16 Mai 2023
|
Monumento a José Afonso em Grândola: “O Zeca foi uma figura extraordinária para mim”, diz Fanhais. Foto © Juntas/Wikimedia Commons.
Nesta quarta-feira, 17 de maio, Francisco Fanhais completa 82 anos. Neste dia, publicamos a segunda parte da entrevista de vida cuja publicação iniciámos no passado sábado, 13. Nesta parte da conversa, Fanhais fala da sua amizade com Zeca Afonso – que compôs Grândola Vila Morena precisamente neste dia 17, também, mas há 59 anos, quando ambos estavam em Grândola –, do lugar da poesia na sua vida, do exílio e da chegada a Portugal depois do 25 de abril de 1974.
Francisco Fanhais foi padre, acabando suspenso, antes do 25 de Abril de 1974, por ter participado na celebração da missa em que várias pessoas celebraram o casamento de José Felicidade Alves, outro padre que o cardeal Gonçalves Cerejeira tinha suspendido do ministério. Mas além das posições políticas e religiosas que lhe valeram várias condenações e o exílio, Fanhais ficou também conhecido pelas canções que gravou e cantou – entre as quais Canção da Cidade Nova, Vemos Ouvimos e Lemos ou Porque (os outros se mascaram mas tu não) – canções recordadas na primeira parte da entrevista. Hoje, Fanhais preside à Associação José Afonso.
7M – A amizade é central na sua vida. A mais especial de todas é a do José Afonso, pela profundidade, pela comunhão, não é verdade?
FRANCISCO FANHAIS – O Zeca foi uma figura extraordinária para mim. Se me é permitido falar um pouco dele, diria: para já, para já, ele era um franciscano. Era um homem desprendido, de uma solidariedade e um espírito de fraternidade enormes. Por outro lado, com preocupações metafísicas, muito grandes; a tese dele de licenciatura foi sobre Sartre, sobre o Existencialismo.
Era um homem que tinha preocupações de ordem metafísica. Ouvi-o dizer algumas vezes, “Francisco, se os meus amigos marxistas soubessem que eu leio São João da Cruz, Santa Teresa da Ávila, São Francisco de Assis, Santo Agostinho, o que iriam eles pensar de mim?” E era um homem que, tendo recebido uma educação cristã nos seus tempos de infância, suponho que mais tarde, ao perceber também que dentro da Igreja havia padres com quem ele podia contar, digamos assim, que tinham preocupações políticas, mas ao mesmo tempo queriam ser fiéis aos evangelhos em que acreditavam, para ele há de ter sido um estímulo, o que há de ter provocado uma maior aproximação a alguns padres, nos quais eu me posso incluir.
7M – Há outros casos?
Sei, por exemplo, que o prior de Palmela, o meu amigo António Correia, um dia deu a chave da residência paroquial, ao Zeca e disse assim: “Ó doutor, quando tiver problemas, quando sentir que há aí assim qualquer coisa, quando andarem à sua procura, você mete a chave à porta e fica, e refugia-se dentro da minha casa, da residência paroquial.” E este homem é o António Correia, que ainda é vivo, de quem eu sou muito amigo também.
Portanto, isto não devia ser indiferente para o Zeca. Ao ponto de ter descoberto, há pouco tempo, ao remexer nuns papéis, um recorte do Correio da Manhã, de 7 de novembro de 1985, sobre uma conversa que ele teve com um jornalista chamado José Pacheco. Isto no Correio da Manhã, onde o título que ele dá à conversa que teve com o Zeca é este: “José Afonso reencontra Cristo”. É onde o Zeca diz: “Tenho uma conceção religiosa do universo”.
Foi alguém que me mandou esse recorte, justamente com mais dois ou três dentro do envelope, para a sede da Associação José Afonso. Sem remetente, não sei quem o fez.
7M – Foi difícil lidar com a sua morte.
Custou-me muito a morte dele. Agora, como as pessoas sabem da ligação que eu tinha a ele, fizeram-me presidente da direção da Associação José Afonso. E é esse o trabalho, de que gosto muito: ir às escolas e falar à malta nova, sobretudo gente do ensino secundário, que começam já a ter uma certa noção de vida, dos problemas, que começam a ser capazes de organizar estas peças todas do puzzle que é a existência. E tem sido uma coisa magnífica, uma experiência, para mim, extremamente gratificante.
Vou sempre com uma satisfação enorme para falar com a malta nova, sobre tudo isso que eu vivi, sobre todas as pessoas que encontrei, sobre o que era antes do 25 de Abril [de 1974], o que era antes e depois, e dizer-lhes que hoje a gente tem que caminhar, “um homem tem que caminhar com um pé na primavera”. São frases que me ficam na memória. É dum poema do Fernando Assis Pacheco, onde ele diz “um homem tem que viver com o pé na primavera“.
7M – Isso mostra que o seu interesse pela música é também muito o interesse pela palavra poética.
Completamente, não é? É completamente.
7M – Quer falar sobre isso?
