Slavoj Žižek*
O papa Francisco normalmente tem
intuições e ideias corretas sobre questões teológicas e políticas.
Recentemente no entanto, ele cometeu a séria gafe de apoiar a ideia,
propagada por alguns católicos, de mudar uma linha no Pai-Nosso. A
controversa parte em que pedimos para Deus “não nos levar à tentação”:
“Não é uma boa tradução porque fala sobre um Deus que induz à tentação.
Eu sou o que cai em tentação; não é Ele que está me empurrando para ver
como caí. Um pai não faz isso, um pai lhe ajuda a levantar
imediatamente. É Satã que nos leva à tentação, esse é o departamento
dele”. Então, o pontífice sugere que nós devemos seguir a Igreja
Católica na França, que já usa a frase “não nos deixe cair em tentação”,
ao invés da forma atual.
Por mais convincente que essa linha de
raciocínio possa parecer, ela despreza o mais profundo paradoxo do
Cristianismo e da ética. Deus não está nos expondo à tentação já no
Paraíso, quando ele avisa Adão e Eva que eles não devem comer a maça da
árvore do conhecimento? Porque ele colocou a árvore lá em primeiro
lugar, e então ainda chamou atenção para ela? Ele não sabia que a ética
humana só podia surgir depois da Queda? Muitos teólogos e escritores
cristãos perspicazes, de Kierkegaard à Paul Claudel estavam plenamente
conscientes de que, no seu nível mais básico, a tentação origina-se na
forma do Bem. Ou, como Kierkegaard colocou sabiamente, quando Deus manda
Abraão sacrificar Isaac, seu dilema “é um teste tão severo que, notem, o
ético é a tentação.” A tentação do (falso) Bem não é o que caracteriza
todas as formas de fundamentalismo religioso?
Aqui está talvez um surpreendente exemplo
histórico: o assassinato de Reinhard Heydrich. Em Londres, o Governo
Provisório da Tchecoslováquia decidiu matar Heydrich; Jan Kubiš e Jozef
Gabčík, que lideravam o time escolhido para a operação, caíram de
paraquedas perto de Praga. No dia 27 de Maio de 1942, com seu motorista,
em um carro conversível (para mostrar sua confiança e coragem),
Heydrich estava a caminho de seu escritório. Quando, numa junção em
Praga, o carro desacelerou, Gabčík surgiu na frente do veículo e mirou
em Heydrich com uma submetralhadora, mas ela travou. Ao invés de mandar
seu motorista fugir dali, Heydrich pediu para ele parar e decidiu
confrontar os homens que o atacavam. Nesse momento, Kubiš jogou uma
bomba na traseira do carro enquanto ele freava, e a explosão feriu
Heydrich e Kubiš.
Quando a fumaça clareou, Heydrich emergiu
dos destroços com seu revólver em mãos; ele perseguiu Kubiš por meio
quarteirão, mas ficou fraco por causa do choque e caiu. Ele mandou seu
motorista, Klein, perseguir Gabčík a pé enquanto, ainda segurando sua
arma, pôs as mãos na parte esquerda do seu corpo, que sangrava
intensamente. Uma mulher tcheca foi ajudar Heydrich e chamou uma van de
entrega; ele primeiro foi posto no assento de passageiro, mas reclamou
que o movimento do carro estava lhe machucando e então foi colocado na
parte de trás da van, e rapidamente levado ao pronto socorro de um
hospital próximo… (Heydrich morreu alguns dias depois, mas vale a pena
notar que suas chances de sobrevivência eram altas, então essa mulher
podia ter entrado na história como quem salvou a vida de Heydrich.)
Enquanto um nazista militarista
simpatizante poderia enfatizar a coragem pessoal de Heydrich, o que me
fascina é o papel desempenhado pela mulher tcheca anônima: ela ajudou
Heydrich, que estava deitado sozinho, coberto de sangue, sem proteção
militar ou policial. Ela sabia quem ele era? Se sim, e se ela não fosse
simpatizante dos nazistas (ambas pressuposições mais prováveis), porque
fez isso? Foi uma simples e quase automática reação de compaixão humana,
de ajudar um vizinho em apuros independentemente de quem ele ou ela (ou
elx, como logo seremos forçados a escrever) era? Essa compaixão deveria
ser mais forte do que o fato de que esse “vizinho” é um dos maiores
criminosos nazistas, responsável por milhares (e depois milhões) de
mortes? O que confrontamos aqui é a escolha definitiva entre liberalismo
humanista abstrato e a ética implicada em uma batalha de emancipação
radical: se nós progredirmos para o extremo lógico do liberalismo
humanista, nos encontraremos tolerando os piores criminosos, e se
partimos para o engajamento político, estaremos do lado da emancipação
universal. No caso de Heydrich, para a pobre mulher tcheca agir
universalmente, ela teria que resistir à compaixão e dar fim à vida
dele…
Tais impasses constituem uma vida eticamente engajada de fato,
e, se nós as excluirmos como problemáticas, nos restará um texto
sagrado benevolente e sem vida. O que se esconde atrás dessa exclusão é o
trauma do Livro de Jó , onde Deus e Satã diretamente organizam a
destruição da vida de Jó para testar sua devoção. Poucos cristãos
afirmam que, por isso, o Livro de Jó deveria ser excluído da Bíblia como
uma blasfêmia pagã. No entanto, antes de sucumbirmos a essa limpeza
ética do Politicamente Correto, deveríamos pausar por um momento e
considerar o que perdemos com ela.
