domingo, 14 de abril de 2024

“Ninguém supera Lincoln pela sua inteligência, clareza moral e, acima de tudo, humildade”

Por  Leonídio Paulo Ferreira

  

ALEX WONG / Getty Images via AFP

Entrevista a James West Davidson

14 abril 2024

Autor de 'Uma Pequena História dos Estados Unidos' (Edições 70), o historiador James West Davidson analisa o sucesso da rebelião das 13 colónias da América do Norte contra o Império Britânico, assim como o caminho que levou o novo país à supremacia mundial, que mantém apesar do atual desafio chinês.

A vitória dos rebeldes americanos sobre o Império Britânico foi uma surpresa na época?
Quando a Guerra da Independência Americana começou, as potências europeias duvidaram de que os rebeldes americanos pudessem ter sucesso - especialmente a França, a arquirrival da Grã-Bretanha. Os americanos, por seu lado, precisavam desesperadamente da ajuda da França. Benjamin Franklin tinha sido enviado para França para ganhar o apoio desta, mas os franceses hesitaram, sem saber se estes americanos, novatos, poderiam realmente desafiar o poder da Grã-Bretanha. Quando os americanos derrotaram um dos principais Exér- citos britânicos na Batalha de Saratoga, em 1777, a França assinou um Tratado de Aliança. Isso mudou o rumo do conflito. Quando a França entrou na guerra, a sua vasta Marinha forçou a Grã-Bretanha a enviar um terço das tropas que tinha na América para proteger as valiosas ilhas açucareiras nas Caraíbas. E foi a Marinha Francesa que ajudou a impedir a retirada do general inglês Cornwallis, que em 1781 foi forçado a render-se e ao seu Exército a George Washington. Isso acabou com a guerra.

A opção americana por uma república foi revolucionária para o século XVIII?
A Suíça continha na época várias repúblicas, cidades-estado independentes, mas ligadas entre si. O que havia de revolucionário no modelo americano era o seu tamanho - 13 províncias coloniais com substanciais territórios que se combinavam “nestes Estados Unidos” - note o plural! Os americanos consideravam-se parte de uma federação flexível. Os teóricos políticos da época alertavam que uma república democrática geograficamente grande não poderia sobreviver por muito tempo. Com tantas regiões, interesses económicos e classes de pessoas diferentes, as fações políticas certamente destruiriam o Governo. Mas um dos fundadores da República, James Madison, virou esse argumento de cabeça para baixo. Numa grande República, sugeriu ele, “a Sociedade divide-se numa maior variedade de interesses, de atividades, de paixões, que se controlam uns aos outros”. Demorou décadas, no entanto, até que a maioria dos americanos pensasse na sua República como os Estados Unidos, em vez de uma federação “destes Estados Unidos”.

George Washington, Thomas Jefferson e outros pais fundadores tinham escravos. Como conciliaram esta realidade com o ideal de igualdade?
Esta é a questão que mais profundamente se coloca à identidade americana: a relação entre a escravidão e a ideia de igualdade. Livros inteiros foram escritos sobre o assunto. Como pôde Jefferson escrever “Todos os homens são criados iguais” na Declaração da Independência, quando ele próprio escravizou os afro-americanos? Alguns sugeriram que mesmo os grandes indivíduos são produtos do seu tempo, e que só as gerações posteriores poderiam compreender plenamente que a igualdade deveria estender-se aos negros americanos - e às mulheres também, aliás! Mas isso deixa os fundadores escapar com muita facilidade. Na verdade, Jefferson admitiu no primeiro rascunho da Declaração que qualquer pessoa que escravizasse africanos roubaria os seus “direitos sagrados à vida e à liberdade”. Mas disse isso apenas para culpar o rei George III por encorajar o comércio de escravos. O Congresso retirou essa passagem da Declaração  final, sem dúvida porque parecia bastante tolo ouvir os proprietários de escravos culparem o rei por encorajar a escravatura. Jefferson, Washington e outros viam a escravidão como um mal, que esperavam que desaparecesse gradualmente. Mas não tiveram a coragem de eliminar das suas próprias vidas o sistema económico que os beneficiou tão generosamente. E, no entanto…80 anos depois, Abraham Lincoln percebeu quão extraordinário tinha sido que Jefferson, sob a “pressão de uma luta pela independência nacional por parte de um único povo”, tivesse colocado uma verdade sobre todas  as pessoas na Declaração. Os fundadores da nação pretendiam estabelecer a igualdade como um “padrão”, sugeriu Lincoln, “que deveria ser familiar a todos e reverenciado por todos… constantemente trabalhado, e mesmo que nunca alcançado perfeitamente… constantemente espalhando e aprofundando a sua influência”. E essa conquista merece elogios.