Por exemplo, em 1970 eu fiz um LP, o tal que se chama Canções da Cidade Nova. Quando comecei a querer fazer algumas músicas e o que é que eu ia musicar, comecei a ler poemas, ler e ler. E só me sentia atraído por algum poema que tivesse uma componente social mínima que fosse, escondida ou explícita, ou uma composição poética que correspondesse a anseios mais vastos e mais profundos que nós possamos ter na nossa vida. E isso era um critério para mim indispensável…
Quando comecei a musicar o poema do Sebastião da Gama “cortaram as asas ao rouxinol, rouxinol sem asas não pode voar”, pensei “isto é o retrato, é mesmo este que eu vou tentar musicar”, porque a componente era o reflexo de uma situação muito forte do povo, na situação em que nós vivíamos antes do 25 de abril.
Se eu vou musicar um poema do António Cabral, “De onde vem a carta, Senhora Maria? Vem da capital, é da companhia”…
Uma senhora que estava em cascos de rolha e o carteiro distribui as cartas uma a uma e diz: “Esta é para a Senhora Maria”. E o carteiro pergunta “de onde vem a carta, Senhora Maria?”, depois há um diálogo entre o carteiro e a senhora, poema do António Cabral, que era um padre também, de Trás-os-Montes, Vila Real, e que já morreu.
Ou “Canta ceifeiro, canta, sob o sol de agosto, canta. A terra é tão farta e tanta que chega a para a tua fome e sobra para a tua manta.”
O poema do Alentejo, que já estava musicado por um amigo meu, quando eu encontrei um reportório para o LP, fui ter com ele e ele disse-me “tenho para aqui algumas coisas”. Mostrou-me também este tema com uma componente social muito forte – e do Alentejo, ainda por cima. De maneira que o escolhi. É como o poema da Sophia, não é? “Porque os outros se mascaram, mas tu não”, era o mesmo Francisco Fernandes que tinha também já posto uma música nesse poema. E assim por diante.
7M – Essas preocupações eram uma constante?
Todos os poemas que eu musiquei, ou que fui buscar a música que outros já tivessem feito para esses poemas, têm todos essa componente, poética, por um lado, e social, vamos chamar assim genericamente, por outro. Isso, para mim, é o fundamental. Tenho muita dificuldade em aceitar rima por rima ou aceitar assim só coisinhas, conversas de chacha, digamos, para abreviar… Embora respeite, não faz parte das minhas opções poéticas.
Depois há o tal poema do “Ó navegante do mar do medo, ouve um instante o meu segredo. Cantai comigo que o sol já vem, eu já alcanço Jerusalém”. Esse é um poema que se chama Canção da Cidade Nova, que foi o Francisco Fernandes, o mesmo que também tinha musicado, o Canto do Ceifeiro e o Porque, etc. E ele diz: “Também tenho aqui este.” Eu li aquilo… O texto é baseado no [livro bíblico do Profeta Isaías] e o texto é do Fernando Melro, que também era padre e foi professor de Filosofia no Seminário dos Olivais. Não foi meu professor, mas estava lá, quando eu já estava na Teologia, ele era professor de Filosofia.
É um texto poético inspirado no Profeta Isaías: “Virá o pobre do mundo inteiro. Há pão e vinho em abundância. E o seu caminho é sem distância. Não tem distância esta cidade, senão o medo que nos invade. Cantai comigo que o sol já vem.”
Para mim é um poema-chave na minha vida, porque tem as duas dimensões, a dimensão social e, por outro lado, a dimensão religiosa também: “Hoje um menino venceu a morte. Nasceu franzino, mas é Deus forte. Será chamado Emanuel.” Eu às vezes digo assim: “Tens cinco minutos de vida; qual é a última que vais cantar?
7M – É essa.
É essa. Se me dissessem assim: “Agora tens dez minutos de vida; qual é a penúltima?” É a Grândola.
7M – Poemas e canções literalmente transformadores da vida.
Sim, sim.
7M – Uma quantidade significativa de poetas padres comprometeram-se também e expuseram-se nessa circunstância?
Sim, sim. Não serão muitos, lembro-me destes dois: o Fernando Melro e o António Cabral, mas outros haverá que contribuíram com a sua poesia para o despertar e o manter viva a memória e o desejo de transformação do nosso país. Outros haverá, mas esses são os que me vêm mais à memória porque são poemas deles que eu canto.
7M – Falávamos antes do seu exílio em França…
Estando em França, o que é que eu fiz? Participei na gravação do [disco de José Afonso] Cantigas do Maio, onde vem a Grândola, Vula Morena. Portanto, eu sou atualmente – enfim, já morreram os outros três –, o último que gravou a Grândola ao vivo. O José Mário Branco, o José Afonso, o Carlos Correia, que na altura acompanhava o Zeca na guitarra e à viola, e eu. E lembro-me da gravação da Grândola muito bem, em outubro e novembro de 1971. Ninguém imaginava que dois anos e meio depois seria a música, a última música escolhida para o sinal do 25 de Abril. Ninguém imaginava. E depois a alegria que foi…
7M – Outro ato poético.
