da peste
negra, no século XIV, tantas pessoas morreram que os trabalhadores se
tornaram escassos, o que valorizou o emprego, mas, por outro lado,
desvalorizou a terra, fazendo com que as classes mais abastadas
perdessem capital. A história mostra que, ao final de processos como
esses, muitos perecem. Mas, quando passa a crise, a distância entre
pobres e ricos é menor. É uma constatação não muito inspiradora para os
governantes interessados em reduzir o abismo social.
"Houve uma grande quantidade de guerras civis na América Latina
nos últimos séculos, e elas não tiveram
quase nenhum impacto
na
desigualdade."
A violência urbana, quando cresce em grande
velocidade, pode resultar em uma instabilidade social com efeitos
equivalentes aos de uma catástrofe ou guerra? Não acredito. Há
muitos países violentos no mundo. E, para que essa violência interfira
na desigualdade, é preciso que ela afete profundamente o topo da
pirâmide. Houve uma grande quantidade de guerras civis na América Latina
nos últimos séculos, e elas não tiveram quase nenhum impacto na
desigualdade. Para que a situação mude, é preciso que o caso seja
extremo, como aconteceu na Síria, por exemplo.
Então uma nação que atinge grandes superávits,
cresce economicamente e eleva sua renda per capita pode estar aumentando
a desigualdade? O crescimento econômico gera riqueza, emprego e
consumo, mas isso não quer dizer que reduza a desigualdade. Ocorre que
essa geração de riqueza costuma ser muito maior, proporcionalmente, no
topo da pirâmide. Então, ainda que a renda per capita aumente, não há
nenhuma relação automática entre esse fator e a redução da desigualdade.
É verdade que todos se beneficiam, mas quem já tem o capital ganha
mais. Medir a desigualdade analisando a evolução da renda no topo da
pirâmide é o legado de Thomas Piketty e seu grupo de pesquisadores, que
produziram um material extremamente instrutivo sobre o assunto.
Políticas temporárias como o Bolsa Família e outros programas de assistência social são ineficazes no combate à desigualdade?
Como se trata de um programa que age diretamente na renda, ele é
positivo de início. O problema é a manutenção. O dinheiro precisa vir de
algum lugar. E num momento de crise, como o que vive o Brasil, esse
dinheiro pode não estar disponível. Então, embora seja uma política
positiva, sua eficácia em longo prazo, a ponto de modificar uma
tendência, ainda não se comprova.
Países com Estado de bem-estar social e baixo
índice de desigualdade, como os escandinavos, não precisaram de grandes
rupturas e guerras. Sim, mas há uma grande complexidade na
evolução dos países escandinavos nesse aspecto. A Suécia, por mais que
fosse um país neutro nas grandes guerras, estava próximo de grandes
atores, como a Alemanha e a Rússia. Por isso, preparou-se para o pior,
com grande racionamento e subida de impostos. Quando a poeira baixou, a
sociedade aproveitou essa nova realidade para direcionar a arrecadação
para políticas sociais. O curioso no caso dos países escandinavos não é a
baixa desigualdade, mas o fato de eles terem conseguido manter essas
políticas até hoje. Replicar o modelo escandinavo em outro lugar me
parece mais improvável que a chegada de um fenômeno da natureza ou um
choque de descontinuidade que reconfigure o estado das coisas, penalize a
renda e leve um país a um nível mais baixo de desigualdade.
A sofisticação da tecnologia militar, associada ao
avanço da medicina, não subtraiu esse caráter avassaladoramente
catastrófico das guerras e pestes? A evolução da tecnologia
transformou a guerra em algo muito diferente do que era um século atrás.
Hoje teríamos uma guerra mais cara, high-tech e rápida, como já vemos
acontecer. Não mobilizaria tantos países e teria alvos precisos. Com
isso, o efeito na redução da desigualdade é próximo de zero. Além disso,
o mundo se tornou um local mais pacífico. Por último, se compararmos o
cenário atual com as ameaças de guerra das décadas passadas, veremos que
o contexto mudou. No âmbito da esquerda, ninguém no mundo quer hoje uma
revolução comunista que confisque as riquezas dos cidadãos. No âmbito
da direita, no caso de um hipotético movimento autoritário, dificilmente
haveria um caráter distributivo. Os nazistas, por exemplo, quando
tomaram o poder, não tinham o menor interesse na ideia da igualdade por
trás de sua retórica. Era justamente o contrário. O mesmo ocorreria na
saúde pública. Numa eventualidade de pragas e epidemias, o avanço da
medicina também dificilmente permitiria uma situação similar à que
aconteceu durante a peste negra, no século XIV.
