A crítica de Hegel ao humor subjetivo é hoje mais atual do que nunca. O que podemos aprender com ela sobre Donald Trump e seus críticos liberais?
Por Slavoj Žižek.
O que podemos aprender com o Hegel sobre
Donald Trump e seus críticos liberais? Bastante, por incrível que
pareça. Em sua avaliação crítica da ironia romântica, Hegel firmemente a
descarta como sendo um exercício de negatividade vazia, um ato da vã
subjetividade que percebe a si mesma como estando elevada acima de todo
conteúdo objetivo, tirando sarro de tudo, enredada nas “idas e vindas do
humor, que apenas faz uso de cada conteúdo para fazer valer nele seu
chiste subjetivo.” Aqui, “é o artista mesmo que penetra na matéria,
assim sua atividade principal consiste em deixar decompor-se e
dissolver-se em si mesmo tudo o que se quer fazer objetivo e conquistar
uma forma firme da efetividade ou que parece tê-la no mundo exterior, e
isso mediante o poder de ideias subjetivas, de pensamentos momentâneos,
de modos de apreensão surpreendentes.”1
Hoje, podemos facilmente reconhecer
nessas linhas um intelectual pós-moderno que obsessivamente
“desconstrói” toda e qualquer valor ou instituição social. Mas afinal,
ao que Hegel contrapõe essa vã ironia? Geralmente, a postura de Hegel é
tida como conservadora: ao invés da ironia anárquica totalmente
destruidora dos românticos, deve-se reconhecer o Bem e o verdadeiro
embutidos nos costumes sociais, isto é, seu próprio núcleo racional… No
entanto, a posição hegeliana é na verdade muito mais ambígua. Em
primeiro lugar, sua censura básica ao humor subjetivo não é que ele
relativiza e solapa todo e qualquer conteúdo objetivo, não levando nada a
sério, e sim que essa postura irônica demolidora é na realidade
simplesmente impotente. Ela de fato não ameaça nada; apenas fornece ao
sujeito irônico a ilusão de uma liberdade e superioridade interiores.
Quando os indivíduos se enredam numa teia impenetrável de relações
sociais, a única maneira que sobra para afirmar sua subjetividade é no
nicho das piadas que supostamente demonstram sua superioridade interior.
Hegel contrapunha à ironia subjetiva
romântica uma ironia ontológica muito mais radical, que caracteriza o
fulcro da dialética. A propósito da ironia socrática, ele assinala que,
“assim como toda dialética, ela dá força ao que é – tomado em sua
imediatez, mas apenas a fim de permitir que a dissolução inerente nela
transcorra; e podemos denominar isso a ironia universal do mundo”.2
Percebendo a realidade como sendo em si mesma antagônica, uma abordagem
dialética não busca ativamente sobrepujá-la; e sim apenas deixa com que
ela seja aquilo que ela é (ou melhor, o que alega ser), levando ela
mais a sério do que ela própria o faz, permitindo assim que ela própria
leve a cabo sua destruição. A ironia é de certa forma objetiva então não
é de se surpreender que em uma passagem breve (e infelizmente pouco
desenvolvida), Hegel contrapõe ao “humor subjetivo” aquilo que ele
denomina “humor objetivo”:
“[Quando] ao
humor, por outro lado, interessa também o objeto e a configuração deste
no seio de seu reflexo subjetivo, então alcançamos, desse modo, uma
interiorização no objeto, um humor como que objetivo. […] A
Forma que aqui é referida mostra-se primeiramente quando o comentário do
objeto não é um mero nomear, não é uma inscrição ou título, que apenas
diz o que em geral o objeto é, e sim se são acrescentados um sentimento
profundo, um chiste oportuno, uma reflexão rica de sentido e um
movimento pleno de espírito da fantasia, a qual vivifica e amplia a
mínima coisa por meio da poesia da apreensão;”3
Aqui, estamos diante de um humor que, ao
focalizar detalhes sintomas significantes, traz à tona as
inconsistências/antagonismos inerentes à ordem existente. Então, não
seria legítimo extrapolar dessas indicações a ideia de que a totalidade
social em si é atravessada por antagonismos, permeada por de inversões
cômicas? A liberdade torna-se terror, a honra torna-se adulação – não
seriam essas inversões matéria da astúcia da razão? Podemos imaginar um
caso mais aterrorizante de “humor objetivo” do que o do stalinismo, da
inversão cômica das grandes esperanças emancipatórias em uma violência
terrorista autodestrutiva? Nesse sentido, não é Stálin o grande
zombeirão do século vinte? E, nos tempos de hoje, não poderíamos dizer
que a liberdade individual de escolha é também uma piada cuja verdade é a
desesperada situação de um trabalhador precário?