A alegria que foi entrar em Portugal. E nesse dia, 25 de Abril, eu estava em França, telefonei a um amigo, não me lembro já a propósito de não sei o quê, e ele dizia “Eh, pá, não sabes o que é que se passa em Portugal? Está lá tudo virado do avesso, é uma grande confusão”.
Era a grande dúvida, tanto para quem estava [no país] como quem estava fora: era saber se era um golpe da ultradireita, para deitarem abaixo o Marcelo, eu voltava atrás… E perguntei. “Não sei, não se sabe, isto ainda há muito pouca informação, mas liga o rádio, pode ser que vás ouvindo qualquer coisa.” E depois liguei o rádio e às tantas… comecei a ouvir que havia músicas do Zeca, do Adriano… Não há nenhum fascista que vá escolher as nossas músicas como sinal da sua revolução, não é?
7M – Pois, foi quando percebeu que não havia lugar a dúvidas.
Sim. Tive depois um comboio no dia 29 e passou-se um episódio muito bonito, em Vilar Formoso, no dia 30 de abril; às 6, 7, 8 da manhã, já não me recordo bem. A estação deserta, ninguém na estação, ninguém autorizado a sair do comboio. Havia só um soldado, com uma espingarda na mão, que andava no cais da estação, batendo os pés para aquecer, que estava frio, para um lado e para o outro, e ali estava eu. A gente abre a janela para respirar pela primeira vez o ar puro do Portugal novo.
Vinha com um amigo, amigo que eu conheci no comboio, meu companheiro de viagem. E quando o nosso cabo se aproximava, dizia ele: “Agora vou-me ali meter com o nosso cabo.” Eu, nada. Essas coisas, ele é que sabia. Quando o nosso cabo passou debaixo das janelas: “Pssst, pssst, ó nosso cabo! Onde é que estão os pides [agentes da PIDE, polícia política do Estado Novo]? Diga lá, onde é que estão os pides?”. O cabo, ou porque não percebeu a ironia ou porque não estava para brincadeiras, respingou: “Oh, amigo, fale alto porque este agora é um país livre!”. Ui! É assim. Mas vamos continuar a ter surpresa e história.
7M – A sua memória guarda muitas histórias.
Vou-lhe contar uma última. Hão de aparecer mais, mas esta é daquelas que ultimamente me tem lembrado. O Zeca já estava muito doente quando foi homenageado em Braga e, mais tarde, em Viana do Castelo. Ele não pôde ir a nenhuma das sessões, mas para a de Braga, que foi a primeira, em 1984, escreveu uma mensagem e fui eu que a li. Depois de agradecer a quem organizou, ele diz no último parágrafo, que é muito bonito: “Encontrando-me atualmente numa fase de pouca atividade física, reafirmo a disposição de me deslocar mais tarde a Braga, onde espero reencontrar os amigos e dialogar e conviver com os jovens e com todos aqueles para quem a justiça e a fraternidade são a razão da sua luta. Obrigado, companheiros, um abraço do Zeca”.
Isto é na mensagem que ele redigiu e que eu li em Braga, em 84. Mais tarde houve uma outra homenagem ao Zeca, onde ele também não foi – estava ainda mais doente – em Viana do Castelo. E eu fui lá e no outro dia apanhei o comboio cedo para Lisboa.
7M – E tem alguma surpresa?…
Estava na estação, à espera do comboio, eram umas sete da manhã, talvez. E eu estava lá na ponta da estação e vejo um rapaz dirigir-se para mim, com um aspeto um bocado desleixado. Via-se mesmo que tinha dormido no banco da estação. Estava assim um bocado desleixado e desmazelado no vestir. Aproximou-se, eu disse para mim “já me vens cravar…” Enfrentou-me e diz-me assim: “Tu estiveste ontem na festa do Zeca, não estiveste? Eu também lá estive. Gramei das cantigas. Cantigas da pesadona”, diz-me ele.
Ainda hoje estou para saber o que são cantigas da pesadona. E perguntou-me: “Tu és amigo do Zeca, não és?” “Sou, sou amigo do Zeca.” “Importas-te de levar um recado ao Zeca?” “Não, não importo.” A minha surpresa era cada vez maior. “Então, olha, é assim: dás um abraço ao Zeca, cá do rapaz” – ele disse o nome, mas passou-me o nome dele – “e o recado que eu quero que tu dês ao Zeca é este: diz ao Zeca que ele não morre no coração da malta nova.”
7M – Que bonito.
E pronto, cheguei a Setúbal e dei o recado ao Zeca e abraçámo-nos os dois a chorar. Hoje, para mim é um dos lemas da Associação José Afonso: não deixar que o Zeca morra no coração da malta nova. E “malta nova” não é só aqueles tipos que têm dezassete, dezoito, vinte anos. São malta nova aqueles para quem a justiça e a fraternidade são a razão da sua luta. É toda essa a gente que é aquilo que eu acho que é a minha missão.
(A última parte desta entrevista será publicada no próximo sábado.)
fonte: https://setemargens.com/francisco-fanhais-e-zeca-afonso-toda-a-minha-vida-e-uma-tentativa-de-ter-um-pe-na-primavera/
Nenhum comentário:
Postar um comentário