Zygmunt Bauman*
Guerras, migrações, fim das utopias. Pode-se viver em um fim do mundo permanente? Um ano depois da morte de Zygmunt Bauman, eis a sua última lição.
O artigo foi publicado no jornal La Repubblica, 09-01-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
O fim dos tempos, o fim do mundo, o fim do universo: um assunto
certamente diferente do habitual para mim, que não sou um especialista
no campo. Não pretendo, portanto, informá-los sobre o estado atual da
arte, da astronomia e da cosmogonia, sobre aquilo que os cientistas
pensam sobre o fim do mundo.
Direi apenas que as teorias científicas que se ouvem por aí me
deixaram muito confuso, dada a dificuldade de conciliar visões muito
diferentes sobre a mesa. [...]
Não que isso deva nos preocupar imediatamente, que fique claro, já
que se calculou que o universo viverá pelo menos mais 20 bilhões de
anos, e, pelo menos eu, que sou irrevogavelmente velho, não tenho
nenhuma esperança de chegar até lá.
Mas voltemos à pergunta inicial, ao porquê estamos hoje todos tão
inquietos, por que são feitas tantas premonições sombrias sobre o que
nos espera, tanto que, às vezes, não conseguimos sequer focar bem a
questão como fim do mundo, mas sim como algo completamente novo e
desconhecido e, portanto, ameaçador.
Por que vivemos essa condição nesta fase da nossa história? Essa é a
pergunta que devemos nos fazer. Eu sugeriria, entretanto, não ter medo.
Mesmo quando nos divertimos, vamos a uma festa com os nossos amigos, em
algum lugar, profundamente, sentimos ansiedade. Não nos sentimos
seguros: seguros de conseguir controlar as nossas vidas, seguros de ter a
capacidade, os meios, a habilidade, os recursos, seguros de poder viver
em um mundo em que isso seja possível.
Em suma, não conseguimos dar às nossas vidas a forma que gostaríamos,
estamos assustados porque – permito-me sugerir – vivemos uma condição
de constante incerteza. E o que é a incerteza? É a sensação de não poder
prever como será o mundo quando acordarmos na manhã seguinte; é a
fragilidade e a instabilidade do mundo. O mundo sempre nos pega de
surpresa [...].
Penso na Lisboa de 1755: [...] primeiro, houve um
terremoto que devastou grande parte da cidade, depois um incêndio
destruiu aquilo que havia se salvado.
Estamos perdendo a confiança no futuro.
Não acreditamos mais que ele seja favorável, que poderá resolver os
nossos problemas, e, se disseminam, no mundo contemporâneo,
tradições
que olham para o passado
O evento despertou grandes reações, e, entre os intelectuais,
começou-se a discutir sobre que sentido tinha uma tragédia desse tipo e
como Deus podia permitir tal massacre de inocentes. Voltaire se
colocou à frente da campanha filosófica, sentenciando: “Vejam: a
natureza é cega, atinge com a mesma imparcialidade e a mesma indiferença
as pessoas boas e as pessoas más. Não faz escolhas, não pune. Distribui
a sua fúria aleatoriamente. Se quiserem um mundo que esteja alinhado
com a ética humana e a razão humana, vocês devem conquistar a natureza”.
[...]
Hoje, a mais de 200 anos de distância, podemos ver como todos os
esforços para dominar a natureza não tiveram qualquer efeito, e aqueles
poucos que tiveram, na realidade, foram mal concebidos e deixaram traços
da sua obra em milhões de quilômetros quadrados de terra estéril e
desértica, milhões de vidas perdidas, vidas daqueles que, antes,
cultivavam aquela terra.
Não funcionou. Por outro lado, outros perigos – qualquer evento
envolve inconvenientes –, outros desconfortos foram se somando àquilo
que acontecera. Eu acho que foi Freud que resumiu o significado do impulso à civilização: a pressão da civilização para corrigir e dar nova forma à sociedade. [...]
Todas as utopias, por mais diferentes que fossem entre si, tinham uma
coisa em comum: estavam situadas em algum lugar no futuro. Ainda não
existentes, ainda não conhecidas, ainda não exploradas, intuídas apenas
por alguns navegadores solitários. Mas utopia e futuro tinham um
significado muito parecido.
Eu acho que estamos perdendo a confiança no futuro. Não acreditamos
mais que ele seja favorável, que poderá resolver os nossos problemas, e,
se vocês derem uma olhada no nosso mundo contemporâneo, verão a
disseminação de tradições que olham para o passado.
Quem sabe, talvez abandonamos algumas coisas prematuramente,
erroneamente, estupidamente, talvez devêssemos voltar àqueles estilos de
vida. Talvez alguns entre vocês pensem com nostalgia na vida sob Hitler, Stalin ou
qualquer outro ditador do passado; mas vocês não fizeram experiência
daquilo que foi, porque não é possível. O passado é tão imaginário
quanto o futuro. Vocês não estiveram no futuro e não o conhecem, mas
também não estiveram no passado. Só podem ler livros sobre o assunto,
que, dificilmente, podem restituir as sensações de uma vida realmente
vivida no passado.
Estas são, em linhas gerais, as causas do estado de incerteza atual. A
fragilidade da posição social que conquistamos após uma longa vida de
trabalho e que nos encontramos protegendo, a impossibilidade de prever o
que acontecerá amanhã, a suspeita de que qualquer coisa que traga o
futuro consigo não será melhor aquilo que existe hoje, mas talvez será
pior, a sensação de impotência. Que, mesmo que conhecêssemos todos os
segredos sobre o funcionamento das coisas, não teríamos as capacidades
nem os instrumentos para impedir que coisas desagradáveis aconteçam.
[...]
Cientistas importantes, como por exemplo Ilya Prigogine e Isabelle Stengers, receberam o Prêmio Nobel
por terem descoberto que o universo – não só o nosso mundo e as coisas
que nos cercam mais de perto, mas o universo inteiro – vive governado
por contingências, acidentes e coincidências, em suma, pelo acaso. Não
existem regras.
Na história do mundo, verificaram-se cinco grandes catástrofes que
quase nos levaram à extinção, que se aproximaram muito de tornar
impossível este nosso estar aqui e agora, trocando ideias.
A maior, durante o período permiano, varreu 95% de todas as criaturas
vivas. Portanto, é absolutamente correto afirmar que estamos aqui por
acaso. Os nossos progenitores encontravam-se naqueles pequenos 5% de
criaturas que restaram no mundo. Confiar na coerência do universo, na
sua estabilidade ou previsibilidade, portanto, não é possível.
Qualquer coisa que aconteça no universo acontece por acaso, de modo
que eu acho que não é possível a completa eliminação da incerteza, mas
acredito também que, dentro dos limites impostos a nós pelo universo,
ainda há muito a fazer. Por exemplo, evitar o colapso do sistema de
crédito ou a fuga súbita de migrantes de uma das guerras mais sujas e
desagradáveis jamais ocorrida debaixo dos nossos olhos. Guerras
previsíveis, guerras que podemos fazer com que não eclodam.
E eu me permito sugerir que essas coisas – as pequenas coisas que
podemos fazer dentro dos limites das nossas capacidades – são tantas, a
ponto de podermos nos empenhar nelas durante toda a nossa existência.
-------------
* Foi um sociólogo e filósofo polonês, professor emérito de sociologia das universidades de Leeds e Varsóvia.
Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/575079-nao-tenham-medo-da-incerteza-artigo-de-zygmunt-bauman 10/01/2018Imagem da Internet
Nenhum comentário:
Postar um comentário