"Mas, por outro lado, a tecnologia criou um
abismo
que separa os que estão conectados dos que não estão, e quem
está
conectado acaba se beneficiando
de modo desproporcional."
A revolução tecnológica no mundo do emprego,
eliminando carreiras e criando outras, em especial a economia
compartilhada, como é o caso de Uber e Airbnb, pode funcionar como motor
para reduzir a desigualdade? Dificilmente. Por um lado, a
tecnologia permitiu mais transparência no mundo, o que acaba coibindo
situações de manipulação de mercado que muitas vezes resultam em aumento
despropositado de preços, e isso é positivo no sentido de evitar a
subida da desigualdade. Mas, por outro lado, a tecnologia criou um
abismo que separa os que estão conectados dos que não estão, e quem está
conectado acaba se beneficiando de modo desproporcional. No caso da
economia compartilhada, é verdade que permite um dinamismo positivo no
mercado de trabalho. Mas é preciso lembrar que, tanto para dirigir um
Uber quanto para ser anfitrião do Airbnb, é necessário ter um bem. Quem
não tem está fora. Por isso, a tecnologia acaba aumentando a distância
entre quem não tem nada e os que têm relativamente pouco.
Então não há saída? Políticas de
transferência de renda que sejam sustentáveis e melhorem a vida das
pessoas sempre serão desejáveis. A história, porém, mostra que não são
suficientes para reduzir a distância entre pobres e ricos. Existe um
consenso, contudo, de que a desigualdade não pode aumentar
indefinidamente. É preciso haver um limite, um teto. Economistas
costumam medir a desigualdade de modo objetivo, com base em números, em
especial o coeficiente de Gini. Mas deve-se estudar também, ainda que de
forma empírica, qual é o limite de desigualdade que uma sociedade pode
suportar para que não se destrua. A economia global permite que recursos
sejam buscados num país e investidos em outro, onde os rendimentos são
maiores. Até que ponto essa globalização pode ser excludente e criar
desigualdade? Essa é uma questão sobre a qual os governantes precisam se
debruçar. No campo da genética, há outra variável. Conforme o avanço da
ciência, pais poderão, no futuro, escolher características que
transformem seus embriões em “super-humanos”. Há que discutir os
aspectos éticos desse avanço, que pode aumentar ainda mais o abismo
entre as nações.
Ainda que a desigualdade tenha aumentado no
decorrer dos séculos, a vida da população pobre melhorou, como mostram
as cifras de renda per capita. Por que, mesmo assim, é uma questão tão
central hoje? Claro que é mais importante tirar as pessoas da
miséria do que melhorar os índices de desigualdade. Mas a desigualdade
preocupa, hoje, também porque é considerada uma ameaça ao avanço da
democracia. No caso dos Estados Unidos, desde a crise financeira de
2008, em que milhões de famílias perderam muito, houve uma
conscientização sobre como é difícil rastrear a riqueza dos mais ricos.
Ficou patente ainda a percepção de que os ricos são menos penalizados.
Isso trouxe repercussões políticas e psicológicas à sociedade, criando
frustração nas camadas que mais sofreram os efeitos da crise. E esse
sentimento pode resultar no surgimento de líderes populistas, o que é
ruim para a democracia.
Há alguma razão para otimismo?
Definitivamente. Outras desigualdades estão caindo, como a de gênero e a
racial. A desigualdade entre países também cedeu, com nações em
desenvolvimento crescendo mais. Essas terríveis forças niveladoras de
renda, como grandes catástrofes, deixaram de existir, o que é bom, pois
significa que não teremos algo equivalente à II Guerra no horizonte. E,
se o preço que temos de pagar é tolerar até um certo limite de
desigualdade, que assim seja. Só precisamos saber qual é o limite.
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Publicado em VEJA de 17 de janeiro de 2017, edição nº 2565Fonte: https://veja.abril.com.br/revista-veja/a-catastrofe-e-igualitaria/
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