O gênio da comédia francesa do Antigo Regime, Molière, criou uma peça fabulosa há mais de 300 anos: Tartufo (Le Tartuffe ou l’imposteur).
O enredo gira em torno da personagem-título, um falso religioso, um
moralista que se aproveita da boa-fé das pessoas para obter vantagens. É
uma figura arquetípica, como suas vítimas são também exemplares de toda
a ingenuidade: Orgon e Madame Pernelle.
O arcebispo de
Paris insistiu e a peça foi proibida para o público pelo rei Luís XIV.
Sempre acho estranha a censura: se a obra denuncia o falso religioso,
proibi-la soa como confessar culpa. Rir junto com os expectadores seria
mais simpático ao prelado: demonstraria que ele não se sentiu ofendido
e, por consequência, que não seria o alvo do comediógrafo. Bom humor e
poder não costumam ser gêmeos xifópagos.
Do texto citado
deriva o termo tartufismo, ou seja, a hipocrisia encarnada em uma
pessoa. A denúncia do santarrão é antiga e bíblica: Jesus ataca a
aparência sem essência do fariseu, seus jejuns teatrais não acompanhados
de contrição verdadeira, sua substituição do interior pelo exterior. O
farisaísmo foi a primeira forma de tartufismo. Seria Jesus também
proibido pelo arcebispo de Paris se pregasse na corte do Rei-Sol?
Provavelmente.
O líder espiritual vive um problema. Sua autoridade deriva da própria
prática religiosa e da sua respectiva moral. Por natureza, ele deveria
ser um exemplo vivo de possibilidades da vivência piedosa. Todos são
chamados à perfeição moral, mas o padre, o rabino, o pastor ou o mulá
deveriam representar a cristalização dos ensinamentos. Ocorre que todos
são humanos e nem sempre é fácil fundir significado e significante no
comportamento de um espelho de Deus. Também é esperado que o personal
tenha bom corpo, a dermatologista ostente pele exemplar e o
pneumologista não fume. O modelo de cada profissão, o chamado physique
du rôle, tem certa lógica. Se toda profissão tem um certo “tipo ideal”
para o papel, as lideranças religiosas têm algo ainda mais exigente: um
espírito superior.
O tartufismo não é a denúncia do erro que todos os humanos cometem. A
peça é um dedo na ferida da hipocrisia em si, da manutenção da vida
dupla, do uso de máscaras sociais. O tartufismo não é o padre que,
eventualmente, grita com uma secretária ou o rabino que mente para se
desvencilhar de uma frequentadora chata da sinagoga. Isso é humanidade,
não hipocrisia. Os erros deveriam ser evitados, mas o impostor tem a
consciência absoluta de que não acredita no que ensina e, malgrado isso,
mantém todas as aparências para obter os benefícios do cargo. Molière
não se empenha contra o pecadilho. Ele fala da falsidade estrutural e
orgânica, muito mais grave.
O hipócrita religioso é um leitor prático do capítulo 18 do Príncipe de
Maquiavel. Sabe que deve aparentar todo piedade, todo religião, todo
devoção. Pior: além da consciência da cenografia falsa com fins ímpios, o
líder tomado pelo tartufismo sabe que, como aconselha o florentino
citado, jamais deve manter a palavra empenhada ou ser tomado por
escrúpulos, pois atrapalham os negócios. A consciência (mesmo ocasional)
derruba o império da fé. O êxito só pode nascer da mentira constante e
da exclusão de qualquer drama de consciência. O sucesso do hipócrita
depende da inexistência de qualquer traço moral.
Os
políticos, muitas vezes, são Tartufos com outra plumagem. Devem falar da
sua “religião” formal: bem-estar do país, a felicidade do eleitor, o
progresso e a ética. O eleitor passa por Madame Pernelle com frequência:
apesar das muitas provas da má índole do seu protegido, ela insiste em
crer.
O que mais me espanta é que os fariseus
contemporâneos não são bons atores. Falemos de um exemplo: Rasputin, o
monge que seduziu quase toda a elite russa e a família imperial às
vésperas da revolução. Era um tipo imundo, de fala grosseira, sedutor
público de mulheres e exibia seu falo épico em bares com centenas de
testemunhas. Mesmo assim, o czar e a czarina mantiveram sua crença até o
assassinato do Tartufo da Sibéria. Como avalizar um ser evidentemente
picareta e aproveitador? A peça de Molière exige que entendamos o falso
piedoso com o mesmo desafio que tentamos analisar a vontade de crer dos
beatos ao seu redor.
Quando vejo falas e observo
discursos de certos líderes religiosos hoje, atolados em escândalos,
vejo como um farol sobre a rocha o slogan “picareta” brilhando no
horizonte. Está na testa deles e delas, reluz com acrílico e néon
coruscante: “Eu sou um enganador!”. Não são bons atores. Possuem aquele
riso sardônico, um esgar do lábio, um olho dissimulado e uma
teatralidade excessiva como a que Sartre denunciou no garçom do romance A Náusea.
Gestos grandiloquentes e um vago tédio entre uma exclamação e outra: é
quase impossível não perceber que estamos diante de um aproveitador, de
uma impostora, de um hipócrita ou uma tartufa. E, mesmo assim, milhares
de fiéis seguem, intimoratos, os ensinamentos e entregam almas e bens.
Cheguei a perguntar a um seguidor famoso de uma personagem envolvida em
escândalo: “Você realmente acredita nela? De fato?”. Ele assentiu
convicto. Não posso dar mais detalhes. Creiam-me: ele não era uma pessoa
ingênua.
Por um lado, a existência de picaretas é quase
um efeito colateral da existência humana. Há lógica na existência do
meliante que fala em nome de Deus. Por outro lado, a fé nos tartufos é
extraordinária e um mistério. Quem entender bem a peça de Molière
decifrará uma parte da humanidade e, talvez, até vote um pouco melhor
neste ano. Boa semana para todos nós que cremos ou não.
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* É um historiador brasileiro, atualmente professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) na área de História da América. Colunista do Jornal Estadão.
Fonte: http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,tartufismo,70002153280
Imagem da Internet
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