Anselmo Borges*
O
Homem vive-se a si mesmo numa tensão insuperável. Por um lado, o corpo é
o seu peso, a sua limitação — parece que, se fôssemos espírito puro,
poderíamos, por exemplo, estar em todo o lado. Com o tempo, o corpo
decai, envelhece e, aparentemente, envilece-nos. Referindo-se ao
nascimento, Santo Agostinho, nada exaltado, tem estas palavras cruas:
“inter faeces et urinam nascimur”, que não traduzo, por ser
desnecessário. Adoecemos e desmoronamo-nos. Depois, com a morte, o que
resta do corpo é lixo biológico e coisa que apodrece.
Por
outro lado, será sempre misterioso um corpo que fala: produz sons que
encarnam e transmitem sentido. Um olhar é sempre a visita do in-finito.
Um corpo humano canta, ora, sorri, produz obras de arte, que param o
tempo e visibilizam a transcendência. De um bloco de mármore Miguel
Ângelo arranca a Pietà; misturando tintas, Van Gogh põe à vista as Botas com Atacadores e Leonardo, a Última Ceia.
Com instrumentos de sopro, de percussão e de cordas e vozes, corpos
executam música, “a mais utópica das artes” (E. Bloch), que nos leva lá
para onde nunca estivemos, mas aonde queremos sempre voltar de novo.
Raramente
alguém disse de modo tão realista o Homem na sua tensão como Vergílio
Ferreira. Neste texto prodigioso, referindo-se ao enigma humano,
escreveu num misto realista, dramático e sublime: “Um corpo é o que em
obra superior ele produz. Como é fascinante pensá-lo. Um novelo de
tripas, de sebo, de matéria viscosa e repelente, um incansável produtor
de lixo. Uma podridão insofrida, impaciente de se manifestar, de
rebentar o que a trava, sustida a custo a toda a hora para a decência do
convívio, um equilíbrio difícil em dois pés precários, uma latrina
ambulante, um saco de esterco. E simultaneamente, na visibilidade disso,
a harmonia de uma face, a sua possível beleza e sobretudo o prodígio de
uma palavra, uma ideia, um gesto, uma obra de arte. Construir o máximo
da sublimidade sobre o mais baixo e vil e asqueroso. Um homem. Dá
vontade de chorar. De alegria, de ternura, de compaixão. Dá vontade de
enlouquecer.”
Um
corpo humano desabrocha como alguém perante outro alguém. Quando dois
corpos humanos se abraçam são duas pessoas que dizem uma à outra quanto
se querem bem. E outra vez Vergílio Ferreira, exprimindo a vivência do
corpo pessoal e interpessoal: "Mónica, minha querida. Porque o teu corpo
não é só o teu corpo. Não é isso, não é isso. É entrar em ti, e a tua
pessoa estar lá."
E
o corpo humano é um corpo livre, que não se entende como se fosse uma
máquina nem na simples continuidade da explicação biológica. É um corpo
capaz de dizer “não” ao que a biologia pede - é um asceta da vida, não
fica submerso nas suas necessidades. Então, exprime liberdade. E a
liberdade é o salto milagroso. Kant escreveu que é impossível
compreender a produção de um ser dotado de liberdade por uma operação
física, sendo mesmo difícil, se não impossível também, compreender como
pode o próprio Deus criar seres livres.
Por
isso, o materialismo mecânico ou biológico não dá conta do Homem. Mas
quem defender uma concepção dualista de Homem — um composto de alma e
corpo, matéria e espírito — terá de responder à pergunta daquela criança
de uma estória aparentemente ingénua, que já aqui apresentei: diante do
cadáver da avó, o miúdo perguntou à mãe o que é que estava a acontecer.
A mãe foi-lhe explicando que a avó tinha morrido e que a alma dela
tinha ido para Deus e o corpo ia para a terra. Quando ela própria
morresse, também ia ser assim: a alma iria para Deus e o corpo para o
cemitério. E continuou, angustiada: "Sabes, meu filho, quando tu
morreres, a tua alma vai ter com Deus e o teu corpo fica no cemitério."
Aí, o miúdo observou, perplexo: "A minha alma vai ter com Deus e o meu
corpo vai para o cemitério. E eu?"
Há
o corpo fisiológico, anatómico — quando vou ao médico, espero que
perceba de anatomia. Mas também há o corpo fora da anatomia — quando vou
ao médico, espero que me trate como pessoa e não como simples corpo, à
maneira de máquina desarranjada que ele como técnico especializado vai
recompor. Tenho corpo, mas sou corpo. Eu sou um corpo que diz “eu” e,
portanto, vivo-me a mim mesmo por dentro como corpo-sujeito,
corpo-pessoa. E também os outros, todos os outros são corpo-pessoa,
vivendo-se a si mesmos como sujeitos.
Ser
ser humano é viver esta tensão, numa arte quase impossível. Porque
permanentemente espreita o perigo de coisificar o corpo ou de
desprezá-lo, refugiando-se num idealismo angélico. Mas já Pascal
preveniu: "O homem não é anjo nem é besta, e, desgraçadamente, quem quer
fazer de anjo faz de besta."
A
tensão final, decisiva, refere-se à relação com Deus, o Sentido Último:
negar Deus, entregar-se confiadamente a Deus. Aí, como escreveu o
filósofo e teólogo J. I. González Faus, no seu livro recente ”Depois de
Deus…”, é preciso ser consequente: “Se não somos de alguma maneira
criaturas de Deus, mas fruto de um cego acaso, então todos os nossos
pensamentos, afectos e actos de vontade são exclusivamente meras
reacções químicas. Somos apenas uma máquina mais complexa, perfectível
talvez, mas na qual não cabe essa palavra “dignidade”, que utilizamos
como distintivo do nosso ser pessoal: uma máquina é bem tratada por puro
interesse nosso, mas não por ter uma dignidade que exige esse
tratamento; e quando já não interessa, desfazemo-nos dela.”
*Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN | 6 de maio de 2023
Fonte: https://e-cultura.blogs.sapo.pt/a-pessoa-em-tensao-1472548 09/05/2023
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