sábado, 13 de janeiro de 2018

A catástrofe é igualitária

 

 

 

 

 

(Alcir N. Da Silva/VEJA)

 Historiador Walter Scheidel analisa diferença de renda entre pobres e ricos através dos tempos e diz que ela só diminui em caso de ocorrências desastrosas

12 jan 2018
O combate à desigualdade é uma das poucas brigas capazes de unir países em diferentes estágios de desenvolvimento. No Brasil, políticas para reduzir o abismo entre pobres e ricos visam a tirar pessoas da pobreza. Na Europa, a intenção é sobretudo criar mais emprego (e, como consequência, minar a força dos movimentos extremistas). O historiador Walter Scheidel, da Universidade Stanford, acredita, contudo, que políticas públicas com esse fim podem dar mais conforto à população mas tendem a ser pouco eficazes na busca por diminuir diferenças de renda. Nas 528 páginas de seu livro The Great Leveler: Violence and the History of Inequality from the Stone Age to the Twenty-First Century (O Grande Nivelador: Violência e a História da Desigualdade da Idade da Pedra ao Século XXI), festejado como um dos melhores do ano passado, Scheidel refaz o caminho da riqueza desde os primórdios da humanidade e chega a uma constatação pouco animadora: o mundo só experimentou momentos de redução contundente da desigualdade em períodos de terror, grandes guerras, revoluções totalitárias, pragas e desastres naturais. “Por mais que o mundo tenha evoluído, os maiores vetores para a redução da desigualdade nunca foram o desenvolvimento econômico e as revoluções tecnológicas”, explicou Scheidel a VEJA. A seguir, sua entrevista, feita por telefone.

A desigualdade é um mal impossível de controlar? Desde que o homem decidiu fincar os pés em uma região, com o adven­to da agricultura, a desigualdade entrou no DNA da civilização. Nossos ancestrais começaram a desenvolver utensílios que eram herdados por seus descendentes, colocando algumas famílias em relação de vantagem sobre outras. Mais tarde, com a formação dos impérios, os grupos próximos do poder prosperavam à custa dos impostos da população, da corrupção e da coação. É claro que, de lá para cá, o aprimoramento do comércio quebrou essa dinâmica arcaica de ganhos. Mas, por mais que o mundo tenha evoluído, os vetores para a redução da desigualdade nunca foram desenvolvimento econômico e revoluções tecnológicas.

Quais foram esses vetores? Os grandes choques trazidos por guerras, revoluções e epidemias. Mas somente os ultraviolentos e socialmente invasivos, que levaram a sociedade a um nível de destruição que permitiu um “recomeço” do zero. Nos gráficos que retratam o movimento da desigualdade ao longo dos anos, só é possível ver quedas relevantes em períodos de catástrofe. No caso das duas grandes guerras mundiais, a redistribuição foi ainda acentuada pelo confisco, aumento de impostos, intervenção estatal e, consequentemente, pela redução do fluxo de capital entre os mais ricos. Em um processo traumático como esse, ricos têm sempre mais a perder. Na época da peste negra, no século XIV, tantas pessoas morreram que os trabalhadores se tornaram escassos, o que valorizou o emprego, mas, por outro lado, desvalorizou a terra, fazendo com que as classes mais abastadas perdessem capital. A história mostra que, ao final de processos como esses, muitos perecem. Mas, quando passa a crise, a distância entre pobres e ricos é menor. É uma constatação não muito inspiradora para os governantes interessados em reduzir o abismo social.
 
 "Houve uma grande quantidade de guerras civis na América Latina nos últimos séculos, e elas não tiveram 
quase nenhum impacto 
na desigualdade."

A violência urbana, quando cresce em grande velocidade, pode resultar em uma instabilidade social com efeitos equivalentes aos de uma catástrofe ou guerra? Não acredito. Há muitos países violentos no mundo. E, para que essa violência interfira na desigualdade, é preciso que ela afete profundamente o topo da pirâmide. Houve uma grande quantidade de guerras civis na América Latina nos últimos séculos, e elas não tiveram quase nenhum impacto na desigualdade. Para que a situação mude, é preciso que o caso seja extremo, como aconteceu na Síria, por exemplo.

Então uma nação que atinge grandes superávits, cresce economicamente e eleva sua renda per capita pode estar aumentando a desigualdade? O crescimento econômico gera riqueza, emprego e consumo, mas isso não quer dizer que reduza a desigualdade. Ocorre que essa geração de riqueza costuma ser muito maior, proporcionalmente, no topo da pirâmide. Então, ainda que a renda per capita aumente, não há nenhuma relação automática entre esse fator e a redução da desigualdade. É verdade que todos se beneficiam, mas quem já tem o capital ganha mais. Medir a desigualdade analisando a evolução da renda no topo da pirâmide é o legado de Thomas Piketty e seu grupo de pesquisadores, que produziram um material extremamente instrutivo sobre o assunto.

Políticas temporárias como o Bolsa Família e outros programas de assistência social são ineficazes no combate à desigualdade? Como se trata de um programa que age diretamente na renda, ele é positivo de início. O problema é a manutenção. O dinheiro precisa vir de algum lugar. E num momento de crise, como o que vive o Brasil, esse dinheiro pode não estar disponível. Então, embora seja uma política positiva, sua eficácia em longo prazo, a ponto de modificar uma tendência, ainda não se comprova.