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O historiador James West Davidson é autor de 'Uma Pequena História dos Estados Unidos' (Edições 70).

Quando começou a Guerra Civil de 1861-1865 havia risco real do surgimento de dois países rivais?
Absolutamente. Os Estados Confederados da América afirmaram que se tinham separado “destes Estados Unidos” para formar a sua própria confederação independente baseada, segundo o seu vice-presidente, Alexander Stephens, “na grande verdade, que o negro não é igual ao homem branco; que a escravidão - subordinação à raça superior - é sua condição natural e normal”. O Governo de Lincoln - a União - negou que os Estados Confederados tivessem o direito de se separar e considerou que tinha empreendido uma rebelião ilegítima. Foram necessários quatro anos de duras lutas antes que o Norte prevalecesse.

Qual o lugar da conquista do Oeste no imaginário dos americanos?
A resposta tradicional seria que o século XIX viu os americanos dos Estados Unidos avançarem continuamente de Leste para Oeste através do continente - primeiro os comerciantes de peles das décadas de 1820 e 1830, depois os colonos que viajavam em carroças e, mais tarde, em comboios, através de ferrovias transcontinentais, com forças militares finalmente a subjugarem os nativos americanos que restavam. Esta minha Uma Pequena História dos Estados Unidos  adota um modelo diferente, baseado em muitas investigações novas nos últimos 50 anos. Precisamos pensar na fronteira não como uma única vaga de conquista, movendo-se de Leste para Oeste, mas sim como muitas vagas, cruzando-se umas às outras em diferentes direções. Não só as pessoas, mas também os animais e até as coisas se movem ao longo destas fronteiras. Havia uma fronteira das armas, à medida que novas armas se moviam do Norte para o Oeste, comercializadas pelos franco-canadianos. Havia uma fronteira dos cavalos, movendo-se do México para o Norte. Tanto as armas quanto os cavalos transformaram a vida dos índios das planícies. E os próprios índios criaram as suas próprias fronteiras, à medida que diferentes tribos capitalizaram o poder das armas e dos cavalos. Além disso, havia fronteiras das doenças, à medida que a varíola e o sarampo varriam as planícies. Em suma, a “conquista do Oeste” é na verdade uma história multidimensional, com tradições espanholas, índias e anglo-saxónicas misturadas de formas fascinantes.

Será na soma das riquezas naturais do território e no empreendedorismo de milhões de imigrantes que devemos procurar a explicação para a prosperidade económica dos Estados Unidos?
Esse é um resumo muito bom dos fatores envolvidos! Tenho a certeza de que concordará que deveríamos incluir, juntamente com esses muitos imigrantes, as contribuições feitas por aqueles que foram escravizados e trazidos de África contra a sua vontade. As estatísticas deixam claro por que é que isto é importante, especialmente no período colonial. De 1492 a 1820, cinco vezes mais africanos escravizados vieram para as Américas do que todos os imigrantes europeus juntos. Ao longo de toda a existência do comércio de escravos, mais de 12 milhões de africanos fizeram a difícil viagem através do Atlântico e bem mais de um milhão deles morreu antes de chegar ao seu destino. Dos milhões que vieram acorrentados, mais de nove em cada dez foram para a América do Sul e as Caraíbas. Mesmo assim, a escravatura tornou-se uma parte crescente da vida colonial dos Estados Unidos e continuou a suportar a florescente economia algodoeira no século XIX.

Quando se pode dizer que os Estados Unidos já são a potência dominante no mundo? 1918 ou 1945?
Poder-se-ia argumentar que, após a exaustão gerada pela Primeira Guerra Mundial, os Estados Unidos tornaram-se dominantes. Afinal, o presidente Woodrow Wilson foi recebido na Europa com o seu plano de paz, os Quatorze Pontos. Mas os Estados Unidos não ratificaram o tratado e não aderiram à Liga das Nações. Só no final da Segunda Guerra Mundial é que os americanos deixaram de lado as tendências proeminentes do isolacionismo, abraçaram o internacionalismo e agiram como uma potência dominante.