O impacto quase insuportável do Livro de
Jó reside não tanto na narrativa (o Diabo aparece no livro como um
parceiro de conversa de Deus e os dois decidem se engajar em um
experimento um tanto quanto cruel para testar a fé de Jó), mas no seu
resultado final. É preciso localizar exatamente a grandeza de Jó: ao
contrário da noção usual que se tem dele, Jó não é um paciente
sofredor que aguenta as provações extremas com fé firme em Deus. Na
verdade, ele reclama constantemente, rejeitando sua fé (como Édipo em
Colono, que normalmente também é mal definido como uma vítima paciente e
resignada ao seu futuro). Quando, depois que seus meios de subsistência
são destruídos, três teólogos amigos visitam Jó e conversam com ele, a
linha de argumento deles é o típico sofismo ideológico: se você sofre é
porque, por definição, você deve ter feito algo de errado, já
que Deus é justo… No entanto, sua argumentação não se limita a afirmar
que Jó é de alguma forma culpado: o que está em jogo em um nível mais
radical é o significado (ou a ausência de) do sofrimento dele. Como
Édipo em Colono, Jó insiste na total falta de sentido do seu sofrimento:
como o título 27 de Jó mostra: “Jó mantém sua integridade”.
Como tal, o Livro de Jó proporciona talvez o primeiro exemplo da crítica
da ideologia na história humana, desnudando as estratégias discursivas
básicas de legitimação do sofrimento. A dignidade propriamente ética de
Jó está na maneira como ele persistentemente rejeita a noção de que seu
sofrimento pode ter algum significado, seja como punição por seu passado
ou como teste de sua fé, contra os três teólogos que o bombardeiam com
possíveis justificativas e significados. Surpreendentemente, Deus o
defende no fim, alegando que toda palavra que Jó disse era verdade,
enquanto toda palavra dita pelos teólogos era falsa.
E é por causa dessa asserção da falta de
sentido do sofrimento de Jó que deveríamos insistir no paralelo entre
Jesus e Jó, no sofrimento de Jó anunciando a Via-Crúcis. O sofrimento de
Cristo também é sem sentido, não é um ato de troca lógica. A
diferença, evidentemente, é que, no caso de Jesus, a distancia que
separa o homem sofredor desesperado (Jó) de Deus é transposta para o
próprio Deus, em sua divisão radical, ou melhor, em seu autoabandono. O
que isso significa é que deveríamos arriscar uma leitura muito mais
radical da frase “Pai, porque Me abandonaste?” do que se costuma fazer.
Já que estamos lidando aqui não com a
distância entre homem e Deus, mas com a divisão no próprio Deus, a
solução não pode ser que Deus (re)apareça em toda sua majestade,
revelando a Cristo o significado mais profundo de seu sofrimento (que
ele era o Inocente sacrificado para redimir a humanidade). O “Pai,
porque Me abandonaste?” de Cristo não é uma reclamação feita ao onipotente Deus-Pai cujos trabalhos são indecifráveis para nós, meros mortais, mas, na verdade, uma reclamação ao impotente Deus.
É como a criança que, depois de acreditar que ser pai é superpoderoso,
com horror descobre que seu pai não pode ajuda-lo. (Para evocar um
exemplo da história recente: no momento da crucificação, Deus-o-Pai está
em uma posição similar ao pai bósnio, forçado a assistir o estupro de
sua filha, e suportar o trauma de seu olhar de compaixão-repreensão:
“Pai, porque Me abandonaste?”…) Resumindo, com esse “Pai, porque Me
abandonaste?”, é Deus-o-Pai que efetivamente morre, revelando sua total
impotência, e então ressurge dos mortos na aparência do Espírito Santo, a
coletividade dos crentes.
Porque Jó manteve seu silencio depois da
vaidosa aparição de Deus? Esta ridícula exibição (a pomposa bateria de
perguntas retóricas “Onde estavas tu quando…”: “Quem é este que escurece
os meus desígnios com palavras sem conhecimento? / Cinge, pois, os
lombos como homem, pois eu te perguntarei, e tu me farás saber. /Onde
estavas tu, quando eu lançava os fundamentos da terra? Dize-mo, se tens
entendimento.”) não é o próprio modo de aparição do seu oposto, ao que
se pode responder com apenas: “OK, se você pode fazer tudo isso, porque me deixou sofrer de modo tão desnecessário, sem sentido?”
As palavras poderosas de Deus não tornam seu silêncio sobre essa
questão ainda mais palpável, não enfatizam a ausência de uma resposta? E
se foi isso que Jó percebeu e que o manteve quieto: ele ficou
em silêncio não porque foi esmagado pela presença avassaladora de Deus
nem porque ele queria mostrar sua resistência contínua, mas porque, em
um gesto de solidariedade muda, ele percebeu a impotência divina, já que
Ele não respondia seu questionamento. Deus não é nem justo ou injusto,
ele é simplesmente impotente. O que Jó de repente percebeu é que não era ele, mas Deus que deveria ser julgado pelas calamidades de Jó,
e Ele falhou no teste miseravelmente. Ainda mais criticamente,
deveríamos arriscar uma leitura anacrônica radical: Jó enxergou o futuro
do sofrimento de Deus – “Hoje sou eu, amanha será seu filho e ninguém
poderá intervir por ele. O que você vê em mim agora é a prefiguração de
sua própria paixão!”
Então, se quisermos manter a experiência
cristã viva, temos de resistir à tentação de purgar todas suas passagens
“problemáticas”. Elas conferem o estofo que confere ao Cristianismo as
insuportáveis tensões de um vida real.
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* Filósofo, sociólogo, teórico crítico e cientista social
esloveno. É professor da European Graduate School e pesquisador sênior
no Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana.
Por Slavoj Žižek,via The Philosophical Salon, traduzido por Julio Davila
Fonte: https://lavrapalavra.com/2018/01/18/o-politicamente-correto-chega-ao-vaticano/#more-9727
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