Países com Estado de bem-estar social e baixo índice de desigualdade, como os escandinavos, não precisaram de grandes rupturas e guerras. Sim, mas há uma grande complexidade na evolução dos países escandinavos nesse aspecto. A Suécia, por mais que fosse um país neutro nas grandes guerras, estava próximo de grandes atores, como a Alemanha e a Rússia. Por isso, preparou-se para o pior, com grande racionamento e subida de impostos. Quando a poeira baixou, a sociedade aproveitou essa nova realidade para direcionar a arrecadação para políticas sociais. O curioso no caso dos países escandinavos não é a baixa desigualdade, mas o fato de eles terem conseguido manter essas políticas até hoje. Replicar o modelo escandinavo em outro lugar me parece mais improvável que a chegada de um fenômeno da natureza ou um choque de descontinuidade que reconfigure o estado das coisas, penalize a renda e leve um país a um nível mais baixo de desigualdade.

A sofisticação da tecnologia militar, associada ao avanço da medicina, não subtraiu esse caráter avassaladoramente catastrófico das guerras e pestes? A evolução da tecnologia transformou a guerra em algo muito diferente do que era um século atrás. Hoje teríamos uma guerra mais cara, high-tech e rápida, como já vemos acontecer. Não mobilizaria tantos países e teria alvos precisos. Com isso, o efeito na redução da desigualdade é próximo de zero. Além disso, o mundo se tornou um local mais pacífico. Por último, se compararmos o cenário atual com as ameaças de guerra das décadas passadas, veremos que o contexto mudou. No âmbito da esquerda, ninguém no mundo quer hoje uma revolução comunista que confisque as riquezas dos cidadãos. No âmbito da direita, no caso de um hipotético movimento autoritário, dificilmente haveria um caráter distributivo. Os nazistas, por exemplo, quando tomaram o poder, não tinham o menor interesse na ideia da igualdade por trás de sua retórica. Era justamente o contrário. O mesmo ocorreria na saúde pública. Numa eventualidade de pragas e epidemias, o avanço da medicina também dificilmente permitiria uma situação similar à que aconteceu durante a peste negra, no século XIV.

 "Mas, por outro lado, a tecnologia criou um abismo 
que separa os que estão conectados dos que não estão, e quem 
está conectado acaba se beneficiando 
de modo desproporcional."

A revolução tecnológica no mundo do emprego, eliminando carreiras e criando outras, em especial a economia compartilhada, como é o caso de Uber e Airbnb, pode funcionar como motor para reduzir a desigualdade? Dificilmente. Por um lado, a tecnologia permitiu mais transparência no mundo, o que acaba coibindo situações de manipulação de mercado que muitas vezes resultam em aumento despropositado de preços, e isso é positivo no sentido de evitar a subida da desigualdade. Mas, por outro lado, a tecnologia criou um abismo que separa os que estão conectados dos que não estão, e quem está conectado acaba se beneficiando de modo desproporcional. No caso da economia compartilhada, é verdade que permite um dinamismo positivo no mercado de trabalho. Mas é preciso lembrar que, tanto para dirigir um Uber quanto para ser anfitrião do Airbnb, é necessário ter um bem. Quem não tem está fora. Por isso, a tecnologia acaba aumentando a distância entre quem não tem nada e os que têm relativamente pouco.

Então não há saída? Políticas de transferência de renda que sejam sustentáveis e melhorem a vida das pessoas sempre serão desejáveis. A história, porém, mostra que não são suficientes para reduzir a distância entre pobres e ricos. Existe um consenso, contudo, de que a desigualdade não pode aumentar indefinidamente. É preciso haver um limite, um teto. Economistas costumam medir a desigualdade de modo objetivo, com base em números, em especial o coeficiente de Gini. Mas deve-se estudar também, ainda que de forma empírica, qual é o limite de desigualdade que uma sociedade pode suportar para que não se destrua. A economia global permite que recursos sejam buscados num país e investidos em outro, onde os rendimentos são maiores. Até que ponto essa globalização pode ser excludente e criar desigualdade? Essa é uma questão sobre a qual os governantes precisam se debruçar. No campo da genética, há outra variável. Conforme o avanço da ciência, pais poderão, no futuro, escolher características que transformem seus embriões em “super-humanos”. Há que discutir os aspectos éticos desse avanço, que pode aumentar ainda mais o abismo entre as nações.

Ainda que a desigualdade tenha aumentado no decorrer dos séculos, a vida da população pobre melhorou, como mostram as cifras de renda per capita. Por que, mesmo assim, é uma questão tão central hoje? Claro que é mais importante tirar as pessoas da miséria do que melhorar os índices de desigualdade. Mas a desigualdade preocupa, hoje, também porque é considerada uma ameaça ao avanço da democracia. No caso dos Estados Unidos, desde a crise financeira de 2008, em que milhões de famílias perderam muito, houve uma conscientização sobre como é difícil rastrear a riqueza dos mais ricos. Ficou patente ainda a percepção de que os ricos são menos penalizados. Isso trouxe repercussões políticas e psicológicas à sociedade, criando frustração nas camadas que mais sofreram os efeitos da crise. E esse sentimento pode resultar no surgimento de líderes populistas, o que é ruim para a democracia.

Há alguma razão para otimismo? Definitivamente. Outras desigualdades estão caindo, como a de gênero e a racial. A desigualdade entre países também cedeu, com nações em desenvolvimento crescendo mais. Essas terríveis forças niveladoras de renda, como grandes catástrofes, deixaram de existir, o que é bom, pois significa que não teremos algo equivalente à II Guerra no horizonte. E, se o preço que temos de pagar é tolerar até um certo limite de desigualdade, que assim seja. Só precisamos saber qual é o limite.
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Publicado em VEJA de 17 de janeiro de 2017, edição nº 2565
Fonte:  https://veja.abril.com.br/revista-veja/a-catastrofe-e-igualitaria/

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