O que explica a supremacia americana no mundo hoje: o poder militar, a economia ou a força cultural?
Detesto pensar nisso em termos de ou/ou. No meio século que se seguiu à Segunda Guerra Mundial, o mundo era dominado por duas superpotências atómicas e, portanto, a força militar era certamente primordial, juntamente com as alianças anticomunistas, como a NATO. O poder económico também foi fundamental durante esses anos, incluindo o Plano Marshall. E igualmente a influência cultural, claro, quer se fale dos ideais de igualdade democrática ou da influência mais mundana da indústria cinematográfica de Hollywood. Mas é evidente que a sua pergunta está relacionada com a supremacia “no mundo de hoje” e, nesse caso, acredito que qualquer noção de supremacia está em debate, por causa da ascensão de Donald Trump, que levanta novamente a bandeira do isolacionismo e “A América em primeiro lugar”, bem como valores culturais que são alarmantemente fascistas e não-democráticos. Sim, o presidente Biden respeita as tradições diplomáticas e militares tradicionais, mas estamos no meio de uma luta interna com enormes consequências. Qualquer conversa sobre a continuação da “supremacia” é, no mínimo, aberta a interrogações.

Os Estados Unidos derrotaram a União Soviética na Guerra Fria. O desafio chinês é mais complicado?
Sim, definitivamente mais complicado. Lembre-se de que foram necessários mais de 40 anos para “derrotar” a União Soviética num mundo bipolar de superpotências. Os Estados Unidos não estão agora numa guerra com a China - nem sequer numa “Guerra Fria”. Envolvemo-nos numa quantidade significativa de comércio bilateral, ao mesmo tempo que competimos com a China como grande potência no cenário internacional. A China tem claramente objetivos expansionistas; mas também enfrenta os seus próprios problemas económicos internos. Tal como na Guerra Fria original, esta rivalidade prolongar-se-á ao longo de décadas.

Como vê a provável repetição, em novembro, do duelo presidencial de 2020, com o democrata Biden a enfrentar  o republicano Trump?
Quando digo que o seu palpite é tão bom quanto o meu, não quero ser irreverente! Desde os meus tempos de estudante universitário, no final da década de 1960, a situação mundial nunca foi tão instável e difícil de prever. Qualquer um dos candidatos pode viver até aos 95 anos, mas cada um tem problemas de saúde potencialmente graves e questões de competência mental. A Rússia está a travar uma guerra com a Ucrânia que ameaça a estabilidade europeia. O Congresso americano está atualmente disfuncional, especialmente na Câmara dos Representantes. Um candidato presidencial parece estar a ser bem-sucedido, apesar das condenações em vários julgamentos e de outros julgamentos criminais que estão por vir. Megacorporações, como TikTok, X e Meta, têm sites onde a desinformação é deliberadamente espalhada. Pense nos acontecimentos dos últimos dois anos. Quem poderia tê-los previsto? As múltiplas variáveis e instabilidades são demasiado numerosas e estamos todos numa jornada acidentada.

Quem acha que é a maior figura da História americana, agora que estamos perto de comemorar os 250 anos da Declaração da Independência de 1776?
Passei a apreciar o reservado Washington à medida que estudei mais sobre ele, mas para mim na História americana ninguém supera Abraham Lincoln pela sua inteligência, clareza moral e, acima de tudo, humildade. O seu segundo Discurso de Tomada de Posse, em 1865, é provavelmente o discurso mais notável da História americana. A guerra estava praticamente ganha e a União vitoriosa. No entanto, Lincoln não afirmou que a justiça estava do seu lado, nem que Deus havia abençoado a vitória. A escravidão estava no centro do conflito, disse ele. Todos sabiam disso. Mas “nenhuma das partes esperava, para a guerra, a magnitude ou a duração que ela já atingiu... Cada uma procurava um triunfo mais fácil e um resultado menos fundamental e surpreendente... Pode parecer estranho que qualquer homem ouse pedir a ajuda justa de Deus para ganhar o pão à custa do suor do rosto de outros homens, mas não julguemos, para não sermos julgados. As orações de ambos não puderam ser respondidas. Isso de nenhum dos dois foi totalmente respondido. O Todo-Poderoso tem Seus próprios propósitos.” Mas nos tempos incertos de hoje, penso também em Benjamin Franklin. Quando a Constituição Americana foi finalizada, uma mulher comum na rua parou-o e perguntou: “Bem, doutor, o que temos? Uma república ou uma monarquia?” “Uma república, se conseguir mantê-la”, respondeu Franklin. O destino de qualquer Governo depende, em última análise, dos seus cidadãos. Acima de tudo, isto é algo que nós, americanos, não devemos esquecer.

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James West Davidson
Uma Pequena História dos Estados Unidos
Edições 70
382 páginas

Fonte: https://www.dn.pt/3343793336/ninguem-supera-lincoln-pela-sua-inteligencia-clareza-moral-e-acima-de-tudo-humildade/


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