Em virtude do fato de que o maior produto
cultural da era stalinista são piadas políticas, é tentador parafrasear
mais uma vez Brecht: o que é a melhor piada anti-stalinista diante da
piada que é a própria política stalinista em si? Ou, numa versão mais
atual: o que são até mesmo as melhores piadas sobre Trump diante da
piada que é a própria política dele? Imagine que, alguns anos atrás, um
comediante encenasse para uma plateia as declarações, os tuítes e os
feitos de Trump. Suas piadas certamente seriam vistas como não-realistas
e exageradas. Isso porque Trump já é uma paródia de si mesmo, com o
estranho efeito de que a realidade de próprios seus atos é mais
escandalosamente engraçada do que muitas paródias.
A crítica de Hegel ao humor subjetivo é
hoje mais atual do que nunca. Um dos mitos populares dos regimes
comunistas tardios na Europa Oriental era que havia um departamento da
polícia secreta cuja função consistia não em recolher e sim de
efetivamente inventar e colocar em circulação piadas políticas contra o
regime e seus representantes, pois tinham ciência da função positiva
estabilizadora das piadas (afinal, as piadas políticas oferecem uma
maneira fácil e tolerável de desabafar, aliviando as frustrações das
pessoas).
E, num nível diferente, o mesmo vale para
Trump. Basta lembrar quantas vezes a mídia liberal anunciou que Trump
havia sido pego de calças curtas e tinha cometido suicídio político
(tirar sarro dos pais de um herói de guerra morto, se gabar de poder
“agarrar mulheres pela boceta” quando quiser etc.). Os comentaristas
liberais arrogantes ficam pasmos ao perceber como seus contínuos ataques
incisivos ao comportamento de Trump – suas irrupções racistas e
sexistas vulgares, suas imprecisões factuais, as baboseiras que diz
sobre economia, etc. – não chegam de forma alguma a o ferir e talvez
ainda ampliam o seu apelo popular do presidente dos EUA. O ponto é que
eles não compreenderam como opera de fato o processo de identificação.
Via de regra, nós nos identificamos com as fraquezas do outro, não
apenas e nem principalmente com seus pontos fortes. É por isso que
quanto mais as limitações de Trump são ridicularizadas, tanto mais as
pessoas comuns se identificam com ele, lendo os ataques desferidos
contra o presidente como ataques condescendentes da elite liberal
voltados a eles próprios. Enquanto que os apoiadores de Trump sentem-se
constantemente humilhados pela atitude paternalista da elite liberal
perante a eles, a mensagem subliminar que as vulgaridades de Trump
transmitem às pessoas comuns é: “Eu sou um de vocês!”. Como bem resumiu
Alenka Zupančič, “os muito pobres lutam pelos muito ricos, como ficou
claro com a eleição de Trump. E a esquerda faz pouco mais do que
repreender e insultá-los.”4
Ou pior, podemos acrescentar aqui, o que a esquerda faz é algo muito
mais perverso: ela “compreende” paternalisticamente a confusão e a
cegueira do povo… Essa arrogância liberal-esquerdista explode em sua
manifestação mais pura no novo gênero de talk show humorístico
de comentário político (vide os programas de Jon Stewart, John Oliver
etc.) que em larga medida encenam a pura arrogância da elite intelectual
liberal:
“Parodiar Trump na
melhor das hipóteses fornece uma distração de sua verdadeira política;
no pior dos casos, isso converte toda a política em uma piada. O
processo não tem nada a ver com os atores, apresentadores e escritores
ou suas escolhas. Trump construiu sua candidatura agindo como um bufão
babaca – há décadas essa é a persona dele na cultura pop. É
simplesmente impossível parodiar efetivamente um homem que já é uma
autoparódia consciente de si mesmo, e que se tornou presidente dos
Estados Unidos com base nesse comportamento.”5
Em meus livros, eu costumo citar uma
piada contada bons e velhos tempos do socialismo realmente existente e
muito popular entre os dissidentes. Na Rússia do século XV ocupada por
Mongóis, um fazendeiro e sua esposa caminham por uma poeirenta estrada
de terra. No meio do caminho, surge a cavalo um guerreiro mongol. Ele
aproxima-se do casal, diz ao fazendeiro que irá estuprar sua esposa e
acrescenta: “Mas como há muita poeira no chão, você vai segurar meus
testículos enquanto eu a estupro, para que eles não se sujem!” Assim que
o mongol parte depois de ter terminado o serviço o fazendeiro começa a
dar gargalhadas de felicidade. Espantada, a esposa indaga: “Como você
pode estar pulando de alegria sendo que eu acabo de ser brutalmente
estuprada na sua frente?” O fazendeiro responde: “Mas eu peguei ele!
Suas bolas estão cobertas de poeira!” Por mais politicamente incorreta
que possa soar, a piada traz à tona uma triste verdade. Ela revela a
situação dos dissidentes: eles pensavam estar administrando sérios
golpes aos testículos da nomenclatura, enquanto ela continuava
estuprando as pessoas… E não podemos dizer exatamente a mesma coisa a
respeito de Jon Stewart & Cia. tirando sarro de Trump? Não
poderíamos dizer que eles apenas sujam as bolas do presidente de poeira,
ou, no melhor dos casos, as arranham?
* Artigo enviado pelo autor diretamente ao Blog da Boitempo. A tradução é de Artur Renzo.
Notas
1 G. F. W. Hegel. Cursos de estética. Vol. II. Trad. Marco Aurélio Werle e Oliver Tolle. Consultoria Victor Knoll. p. 336. São Paulo, Edusp: 2000.2 G. F. W. Hegel, Lectures on the History of Philosophy, Part One: Greek Philosophy. First Period, Second Division. Citado pelo autor em: https://www.marxists.org/reference/archive/hegel/works/hp/hpsocrates.htm
3 G. F. W. Hegel, Cursos de estética. Vol. II. Trad. Marco Aurélio Werle e Oliver Tolle. Consultoria Victor Knoll. p. 323. São Paulo, Edusp: 2000.
4 Alenka Zupančič, “Back to the Future of Europe” (unpublished manuscript).
5 Stephen Marche, “The Left has a post-truth problem too. It’s called comedy.” [A esquerda também tem um problema de pós-verdade. Chama-se comédia.], Los Angeles Times, 6 jan. 2017.
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Slavoj Žižek
nasceu na cidade de Liubliana, Eslovênia, em 1949. É filósofo,
psicanalista e um dos principais teóricos contemporâneos. Transita por
diversas áreas do conhecimento e, sob influência principalmente de Karl
Marx e Jacques Lacan, efetua uma inovadora crítica cultural e política
da pós-modernidade. Professor da European Graduate School e do Instituto
de Sociologia da Universidade de Liubliana, Žižek preside a Society for
Theoretical Psychoanalysis, de Liubliana, e é um dos diretores do
centro de humanidades da University of London. Dele, a Boitempo publicou
Bem-vindo ao deserto do Real! (2003), Às portas da revolução (escritos de Lenin de 1917) (2005), A visão em paralaxe (2008), Lacrimae rerum (2009), Em defesa das causas perdidas, Primeiro como tragédia, depois como farsa (ambos de 2011), Vivendo no fim dos tempos (2012), O ano em que sonhamos perigosamente (2012), Menos que nada (2013), Violência (2014) e o mais recente O absoluto frágil (2015). Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente.
FONTE: https://blogdaboitempo.com.br/2018/01/17/zizek-o-que-hegel-nos-ensina-sobre-como-lidar-com-trump/
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